terça-feira, 9 de outubro de 2012


MAQUIAVEL E O PRÍNCIPE: UMA SÁTIRA CONTRA A TIRANIA

Introdução

            Nos dias conturbados em que vivemos, quando as pessoas não mais acreditam na Política como instituição, em virtude de os políticos a terem degradado, percebe-se como é importante a leitura dos textos maquiavelianos. É evidente que se trata das obras de cunho especificamente político, escritas por Maquiavel no século XVI. Além de O Príncipe e dos Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, é preciso conhecer também os seus escritos políticos e a sua correspondência a amigos, como Francesco Vettori onde explana o seu pensamento político.
            O que o pensador florentino acarreta, imediatamente, é a impossibilidade de que, a partir de então, não se possa mais erigir construções monísticas. Então, cai por terra qualquer idéia que preconize uma única verdade, a solução final para todos os males humanos. No discurso maquiavelianos não há mais um único caminho e se os problemas não puderem ser suplantados isto só pode ser devido a falta de habilidade, ou por estupidez, ou por azar. Este é o conceito fundamental da política ocidental que foi abalado com tamanha violência.
            Ao quebrar a unidade original, Maquiavel ajudou aos homens a se tornarem conscientes da necessidade de fazer uma escolha dolorosa entre alternativas incompatíveis, na prática, ou – e que é ainda pior -  por razões lógicas, na vida pública e privada. A realização maquiaveliana é das mais importantes, seja pelo fato desse dilema jamais ter deixado os homens em paz desde que  surgiu. Na prática, os homens experimentam, muitas vezes, o conflito que Maquiavel tornou explícito: o que era um paradoxo em algo quase corriqueiro.
            Maquiavel sempre professou uma preferência por métodos drásticos, ou por soluções do tipo “tudo-ou-nada” ao lado de um desprezo pela demora, pela improvisação e pela transigência, conjunto de atitudes normalmente mais características de teóricