quarta-feira, 22 de maio de 2013

O “DIREITO DE DIZER NÃO” E A OPINIÃO PÚBLICA COMO INSTÂNCIAS MEDIADORAS DAS DETERMINAÇÕES ÉTICO-POLÍTICAS

            A constituição é a própria organização do Estado. As instâncias mediadoras das determinações ético-políticas ocorrem através da família, das corporações, dos estamentos e da opinião pública. A função dos estamentos é fazer a mediação entre o governo e o povo.

Consideradas como órgãos de mediação, as assembléias de ordem situam-se entre o governo em geral e o povo disperso em círculos e indivíduos diferentes. Delas exige a sua própria finalidade tanto o sentido do Estado, e a dedicação a ele, como o sentido dos interesses dos círculos e dos indivíduos particulares. Simultaneamente significa tal situação uma comum mediação com o poder governamental organizado de modo a que o poder do príncipe não apareça como extremamente isolado nem, por conseguinte, como simples domínio ou arbitrariedade, e assim que não se isolem os interesses particulares das comunas, das corporações e dos indivíduos. Graças a essa mediação, os indivíduos não se apresentam perante o Estado como uma massa informe, uma opinião e uma vontade inorgânica, poderes maciços em face de um Estado orgânico. (Rph, § 302).

Um povo sem estamentos é um povo sem Estado. É uma mera massa, uma mera multidão.

A função dos estamentos fica evidenciada: impedir o poder arbitrário do príncipe; exercer a mediação entre o governo e o povo; defender os interesses particulares junto aos interesses coletivos. Algumas dessas funções são hoje exercidas pelos sindicatos, pelas associações de bairro, etc. (WEBER, 2009, p.160-1).

A opinião pública tem como função controlar a administração do poder público. Ser membro de um Estado é ser membro de uma corporação. Entre as corporações, há também uma corporação que cuida da burocracia estatal. Nem todos participam desta corporação; “na opinião pública [...], todavia, pode cada qual encontrar os meios de se exprimir e de fazer valer a opinião subjetiva que possui do universal”. (Rph, § 308).

A liberdade subjetiva formal de os indivíduos terem e exprimirem os seus juízos próprios, a sua própria opinião sobre os assuntos públicos manifesta-se no conjunto de fenômenos a que se chama opinião pública. Nela, o uniersal em si e para si, o que é substancial e verdadeiro encontram-se associados ao que lhes é contrário: o particular para si, a particularidade da opinião da multidão. Esta existência é, portanto, a contradição de si mesma no dado, o conhecimento como aparência. É, ao mesmo tempo, o essencial e o inessencial. (Rph, § 316).

            Por meio da opinião pública, a opinião dos povos passa a ser conhecidas. Porém, essa opinião ocorre de forma “inorgânica” e subjetiva e não de forma orgânica, ou seja, por meio das mediações dos estamentos. A opinião pública tem o direito de não aceitar as decisões do governo. Conforme Rosenfield, “o que está em jogo é a capacidade de livre exame da opinião pública”. (1983, p. 258). O fundamento ético da Constituição não aceita que a força é o caminho para as decisões políticas. A base deve ser os hábitos e costumes dos povos. E isso se é manifestado através da opinião pública, mesmo sendo contingente. Ela é “apreciada, porque, sem contingência, não há alternativa e, sem estas, não há liberdade”. (WEBER, 2009, p. 162). Há, na opinião pública, tanto o verdadeiro quanto o falso. Encontrar o verdadeiro é tarefa dos grandes homens.

Em si contém pois a opinião pública os princípios substanciais eternos da justiça: o conteúdo verídico e o resultado de toda a constituição, da legislação e da vida coletiva em geral na forma do bom-senso humano, e o dos princípios morais imanentes em todos na forma de preconceitos. (Rph, § 316).

            Já em relação à imprensa, Hegel destaca que ela tem a liberdade de dizer e escrever o que ela quer. (cf. Rph, § 319). Liberdade de expressar o que se pensa não significa ser irresponsável. “Um ato público, não violento, contrário à lei, com o objetivo de mudá-la, que é o que Rawls chama de ‘desobediência civil’, é algo perfeitamente possível e necessário”. (WEBER, 2009, p. 163).

Ser membro do Estado é ser membro de uma classe e estamentos são as instâncias mediadoras da eticidade e, portanto, momentos da busca e determinação de princípios éticos universais. Essa busca não ocorre na ‘roda do discurso’, como em Apel e Habermas, mas nas mediações (que podem incluir a argumentação) da família, das corporações, do Estado. A ética fica, assim, política, e a política, ética. (WEBER, 2009, p. 164).

Para Hegel, “o Estado é uma união e não uma associação, um organismo vivo e não um produto artificial, uma totalidade e não um agregado, um todo superior e anterior as suas partes, e não uma soma de partes independentes entre si”. (BOBBIO, 1991, p. 98). Os indivíduos que são responsáveis por cargos públicos, exercem-nos porque há um reconhecimento por parte dos cidadãos desta capacidade. Eles devem realizar o que é do interesse de todos e os cidadãos devem ter a sua disposição a possibilidade de examinar a vida pública. “A opinião pública tem o direito de ser informada”. (ROSENFIELD, 1995, p. 266). Se os indivíduos concluírem que os encarregados das atividades do Estado não são competentes, não há a possibilidade de realização do reconhecimento. O povo está satisfeito quando os encarregados das funções públicas são os mais capazes para tais cargos. “O caráter público dos debates dá a qualquer cidadão a possibilidade de se medir com aqueles que dirigem a vida do Estado”. (ROSENFIELD, 1995, p. 267). Quando o povo está bem-informado, não é possível manipulá-lo. Por meio da opinião pública é que ocorre a formação política dos cidadãos. É possível por meio da opinião pública utilizar o ‘direito de dizer não’. “O que está em questão é uma intervenção sobre a vida política enquanto tal com o intuito de prevenir o surgimento de qualquer forma despótica ou totalitária de exercício do poder”. (ROSENFIELD, 1995, p. 267).

Suportar um Estado não significa que se deva submeter passivamente à opressão existente. Compete aos cidadãos acionar, pelo direito à crítica, os meios de resistir a este estado de coisas e de transformá-las à medida que progride a consciência do que é a emergência de uma liberdade necessária. Quando os indivíduos comportam-se em relação ao Estado como se ele fosse uma substância inerte e fixa, abre-se um período de degradação da livre organização social. [...] O exercício do direito, a atividade do pensamento e o pensar do cidadão perfazem e desenvolvem o conceito do Estado. (ROSENFIELD, 1995, p. 231).

O Estado não pode impor decisões sobre os cidadãos sem o consentimento dos mesmos. Eles devem reconhecer as decisões. Por meio da opinião pública é que se exige uma explicação das decisões do Estado, “concretizando o princípio de uma liberdade subjetiva que questiona qualquer decisão que se refira ao conjunto do corpo social”. (ROSENFIELD, 1995, p. 268). Porém, nem sempre a opinião pública expressa o necessário; ao expressar a imediação, o governo deve ter uma independência necessária em relação a ela.

O ideal filosófico de uma opinião pública permanecerá sempre um ideal, pois a crônica está submetida aos seus acasos. Isto, no entanto, não deve impedir um trabalho de conscientização da opinião pública, pois o que se encontra em jogo é a concretização do direito de dizer não. (ROSENFIELD, 1995, p. 269).

“As diferentes figuras e esferas do real determinam-se reciprocamente e, dessa circularidade, nasce a Ideia da liberdade como realidade viva e como atualização efetiva do conceito”. (ROSENFIELD, 1995, p. 285). A concepção de Hegel não visa uma valorização do Estado sobre o indivíduo.

Nesta perspectiva, é interessante fazer uma breve comparação com Platão e Aristóteles, que estão em estreita correspondência com o que Hegel denomina bela unidade da ‘cidade’ grega e cujos pensamentos aparecem quando essa unidade já não mais existe. A corrupção dos costumes já tinha tomado conta da vida da polis, anunciando o fim de uma época. Eles puderam pensar a bela harmonia da ‘cidade’ como fim último do agir humano, pois haviam se distanciado de uma situação histórica que não correspondia mais ao conceito desta individualidade ética. Suas tentativas de restabelecer a harmonia perdida estavam destinadas ao fracasso, porque desconheceram a verdade do que nascia, a liberdade subjetiva. A ‘cidade’ recusou-se a integrar em si o que, no entanto, tinha nascido nela. A particularidade desenvolveu-se em oposição à unidade ética: de modo subjetivo, ela concretizou-se na religião cristã e, objetivamente, no mundo romano. (ROSENFIELD, 1995, p. 285-6).

A concepção de eticidade hegeliana corresponde à concepção orgânica de Estado, conforme o ideal grego, diferentemente da vertente contratualista moderna, que sustentava um atomismo político. Hegel, perante a oposição entre a liberdade subjetiva e a substancialidade ética, demonstra que a concretização da liberdade só ocorre por meio das mediações sociais e jamais de forma abstrata e imediata. Todavia, conforme Rosenfield esboça,

os violentos acontecimentos que marcaram os séculos XIX e XX recolocaram, com maior intensidade, a problemática enfrentada pelo filósofo: como organizar livremente as relações entre o indivíduo e a comunidade em um único movimento de mediação? Pensar o indivíduo como membro de uma comunidade livre, eis umas das questões com a qual nos debatemos ainda hoje. [...] O desafio lançado por Hegel é o de pensar a contingência necessária da sua própria filosofia. (1995, p. 286-7).

            “A vontade tem, então, o direito de dizer não ao que acontece na história, tem o direito (e o dever) de transformar o existente, o direito de não aceitar o que lhe é imposto” (ROSENFIELD, 1995, p. 31). Portanto, segundo a concepção hegeliana, é necessário pensar o indivíduo não como alguém isolado, mas determinado em uma teia de relações. Não é possível pensar uma concepção atomista, mas holista acerca da sociedade civil e política. “À medida que o conceito apropria-se do mundo, à medida que se reconhece no produto de sua própria atividade, ele chega a aprender-se como essencialmente histórico.” (ROSENFIELD, 1995, p. 31). Na moralidade, fala-se do sujeito, termo médio entre pessoa e membro. “A esfera da moral não é independente da esfera jurídica, nem da esfera ética, ou, mais particularmente, da política, mas visa, na realidade, a organizar o todo segundo uma ordem de verdade”. (ROSENFIELD, 1995, p. 108). A ação moral é possível na eticidade, permeada por relações econômicas, culturais, políticas e sociais.

A vontade moral vive da tensão entre o que ela é individualmente e o que ela crê ser a universalidade do conceito: trata-se do ponto de vista da relação (Verhältnis), do dever-ser (Sollen) e da exigência (Forderung) (Hegel, 1967ª, § 108). Logo, estas três determinações da vontade moral indicam que a vontade individual guarda ainda uma relação formal com a vontade universal em dois sentidos: a) a forma do dever-ser moral permanece uma universalidade abstrata, que deve reger cada ação individual sem, contudo, poder orientá-la praticamente. O dever-ser moral é, assim, uma ideia prática que, entretanto desconhece a realidade sobre a qual age, podendo-se verificar como uma ação moral pode separar-se de uma ação política e pôr como fim de qualquer ação um além que nenhuma comunidade humana pode-se jamais alcançar. São casos nos quais o que ‘deve ser’ em termos morais não pode sê-lo na prática; b) essa relação formal, contudo, não é algo fixo, pois ela consiste essencialmente em uma atividade que põe suas próprias determinações na objetividade. Ou seja, a ação moral, postulando o seu dever-ser e sua finalidade interior, tenta se dar os meios suscetíveis de realizá-la praticamente, verificando-os segundo a sua dimensão de verdade; aqui, a determinação moral torna-se um componente essencial de toda ação política: o que ‘deve ser’ em termos morais não pode sê-lo na esfera política. (ROSENFIELD, 1995, p. 109).

            Na moralidade, Hegel apresenta a concepção da liberdade subjetiva. É o momento em que o sujeito é consciente do seu processo de determinação de si. Portanto, o Estado não domina e impõe a sua vontade sobre o sujeito. “O Estado, nos eu conceito, vem a ser a atualização desse movimento de reconhecimento de cada indivíduo nas determinações do todo”. (ROSENFIELD, 1995, p. 110). O indivíduo, sabendo de sua liberdade, limita a ação de um Estado histórico despótico. Somente diante da ignorância dos indivíduos em relação a sua liberdade é que torna possível Estados despóticos.

Uma interioridade cultivada, crítica, constitui uma das melhores garantias contra todas as tentativas que visam à sujeição do homem, tornando-se, portanto, uma condição para o desenvolvimento da liberdade, sem a qual qualquer comunidade pode vir a ser opressora em relação à vida individual. Trata-se de criar as condições que tornem possível uma coincidência efetiva entre a finalidade da ação moral e a finalidade da ação política. (ROSENFIELD, 1995, p. 110).

            Conforme Rosenfield, “o conceito de direito engendra-se efetivamente graças ao desenvolvimento das novas relações sociais, e [...] assegurando a legalidade da troca, desdobra as determinações de igualdade e de justiça das quais ela é portadora. (1995, p. 196). A jurisdição se faz necessária para gerar a ordem.

[...] Trata-se de duas determinações próprias deste movimento de mediação: uma ‘põe’ o direito privado como uma realidade efetiva, como lei, e a outra consiste na consideração preliminar da jurisdição como momento mediador entre a unidade da vida econômica e a efetuação das suas oposições. Com efeito, este movimento contraditório da sociedade inscreve-se na posição própria das determinações do ‘sistema dos carecimentos’, indicando aqui e ali o sentido das oposições que se esboçam. Em outras palavras, Hegel, com a sua preocupação de fortalecer esta unidade que se engendra diferentemente segundo a esfera de sua efetuação, procura estabelecer uma relação universal do direito como instância adequada de resolução de todos os conflitos privados, assim como de uma proteção efetiva dom trabalho e da propriedade. Os conflitos privados encontram solução na administração da justiça, enquanto o Estado tentará resolver as contradições sociais. (ROSENFIELD, 1995, p. 196-7).

            Através da jurisdição é possível viver na sociedade exercendo a sua liberdade. Apenas afirmar que os homens são iguais não basta. É necessário também viver isso subjetivamente na exterioridade das coisas. É por meio da cultura que a jurisdição efetiva-se na eticidade. “Formar o homem para a prática da liberdade, elevar a consciência do indivíduo à forma universal da cultura, eis um dos grandes problemas da filosofia política de Hegel”. (ROSENFIELD, 1995, p. 197).

A exigência de que o direito deve ser conhecido (Hegel, 1967a, § 210) pela consciência e que seja conhecido por todos como tendo uma validez universal revela que este processo, graças ao qual o direito adquire uma potência de efetividade (Macht der Wirklichkeit), não se confunde com uma potência separada da realidade efetiva dos indivíduos. A presença do particípio passado do verbo saber (gewusst) expressa de duas maneiras esta atividade do conceito: a) a lei, objetividade ‘posta’ do direito, é o produto consciente de uma cultura que se pensa na atualidade de sua história; a vontade se sabe no seu próprio objeto; b) se não se viola a lei, é porque todos sabem que ela é igual para todos. Não se trata de um mero conhecimento do que é a lei, mas de saber que ela veio a ser o produto universal de um pensamento da objetividade. (ROSENFIELD, 1995, p. 198).

            Para que haja uma estabilidade nas leis é necessário que o direito individual (privado) seja reconhecido por todos. “Não compete ao livre-arbítrio da subjetividade do indivíduo violar o que está por lei estipulado. [...] O crime não é mais apenas uma violação da liberdade de outrem, mas do universal efetivamente reconhecido por todos”. (ROSENFIELD, 1995, p. 201). A atomização de atos particulares não comprometem mais o conceito da eticidade. A solidariedade faz parte de uma sociedade unida e coesa. “A clemência na aplicação da pena é, assim, inversamente proporcional ao poder da sociedade. No caso de uma sociedade poderosa, livre, a pena tende a ser fraca”. (ROSENFIELD, 1995, p. 201). Portanto, cada época e cada lugar têm a sua cultura, o seu jeito de ver as penas. É no Estado que há a efetivação da liberdade concreta. Isso se traduz pela conexão existente entre a universalidade do Estado e a particularidade dos indivíduos. “A universalidade estatal é livre à proporção que libera o princípio da livre subjetividade em que este princípio se perfaz”. (ROSENFIELD, 1995, p. 232).

A vontade particular reconhece-se como membro do todo, pois esse ato de reconhecimento tornou-se a concreção de um movimento no qual ela dissociou-se do universal, voltando a sua unidade substancial com o Estado. A unidade estatal vive do processo de extrema dissociação da vontade particular, ou melhor, a liberdade ética é sempre vivida individual e subjetivamente. (ROSENFIELD, 1995, p. 232).

Hegel não aceita uma forma estatal que se impõe autoritariamente sobre os indivíduos. Ele defende, contudo, um Estado que salvaguarda a liberdade. “A identidade substancial entre o Estado como fim supremo (Endzweck) universal e os interesses particulares dos indivíduos manifesta-se politicamente em um sistema de direitos e deveres”. (ROSENFIELD, 1995, p. 233). Tanto no direito abstrato quanto na moralidade não é visível a diferença entre direitos e deveres, pois a forma e o conteúdo eram idênticos a todos. Por exemplo, “na propriedade [...] expressava uma mesma relação formal de reconhecimento entre diferentes proprietários dizendo respeito a um único objeto de troca, possuindo cada um, [...] direitos e deveres em relação a outrem”. (ROSENFIELD, 1995, p. 233). Na eticidade, todavia, a forma permanece idêntica, mas o conteúdo não é o mesmo. Por exemplo, “o direito do indivíduo é ser reconhecido como livre, enquanto o seu dever é defender o Estado quando este entrar em guerra com um outro Estado”. (ROSENFIELD, 1995, p. 233).
A culminação do processo do desenvolvimento do conceito ocorre no Estado. Portanto, o Estado é a Ideia plena da liberdade. Com isso, segundo Rosenfield, fica clara a ideia de progresso em Hegel: “um avançar que se nutre de uma volta sempre reiterada ao processo de totalização lógica e figurativa da vida histórica do conceito, o qual, para chegar a si numa nova figura, efetua o que se chama um retorno ao ‘fundamento ético’”. (1995, p. 235). Esta concepção orgânica do Estado já está em Aristóteles[1]. Tanto para Aristóteles quanto para Hegel, as relações humanas são substanciais e não contratuais. O pensamento hegeliano acerca da família, da sociedade civil e do Estado tem suas bases na concepção aristotélica de pólis. “O todo não é um conjunto de indivíduos isolados numa relação negativa de mútua exclusão, pois se trata, essencialmente, de uma relação orgânica em que cada membro cumpre uma função determinada”. (ROSENFIELD, 1995, p. 235-6). Agnes Heller destaca que Hegel foi o último suspiro da concepção ético-política de justiça que surgiu com Aristóteles. (cf. 1998, p. 127).

Hegel, partindo da dissociação moderna entre a liberdade individual e a comunidade política, tenta reconciliar o indivíduo com a substancialidade ética pela criação de um novo conceito de indivíduo. A reconciliação (Versöhnung) indica a unidade criada pelo dilaceramento entre o particular e o universal graças ao ato que reconhece em cada um desses termos o movimento de produção do outro. Com efeito, a vida política moderna desenvolve-se a partir da formação cultural de uma nova individualidade, que se reconcilia progressivamente com um mundo por ela criado”. (ROSENFIELD, 1995, p. 236).

            A base sólida do Estado existe porque o cidadão é “uma singularidade que sabe e quer para si (für sich wissende und wollende Einzelheit) e uma universalidade sabendo e querendo o que é substancial (das Substantielle wissende und wollende Allgemeinheit)”. (ROSENFIELD, 1995, p. 236).

A moralidade abstrata e subjetiva não somente é pressuposta pela eticidade mas, ao unir-se com a objetividade do direito abstrato, permite a realização efetiva ou concretização (Verwirklichkeit)  do movimento autoconsciente e autodeterminante da liberdade humana, através da história de suas figurações. O saber (Wissen) e o querer (Wollen) se engendram efetivamente na própria autoconsciência que desvelará, em última análise, a substancialidade da verdadeira liberdade, ou seja, a figura do ‘Bem’ abstrato (determinado pela moralidade) que é finalmente concretizado eticamente (no conceito concreto de Sittlichkeit). (OLIVEIRA, 1999, p. 89).

Hegel possui uma concepção ética do jurídico. Ele não aceita um mero formalismo. Conforme Bourgeois, “Hegel afasta ainda mais o ato da justiça da afirmação propriamente jurídica do direito”. (2004, p. 49). O direito, assim, está além do formalismo, do jurídico. Conforme Heller, “Hegel queria realizar a preservação e o reforço de um completo conceito ético-político de justiça, que tanto é adequado à modernidade como ainda apoiado na realidade”. (1998, p. 128). A ideia central na teoria do direito em Hegel é a liberdade. A questão do justo e do injusto é central em Hegel. Destarte, a liberdade só se concretiza na sociedade onde o justo impera. O reconhecimento do direito objetivo ocorre na lei, no direito positivo. Através dele a justiça se materializa. “É [...] o próprio domínio do relativo, a cultura, que dá existência ao direito. O direito é, então, algo de conhecido e reconhecido, e querido universalmente, e adquire a sua validade e realidade objetiva pela mediação desse saber e desse querer”. (Rph, § 209). A justiça, para Hegel, é a justiça ético-política. Ela ocorre por meio das medições culturais transformando-se historicamente. O Estado concretiza-se através de uma Constituição. Essa é formada por um sistema de Constituições. “A razão desenvolvida e realizada no particular [...] é a base segura do Estado bem como da confiança e dos sentimentos cívicos dos indivíduos”. (Rph, § 265).


[1] “A natureza da cidade, no mundo grego, é o resultado do processo de atualização da ‘família’ e da ‘aldeia’. A relação entre o indivíduo e a comunidade é de uma identidade entre a razão de ser de cada um, e a finalidade da pólis, a finalidade de todos. Tal indivíduo não é, bem entendido, o indivíduo produzido pela liberdade subjetiva dos tempos modernos. Com efeito, é importante assinalar que a ‘cidade’ é a concretização de um processo teleológico enraizado nos seus elementos simples, ou seja, a família (macho/fêmea, pai/filhos e senhor/escravo) e a aldeia, formas comunitárias da totalidade política, e significam que a ‘cidade’, realizando os eu fim, sendo que o todo só existe por suas partes, que só se efetuam nele”. (ROSENFIELD, 1995, p. 235).

Referências

BOBBIO. N. Estudos sobre Hegel. Direito, Sociedade Civil, Estado. 2. ed. São Paulo: Brasiliense/UNESP, 1991.
BOURGEOIS, Bernard. Hegel: os atos do espírito. São Leopoldo: Unisinos, 2004.
HELLER, Agnes. Além da justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
HEGEL. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 
OLIVEIRA, N. F. de. Tractatus ethico-politicus: genealogia do ethos moderno. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.
ROSENFIELD, D. Política e liberdade em Hegel. São Paulo: Ática, 1995.
UMA FUNDAMENTAÇÃO ÉTICA E NÃO FORMAL DA CONSTITUIÇÃO

“A constituição política é [...] a organização do Estado e o processo da sua vida orgânica em relação consigo mesmo”. (Rph, § 271). A base ética que sustenta a constituição é o “espírito do povo”. Conforme Weber, “este é constituído por toda a história de um povo, suas origens, seus costumes e hábitos, sua cultura, seu éthos. A Constituição de um Estado, portanto, é o próprio ‘espírito do povo’”. (2009, p. 157). A constituição política de Hegel não é formal, nem normativa e nem valorativa. (cf. BOBBIO, 1991, p. 96). “Não formal” significa uma constituição política e não meramente escrita; “não normativa” significa o espírito do povo de um país e não a constituição com suas normas jurídicas no sentido de ser a lei suprema de um país. “Como categoria ético-política, a Constituição está estritamente ligada a um dos conceitos fundamentais de que em preciso partir para compreender a formação e a função da categoria de eticidade no sistema hegeliano: o conceito de espírito do povo”. (BOBBIO, 1991, p. 104-5). A pergunta “quem deve fazer a constituição?” não tem sentido no pensamento hegeliano. É uma pergunta atomista. “O conceito positivo que Hegel tem da Constituição está estritamente relacionado com a concepção orgânica do Estado, insistentemente contraposta à teoria atomista predominante, típica dos jusnaturalistas. (BOBBIO, 1991, p. 98). Para ele, a constituição, sendo fundamentada pelo “espírito do povo” faz parte da cultura de um país, de um povo, assim como o “espírito do povo”.

Como o espírito só é real no que tem consciência de ser; como o Estado, enquanto espírito de um povo, é uma lei que penetra toda a vida desse povo, os costumes e a consciência dos indivíduos, a Constituição de cada povo depende da natureza e cultura da consciência desse povo. É nesse povo que reside a liberdade subjetiva do Estado e, portanto, a realidade da Constituição. Querer dar a um povo a priori uma constituição a priori, até quando ela seja em seu conteúdo mais ou menos racional, é uma fantasia que não tem em conta o elemento que faz dela mais do que um ser de razão. Cada povo tem, por conseguinte, a constituição que lhe convém e se lhe adéqua. (Rph, § 274).

Destarte, a constituição não sofre grandes mudanças, mas apenas adaptações. Cada povo, com seu espírito, tem sua constituição. Assim, não é possível receber uma constituição pronta de fora, como no exemplo citado por Hegel dos espanhóis que recusaram a constituição oferecida por Napoleão a eles, por achá-la estranha a sua cultura. Cada povo tem o seu espírito, a sua cultura. Portanto, é possível criar um critério a priori, como o imperativo categórico? Em Hegel há uma unidade do ético com o político; em Kant não há isso. “Em Hegel, o Estado é o detentor da substancialidade ética. Em Kant, as normas jurídicas são insuficientes, para realizar as exigências do imperativo categórico. Agir de acordo com as leis do Estado é insuficiente para agir moralmente”. (WEBER, 2009, p. 158-9). Princípios morais universais, válidos aprioristicamente para todos não é possível. Portanto, a teoria kantiana cai em uma indeterminação abstrata. Enquanto Kant, o princípio é o imperativo categórico e esse é formal, havendo, portanto, um dualismo entre forma e conteúdo; em Hegel, o princípio é o “espírito do povo”, não havendo um dualismo entre forma e conteúdo, mas um monismo. Para Hegel, a organização constitucional do Estado ocorre por meio da articulação de interesses privados e interesses públicos. 


BOBBIO. N. Estudos sobre Hegel. Direito, Sociedade Civil, Estado. 2. ed. São Paulo: Brasiliense/UNESP, 1991.

 HEGEL. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 

WEBER. T. Ética e filosofia política: Hegel e o formalismo kantiano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009.
LIBERDADE INDIVIDUAL E SUBSTANCIAL NO ESTADO EM HEGEL: UMA SUBSTANCIALIDADE ÉTICA

No Estado ocorre a efetivação completa da liberdade. “O Estado é a realidade em ato da Ideia moral objetiva” (Phd, § 257); é a própria liberdade realizada enquanto ideia. A família e a corporação, sem o Estado que as sustenta, não se justificam.

O Estado, como realidade em ato da vontade substancial, realidade que esta adquire na consciência particular de si universalizada, é o racional em si e para si: esta unidade substancial é um fim próprio absoluto, imóvel, nele a liberdade obtém o seu valor supremo, e assim este último fim possui um direito soberano perante os indivíduos que em serem membros do Estado têm o seu mais elevado dever. (Phd, § 258).

            O Estado é a condição de possibilidade da mediação da liberdade. Hegel, no Estado, faz uma fundamentação ética do político - da constituição através do conceito do ‘espírito do povo’. Para Bobbio, Hegel fez uma fundamentação não normativa da constituição.

A Ideia do Estado: a) Possui uma existência imediata e é o Estado individual como organismo que se refere a si mesmo – é a constituição do Direito político interno; b) Transita à relação do Estado isolado com os outros Estados – é o direito externo; c) É ideia universal como gênero e potência absoluta sobre os Estados individuais, o espírito que a si mesmo dá a sua realidade no progresso da história universal. (Phd, § 259).

            O Estado é a substancialidade ética enquanto organismo político, enquanto instância última da organização política. Porém, ele não é a última instância de julgamento, de decisão, de determinação das instituições sociais, pois há um tribunal da história. Como se dá a relação entre o substancial e o direito da liberdade individual? Como se dá a unidade na diversidade? “As vontades e os interesses particulares dos indivíduos são eliminados ou permanecem como superados e guardados no universal representado pelo Estado? Não há um gradual enfraquecimento das liberdades individuais [...] dos indivíduos?” (WEBER, 2009, p. 153). Segundo Hegel,

É o Estado a realidade em ato da liberdade concreta. Ora, a liberdade concreta consiste em a individualidade pessoal, com os seus particulares, de tal modo possuir o seu pleno desenvolvimento e o reconhecimento dos seus direitos para si (nos sistemas da família e da sociedade civil) que, em parte, se integram por si mesmos no interesse universal e, em parte, consciente e voluntariamente o reconhecem como seu particular espírito substancial e para ele agem como seu último fim (Phd, § 260).

Há, portanto, o reconhecimento do direito, por um lado, e por outro lado, o reconhecimento da vontade substancial.

Em face do direito privado e do interesse particular, da família e da sociedade civil, o Estado é, por um lado, necessidade exterior e poder mais alto; subordinam-se-lhe as leis e os interesses daqueles domínios mas, por outro lado, é para eles fim imanente, tendo a sua força na unidade do seu fim último universal e dos interesses particulares do indivíduo; esta unidade exprime-se em terem aqueles domínios deveres para com o Estado na medida em que também têm direitos (Phd, § 261).

            Destarte, verifica-se em Hegel o equilíbrio entre o substancial e o particular. O dever somente é um dever para o cidadão, se ao mesmo tempo ele for um direito. Há, assim, a conciliação entre os interesses particulares e os coletivos. No Estado, portanto, há a concretização dos interesses particulares na universalidade. “Quem considera um conjunto de indivíduos singulares, não ordenados em estamentos, jamais chegará, segundo Hegel, ao conceito de Estado”. (BOBBIO, 1991, p. 99). É por meio de estamentos e corporações que os cidadãos participam na esfera estatal. A busca é o equilíbrio entre o particular e o universal, entre os direitos e deveres. Isso só é possível na esfera estatal.

A conservação da universalidade, que permaneceu em meio ao movimento das mediações, constitui a substancialidade ética. A universalidade coerente, resultante das articulações da família, das corporações e dos estamentos, indica o dever-ser de um Estado, portanto, de um Estado ético. [...] O ético não se constitui de modo imediato pelas vontades dos indivíduos, nem se dá de forma a priori, mas é resultado de um processo de mediação que inclui negociação, argumentação, etc. (WEBER, 2009, p. 156).

O Estado, em Hegel, simboliza a efetivação da liberdade. Em relação ao direito abstrato, o Estado protege o direito das pessoas. Para Locke é o fundamento do Estado. Para Hegel é apenas uma das finalidades do Estado. Em relação a moralidade subjetiva, o Estado não interfere, pois isso não faz parte de suas atribuições. O Estado é similar a família. Não no aspecto do amor e do sentimento, pois no Estado o sentimento desaparece, e nem pela força, mas pelo sentimento de ordem. Conforme Hegel,

esse sentimento é sobretudo o de confiança (que pode vir a ser uma compreensão mais ou menos cultivada) e de certeza de que o meu interesse particular e o seu interesse substancial se conservam e persistem dentro do interesse e dos fins de um outro (no caso, o Estado) e, portanto, dentro da sua relação comigo como indivíduo. (Phd, § 268).

Isso simboliza o patriotismo. Na sociedade civil, verifica-se transações (comerciais) realizadas via contratos. Isso não existe no Estado. Hegel não aceita a teoria contratualista e defende a tese do Estado orgânico aristotélico. Destarte, o Estado não tem o objetivo de suprir as necessidades dos indivíduos em um estado de natureza, mas o de torná-los seres humanos completos. Assim como não se pode imaginar “o casamento dentro do conceito de contrato” (Phd, § 75), não se pode também imaginar o surgimento do Estado via um contratualismo, como pensou Hobbes, Locke e Rousseau. “A natureza do Estado não consiste em relações de contrato, quer de um contrato de todos com todos, quer de todos com o príncipe ou o governo”. (Phd, § 75).
O Estado racional é constituído por três elementos: o elemento individual, o elemento particular e o elemento universal. O elemento individual é o monarca (não absoluto, mas constitucional). O cargo é hereditário para evitar “o capricho e o elemento contratual envolvido em eleições”. (INWOOD, 1997, p. 124). “O monarca enquanto tal é essencialmente indivíduo que está fora de qualquer outro conteúdo, e este indivíduo destina-se a dignidade do monarca de um modo imediatamente natural, por nascimento”. (Phd, § 280). O elemento particular é o poder executivo. A função deste poder é executar as leis do monarca. Esta classe é composta por chefes do serviço civil, pelo judiciário, pela polícia, etc. O elemento universal é o legislativo. O povo, com exceção dos camponeses e dos trabalhadores, é representado no legislativo como “membro”. Os estados não são classes sociais ou economias, mas grupos profissionais, tais como: i) a nobreza rural e hereditária; ii) a classe mercantil; iii) a classe de servidores civis e suas corporações.
Em relação ao direito internacional, Hegel destaca que o Estado só é Estado se ele for reconhecido por outros Estados. “O direito entre estados assume a forma de tratados e de direito internacional [...] que se baseia mais no costume do que na autoridade central, e tem por objetivo mitigar a conduta da guerra e possibilitar a restauração da paz”. (INWOOD, 1997, p. 125). “O conceito hegeliano de ‘eticidade’ não reduz as determinações lógicas a um puro ser-aí histórico, mas procura elevar os acontecimentos históricos à sua determinação conceitual. Nem todos os objetos exprimem a ideia”. (ROSENFIELD, 1995, p. 229). Fora do Estado, segundo Hegel, não há possibilidade de uma comunidade humana viver livremente. É melhor o pior dos Estado do que a inexistência dele. Hobbes também concorda com esta ideia. Ele salienta que um poder absoluto é menos prejudicial do que a não existência de poder. Para Hegel, quando há a consciência de todos os cidadãos há a determinação da liberdade.


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O PROBLEMA DO RECONHECIMENTO NA FAMÍLIA E NAS CORPORAÇÕES EM HEGEL: UMA RELAÇÃO ÉTICA IMEDIATA

            A família, primeira instituição social, é o primeiro momento da eticidade e é a base ética do Estado. O segundo é a sociedade civil e o terceiro é o Estado. Sendo a “substancialidade imediata do espírito” (Phd, § 158), a família é determinada pelo amor, sentimento esse que a unifica. A partir dela, o indivíduo passa a ser tratado como membro (Mitglied) e não mais como pessoa (direito abstrato) e sujeito (moralidade).

É através dessa família que o indivíduo passa a ser comunitário. A consciência da unidade com o outro é o significado do amor. Como sentimento, porém, ele ainda se situa no plano puramente natural, ao passo que, no Estado, se colocará no plano racional. (WEBER, 1993, p. 102).

            O amor se constitui em dois momentos. “Em primeiro lugar [...] o indivíduo sai de sua subjetividade. Para que haja completude, não se pode ser uma pessoa independente, fechada em si e para si. Em segundo lugar, [...] a pessoa se conquista a si mesma em outra, formando uma só pessoa”. (WEBER, 1993, p. 103). A família é transitória, seja com o amadurecimento dos filhos ou com a morte dos pais.
A base da família está no casamento e através dele a individualidade de cada um dissolve-se. O casamento é a “relação ética imediata”. (Phd, §161). Só há casamento se houver o consentimento de ambos. Isso implica o abandono dos sentimentos imediatos. No casamento, caracterizado como uma relação ética e não uma relação natural, a escolha de se casar e com quem casar envolve uma ação ética da liberdade, corresponde a segunda natureza. Portanto, o casamento não se esgota no contrato. Ele vai além do formalismo contratual.
A individualidade de cada sujeito encontra-se dissolvida e superada na relação mediada que ocorre nesta primeira forma de vida comunitária. No casamento há dois momentos fundamentais, a saber, “o primeiro, a inclinação particular, é contingente; o segundo, o consentimento, é necessário” (WEBER, 1993, p. 105). Isso denota que o consentimento é condição para que haja o casamento. A realidade externa da família é a propriedade familiar. A propriedade não é apenas aquilo que satisfaz as carências dos membros da família, mas satisfaz também o ‘ser coletivo’ da família. Já os filhos não representam os laços externos da família, mas a união interna, substancial. O dever dos pais é fazer com que seus filhos sejam disciplinados e educados para a convivência social. A dissolução da família pode ocorrer ou com a morte dos pais ou devido os filhos constituírem outras famílias.
As dissoluções das famílias geram novas famílias e pessoas reconhecidas. Faz-se necessário, destarte, a inter-relação entre as famílias devido suas necessidades e carências. Sem o contexto social não há uma realização plena do indivíduo. Somente através da mediação nas instituições é que a liberdade se concretiza. Há a associação em corporações devido a necessidade. Elas são a segunda família. Ao explicar as corporações, Hegel diz:

A natureza (de acordo com a sua particularidade) do trabalho na sociedade civil divide-se em vários ramos. O que há em si de uniforme nesta particularidade alcança a existência na confraria, como algo de comum, e então o fim, no particular interessado e para o particular orientado, é concebido também como universal. O membro da sociedade civil torna-se, segundo as suas particulares aptidões, membro da corporação cujo fim universal, desde logo, concreto e não sai dos limites que são próprios aos negócios e interesses privados das indústrias. (Phd, § 251).

A sociedade civil constitui-se em torno das necessidades dos indivíduos. Cada um, visando a resolução de sua necessidade, acaba auxiliando na resolução das necessidades dos outros. “A união em grupos diferenciados, motivados por interesses comuns e por intercâmbios recíprocos para a sua satisfação, dá lugar às diferenças de classe (Stände)” (WEBER, 1993, p. 119). Devido a existência de várias formas de produção e, portanto, de trocas, faz com que surja grupos com interesses comuns. Pertencendo a uma classe social, o indivíduo é membro da sociedade civil (segunda base do Estado, sendo que a família é a primeira). Somente com a classe social, o indivíduo preenche o vazio deixado na dissolução da família.


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O ROMPIMENTO DA DICOTOMIA FORMA-CONTEÚDO NA ETICIDADE HEGELIANA

            A eticidade tem como grande objetivo a libertação da indeterminação, da imediatez e do natural. Isso ocorre instaurando-se a mediação e produzindo, consequentemente, a determinação (nas instituições sociais). Na eticidade há o processo de autodeterminação nas medições sociais, a preservação da autonomia individual e o modo como o sujeito se liberta do imediato e entra na segunda natureza. Ela preenche a insuficiência do direito abstrato e da moralidade. Hegel, neste terceiro momento dos Princípios, mostra a passagem da relação ética imediata à substancialidade ética, assegurada pelo Estado. O Estado tratado por Hegel é o ideal, o conceitual, o pensado, pois os Estados históricos jamais alcançariam o dever-ser (Estado ideal).
Eticidade corresponde à moralidade objetiva. É a mediação social da vontade livre enquanto princípio orientador. A opinião subjetiva é a mais indeterminada. Portanto, ela exige mediação. O ético, destarte, não se situa ao nível do indeterminado. Ninguém é naturalmente ético. Conforme o autor,

o direito da vontade moral subjetiva contém os três seguintes aspectos: a) O direito abstrato ou formal da ação: o seu conteúdo em geral, tal como é realizado na existência imediata, deve ser meu, deve ter sido projetado pela minha vontade subjetiva; b) O particular da ação é o seu conteúdo interior: 1° = trata-se da intenção quando o seu caráter universal é determinado para mim, que é o que constitui o valor da ação e aquilo pelo qual ela vale para mim; 2° - trata-se do bem-estar quando o seu conteúdo se apresenta como fim particular do meu ser particular; c) Este contudo como interior que assume a sua universalidade, a sua objetividade em si e para si, é o fim absoluto da vontade, o bem que é acompanhado, no domínio da reflexão, pela oposição da universalidade objetiva, em parte na forma de mal, em parte na forma de certeza moral. (Phd, § 114).

            “A teoria dos deveres [...] não deve reduzir-se ao princípio vazio da moralidade subjetiva que [...] nada determina”. (Phd, § 148). A superação da teoria do dever kantiana ocorre na passagem para a eticidade. As relações éticas, segundo Hegel, são relações necessárias e não contingentes. Portanto, supõem mediações, pois o necessário somente é possível a partir das mediações, do efetivo e não do real, do imediato. Quanto mais imediato, mais contingente. Hegel supera a imediatez pela mediação. Onde é que a doutrina do dever busca o seu conteúdo? Como elaborar uma doutrina do dever que não seja formal? Hegel diz:

Uma teoria dos deveres que não seja uma ciência filosófica extrai a sua matéria das relações apresentadas pela experiência e mostra as suas relações com concepções próprias, princípios e ideias, fins, institutos e sentimentos correntes, às quais ainda pode acrescentar, como motivos, as repercussões de cada dever noutras relações morais bem como no bem-estar e na opinião. Mas uma teoria coerente e imanente dos deveres só pode ser o desenvolvimento das relações que necessariamente provém da ideia de liberdade e portanto realmente existem no Estado, em toda a sua extensão. (Phd, § 148).

Os cidadãos já nascem inseridos em uma família e em um Estado. Hegel discorda, portanto, da validade apriorística das leis, pois o universal somente existe se ele se concretizar em uma individualidade contingente. Destarte, não há uma dicotomia entre matéria e forma. Como uma doutrina ética do dever faz obrigações? Qual a implicação disso com o conceito de liberdade?

Comprometendo a vontade, pode e deve figurar-se como uma limitação da subjetividade indeterminada ou da liberdade abstrata, limitação dos instintos naturais bem como da vontade moral subjetiva que pretende determinar pelo livre-arbítrio o seu bem indeterminado. (Phd, § 149).

Portanto, o dever é uma obrigação frente a uma subjetividade indeterminada ou a uma vontade não mediada. Segundo Hegel, é necessário a libertação frente a indeterminação, pois a vontade imediata, ao ser mediada, é superada. A libertação da indeterminação ocorre pela mediação.

Mas o que na realidade o indivíduo encontra no dever é uma dupla libertação: libertar-se, por um lado, da dependência resultante dos instintos naturais e assim da opressão em que se encontra como subjetividade particular submetida à reflexão moral do dever-ser e do possível; liberta-se, por outro lado, da subjetividade indefinida que não alcança a existência nem a determinação objetiva da ação e fica encerrada em si como inativa. No dever, o indivíduo liberta-se e alcança a liberdade substancial. (Phd, § 149).

No dever, pela mediação, há a libertação da indeterminação, do abstrato, do vazio. O trajeto da eticidade é partir do indeterminado para o substancial. O percurso da mediação é o percurso do indeterminado para a substancialidade ética que se concretiza, em última instância, no Estado. Esse é o percurso das instituições sociais, que se dá na objetividade, por meio de uma interpretação objetiva da moralidade. Hegel não aceita a concepção de liberdade abstrata. Isso não existe. Pode-se sim falar em corporações, em Estado e é nas mediações sociais que se pode falar de liberdade mediada e reconhecida e, portanto, restringida. A lei não pode ser vista unicamente no ponto de vista negativo (liberdade negativa), mas ela é resultado de mediações (liberdade positiva). A lei não é apenas regulativa, mas também constitutiva.

Numa vida coletiva moral, é fácil dizer o que ao homem cumpre, quais os deveres a que tem de obedecer para ser virtuoso. Nada mais tem a fazer além do que lhe é indicado, enunciado e sabido pela condição em que está. A proibidade é o aspecto universal do que lhe pode ser exigido pelo direito de um lado, pela sociedade de outro. (Phd, § 150).

            Assim, a honestidade pode ser um princípio de uma comunidade ética que se dá por meio da mediação das vontades. Portanto, o sujeito sabe como se comportar em uma comunidade ética, pois isso é estabelecido e assinalado pelas circunstâncias. “Na simples identidade com a realidade dos indivíduos, a moralidade objetiva aparece como o seu comportamento geral, como costume”. (Phd, § 151). Quando se atua eticamente não se está atuando imediatamente, mas de modo universal. “O hábito que se adquire é como que uma segunda natureza colocada no lugar da vontade primitiva puramente natural, e que é a alma, a significação e a realidade da sua existência”. (Phd, § 151). A primeira natureza é a vontade meramente natural; já segunda natureza equivale as instâncias mediadoras (instituições sociais), ou seja, é aquilo que é criado pela mediação das vontades livres. Hegel abandona a primeira natureza por ela não ser mediada e reconhecida. A segunda natureza sim é reconhecida. “O direito que os indivíduos têm de estar subjetivamente destinados à liberdade satisfaz-se quando eles pertencem a uma realidade moral objetiva”. (Phd, § 153). O indivíduo não se realiza fora de uma realidade ética; ele deve ser membro de instituições e não tomado abstratamente. “O direito dos indivíduos à sua particularidade está também contido na substancialidade moral, pois a particularidade é o modo exterior fenomênico em que existe a realidade moral”. (Phd, § 154).
A substancialidade ética é a particularidade individual mediada e reconhecida. “Nesta identidade da vontade universal e da particular, coincidem o dever e o direito e, no plano moral objetivo, tem o homem deveres na medida em que têm direitos e direitos na medida em que tem deveres”. (Phd, § 155). Na eticidade, portanto, há uma identidade entre a vontade universal e a particular, ou seja, há uma coincidência entre direito e dever. Por meio do ético, o cidadão tem direitos na medida em que têm deveres e deveres na medida em que têm direitos. Segundo Hegel, há uma mutua restrição entre direitos e deveres.

No direito abstrato tenho eu um direito e um outro tem o dever correspondente. Na moralidade subjetiva, o direito da minha consciência e da minha vontade, bem como o da minha felicidade, são idênticos ao dever e só como dever-ser são objetivos. (Phd, § 155).

Na eticidade, o direito somente se afirma como direito quando é também um dever. Portanto, segundo Hegel, o escravo, por não ter direitos, não pode ter também deveres. O direito contém em si o dever. Isso torna possível a eticidade, a convivência nas instituições sociais. A eticidade fundamenta o espírito do povo. Ela ocorre quando a vontade particular do indivíduo se identifica com a vontade de todos os indivíduos.


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DEVER PELO DEVER EM KANT

            Para Kant, há uma fundamentação comum entre o conceito da vontade normativa (dever ser) e a vontade particular. Nas palavras de Hegel,

O Bem é a Ideia como unidade do conceito da vontade e da vontade particular – nela o direito abstrato assim com o bem-estar, a subjetividade do saber e a contingência da existência exterior são ultrapassados como independentes para si mas mantendo-se e continuando, ao mesmo tempo, em sua essência -, é a liberdade realizada, o fim final absoluto do mundo. (Rph, § 129).

Hegel reconhece o mérito do conceito de autonomia kantiano. “Para com o sujeito particular, oferece o Bem a relação de constituir o essencial da sua vontade, que nele encontra uma pura e simples obrigação”. (Rph, § 133). Ou seja, a ideia do Bem representa a ideia do dever (uma obrigação para o sujeito). “Na medida em que a singularidade é diferente do bem e permanece na vontade subjetiva, o Bem apenas possui o caráter de essência abstrata universal do dever e, por força de tal determinação, o dever tem de ser cumprido pelo dever”. (Rph, § 133). O dever é a própria ideia do Bem (o dever ser). Deve-se, segundo Kant, cumprir aprioristicamente o dever pelo dever. Isso é autonomia (autodeterminação) para Kant e é nisso que há mérito moral. Não há, assim, nenhuma determinação empírica que move o sujeito para agir. Deve-se cumprir o dever pelo dever. Essa é a tese kantiana que Hegel reproduz nos Princípios para criticá-la.
“Como a ação exige para si um conteúdo particular e um fim definido, e como a abstração nada de semelhante comporta, surge a questão: o que é o dever?” (Rph, § 134). Para Hegel, toda ação exige um conteúdo particular. É preciso ter um conteúdo determinado a partir do qual se age. Hegel responde a pergunta ‘o que é o dever?’ da seguinte maneira: “dispomos apenas de dois princípios: agirmos em conformidade com o direito e preocupar-nos com o Bem-estar que é, simultaneamente, bem-estar individual e bem-estar na sua determinação universal, a utilidade de todos. (Rph, § 134). Hegel, portanto, está preocupado com o conteúdo. O dever pelo dever não contém determinações particulares.
O princípio universal kantiano independe do espaço e do tempo. Não depende de conteúdo empírico. O resultado (imperativo categórico) é uma proposição prática sintética a priori. Hegel reconhece o avanço realizado por Kant. Segundo Hegel, “é sem dúvida essencial pôr em destaque que a autodeterminação da vontade é a raiz do dever”. (Phd, §135). Agir segundo determinações empíricas (felicidade, por exemplo) não tem mérito moral. Porém, Hegel supera Kant, pois a proposta kantiana é insuficiente por não apresentar conteúdos empíricos. Em Hegel, o dever consiste em agir conforme o direito e na busca do bem-estar, tanto o próprio quanto o dos demais. (cf. Phd, §134).
Em cada instituição social (família, sociedade civil e Estado), o dever é determinado de forma diferente. Por isso, Hegel realiza a crítica a Kant, pois “permanecer no mero ponto de vista moral sem passar ao conceito da eticidade, converte aquele mérito em um vazio formalismo e a consciência moral em uma retórica acerca do dever pelo dever mesmo”. (Phd, §135). Ou seja, para Hegel falta a Kant a eticidade, pois sem determinar o conteúdo do dever não tem como agir seguindo ou não a moral. Kant permanece num puro formalismo, pois em sua teoria não há a explicação do justo ou injusto, do moral e imoral. “A não contradição no processo da universalização da vontade subjetiva, conforme a exigência do imperativo categórico, é critério insuficiente para a determinação objetiva desses valores morais”. (RAUBER, 1999, p. 36). Não há como saber de forma a priori se tal ato é moral ou imoral. O dever somente pode ser sabido dentro de um contexto, de uma instituição social. Na moralidade só se sabe de deveres subjetivos. “Enquanto que, no nível da moralidade, o dever constitui um universal abstrato por ser carente de realidade, na eticidade ele se afirma como universal concreto, pois se situa dentro de um contexto de mediação social”. (RAUBER, 1999, p. 36). Segundo Hegel,

[...] se se parte da determinação do dever como falta de contradição ou concordância formal consigo mesmo, que não é outra coisa que o estabelecimento da indeterminação abstrata, não se pode passar à determinação de deveres particulares. Tampouco há nesse princípio algum critério que permita decidir se um conteúdo particular que se apresenta ao agente é ou não um dever. (Phd, §135).

Somente com conteúdo se alcança deveres particulares. Sem conteúdo, deveres particulares são impossíveis. Se o princípio tivesse matéria, como, por exemplo, “conservar a vida [...], facilmente poder-se-ia derivar dali deveres particulares, como não matar, não se suicidar e assim por diante. Entretanto, diz Hegel, de um princípio puramente formal não se pode deduzir dever algum”. (RAUBER, 1999, p.37). Para Kant, o ato imoral provém da contradição. Hegel destaca que isso é impossível, pois princípios com conteúdo é impossível surgir contradição.

Que não haja nenhuma propriedade não contém por si nenhuma contradição, como tampouco o encerra o fato de que este povo singular ou esta família não exista, ou que em geral não viva nenhum homem. Se, por outro lado, se admite e supõe que a propriedade e a vida humana devem existir e ser respeitadas, então cometer um roubo ou assassinato é uma contradição; uma contradição só pode surgir como algo que é, com um conteúdo que subjaz previamente como princípio firme. Somente com referência a um princípio semelhante, uma ação é concordante ou contraditória. (Phd, § 135).

Sem o princípio material do ‘respeito a propriedade alheia’ ou o ‘respeito a vida dos semelhantes’ não seria possível caracterizar atos que desrespeitam esses princípios como atos imorais. Hegel, ao criticar o formalismo kantiano, quer ressaltar que sem a pressuposição de conteúdo e de comunidades instituídas é possível justificar atos como o roubo, a mentira, a morte, ou seja, ações imorais e injustas poderiam ser justificadas. Ou seja, essas práticas não estariam em contradição com nenhum princípio. Hegel ressalta que o princípio anunciado pelo imperativo categórico “[...] seria muito bom se já dispuséssemos de princípios determinados sobre o que se deve fazer”. (Phd, § 135).
Até que ponto as críticas de Hegel a Kant são sustentáveis? Kant parte do fato da razão de que os homens sabem discernir entre o certo e o errado, ou seja, eles sabem classificar os atos em morais e imorais. A partir disso, do fato da razão, Kant estabelece o princípio da moralidade, a saber, o imperativo categórico. Hegel acerta ao dizer que o imperativo é puramente formal. Por isso, Hegel destaca a necessidade da historicidade do conteúdo dos deveres. O imperativo não nos diz o que se deve fazer, mas como se deve agir para alcançar a moralidade.

A proposta moral de Kant não se esgota no imperativo categórico. As máximas desempenham um papel fundamental dentro dessa proposta, pois são elas as responsáveis pelo conteúdo do dever. As máximas são determinações subjetivas do querer, são princípios práticos cuja matéria (objeto) põe e persegue fins da vontade subjetiva. Enquanto válidas apenas para o sujeito, não passam de regras subjetivas do querer e, por conseguinte, não valem como regras morais. Mas, quando então em conformidade com o imperativo categórico, passam à validade objetiva, ou seja, valem como leis morais. É certo que o conteúdo da máxima não pode ser o princípio de determinação da vontade, pois, se fosse, não poderia representar-se sob a forma universalmente legisladora, não poderia converter-se em lei. O conteúdo da máxima deve adequar-se à forma, isto é, deve estar em conformidade com o princípio da moralidade, de modo a enunciar o dever. (RAUBER, 1999, p. 40).

Hegel critica Kant acusando-o de fazer uma mera fundamentação subjetiva da vontade livre, ultrapassando-o ao sair da fundamentação subjetiva e entrando nas mediações sociais da liberdade. Hegel está interessado pelos deveres particulares (‘eu preciso saber o que eu devo fazer’). O critério formal kantiano não diz nada de novo do que já está dito na máxima ou corre-se o risco de colocar qualquer conteúdo justificando-o.


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DIREITO DE EMERGÊNCIA EM HEGEL

Um caso específico na moralidade é o direito de emergência (ou estado de necessidade). Ele é introduzido por Hegel na parte final da moralidade. Nas palavras de Hegel,

A particularidade dos interesses da vontade natural, condensada na sua simples totalidade, é o ser pessoal como vida. Possui esta, no período supremo e no conflito com a propriedade jurídica de outrem, um direito que pode fazer valer (não como concessão graciosa mas como direito) na medida em que há,  de um lado, uma violação infinita do ser e portanto uma ausência total de direito e, de outro, apenas a violação limitada da liberdade. É assim que são ao mesmo tempo reconhecidos o direito como tal e a capacidade jurídica de quem é lesado na sua propriedade. É o direito daquela violação, do direito da miséria que provém o benefício da imunidade que o devedor recebe sobre a sua fortuna, isto é, sobre a propriedade do credor; não se lhe tiram os instrumentos de trabalho nem os meios de cultivo considerados necessários, tendo em conta a sua situação social, para a sua manutenção. (Rph, § 127).

Portanto, a vida tem um direito de emergência. “Se alguém, para conservar a sua vida, tiver que usufruir de um alimento de outro, isto é obviamente um dano, mas não pode ser considerado como um roubo qualquer. Quer dizer, é um roubo justificado”. (WEBER, 1993, p. 91).  Óbvio que há uma lesão a propriedade de um homem quando se rouba dele, mas seria injusto considerar essa ação como um roubo ordinário. O necessário, segundo Hegel, é viver agora e o futuro está entregue a contingência. Portanto, o direito de emergência é imediato. Ao tratar do direito de emergência há a discussão de Hegel com a filosofia kantiana sobre o problema das exceções acerca do imperativo categórico. O formalismo kantiano não aceita exceções. Pela forma da lei, não há exceções porque senão se admitiria vantagens pessoais, subjetivas e empíricas. As exceções ferem a validade apriorística do imperativo categórico e da lei moral. O formalismo kantiano, portanto, é reconhecido pela impossibilidade de admitir exceções. O conceito contradição em Kant significa justamente abrir exceções a seu favor. Já Hegel considera contradição apenas ações que se contrapõem a um conteúdo histórico determinado. Contradição meramente formal, segundo Hegel, não existe.
Destarte, o direito de emergência é considerado uma das críticas ao formalismo, pois direito de emergência é exatamente o direito de abrir uma exceção em caso de extremo perigo e de necessidade. Kant, na obra A Metafísica dos Costumes, faz uma fundamentação moral do direito, mas quando ele trata do direito de equidade e de necessidade acaba não resolvendo esse problema devido a não efetivação desses direitos. Para Hegel, o Estado não pode deixar de reconhecer o direito de emergência (de necessidade), pois esse direito não é uma concessão, mas um direito. Quando há por um lado o direito a vida e por outro lado o direito de propriedade, o direito de emergência se sobrepõe ao direito de propriedade. Assim, o direito a vida justifica qualquer lesão a outro direito que se opõe a ele. Percebe-se nessa discussão que há uma estrutura hierárquica entre direitos, pois é inevitável a geração de conflitos entre direitos. Hegel ressalta ainda que a vida tem um direito ante o direito abstrato. Dessa forma, a moralidade enfatiza um direito não reconhecido pelo direito abstrato. Isso denota a insuficiência do direito abstrato.
Hegel está preocupado com a discussão em torno do conceito de justiça e não com o conceito de legalidade. Kant tratou do conceito do direito estrito. Hegel, na moralidade, não trata do direito estrito. Kant, para resolver o direito de equidade e de necessidade, se reporta ao direito estrito e não ao direito amplo. Para Hegel, é justificada uma ação injusta no direito de emergência. Com isso, ele supera o formalismo kantiano.
Hegel afirma que “a miséria revela a finitude e, portanto, a contingência do direito assim como do bem-estar. Noutros termos: a existência de uma pessoa particular e o domínio da vontade particular sem a universalidade do direito não são necessários”. (Rph, § 128). Nesse sentido, Hegel avança em relação a Kant. Kant apela, em última instância, para o direito estrito ao discutir sobre o direito de necessidade e de equidade. Hegel, não aceitando a teoria kantiana, ressalta que o direito de emergência mostra a contingência e a insuficiência do direito estrito (positivo formal). A fundamentação moral se impõe para resolver uma insuficiência do direito estrito formal.
O direito no sentido estrito, segundo Kant, se caracteriza pela autorização para coagir. Já no direito no sentido lato, a autorização para coagir não pode ser determinada por uma lei. É no direito no sentido estrito que há o direito de equidade e de necessidade. E para Kant esses direitos são supostos direitos. Hegel trata esses dois direitos como certos e não como supostos. Para Kant, esses dois direitos são concessões; para Hegel, não são concessões, mas direitos.
Para Hegel, o direito de emergência não é culpável e nem punível; para Kant, ele é culpável, mas não punível. Kant, portanto, faz uma dicotomia entre culpa e pena. Hegel, porém, a resolve, introduzindo a categoria do justo e do injusto na moralidade. Kant também introduz essas categorias, mas não resolve o problema da necessidade e da equidade no ponto de vista do direito no sentido amplo. Para Hegel, quem dá o conteúdo para o direito de emergência é a necessidade. Destarte, não há um conteúdo prévio dado. Quem dá o conteúdo à lei ou a interpretação da lei é o conteúdo histórico determinado pelas circunstâncias. O conceito de justiça não está atrelado a legalidade ou ilegalidade. Assim, pode-se agir contra a lei e ser justo.
A moralidade mostra a insuficiência do direito abstrato. Não há mais uma dicotomia entre essas duas esferas. O conceito de direito como normativo tem como princípio fundamental a liberdade enquanto conquista da história. É esse o princípio que se efetiva no direito abstrato, na moralidade e na eticidade. A moralidade não pode contrariar o princípio pressuposto, a saber, o princípio da liberdade. Desta maneira, na moralidade não se deve prender na lei, mas no princípio que orienta toda a estrutura das instituições sociais. É em nome do princípio que se pode transgredir a lei e não em nome do direito abstrato. Recorre-se ao principio para não aplicar a lei. Para Kant, em relação ao direito de equidade e de necessidade, a questão não é a justiça, mas é o direito estrito. Hegel, nesse aspecto, mostra que Kant é insuficiente e ressalta que pode-se sim justificar uma ação contra a lei. No direito de moralidade precisa-se assegurar um direito fundamental: o direito de emergência. Esse direito pode ferir a formalidade jurídica e legalmente constituída. Senão, não se garante o princípio da liberdade e nem se verifica em que medida a moralidade avança em relação ao direito abstrato. O direito de emergência tratado na moralidade hegeliana é um avanço em relação a moralidade kantiana.


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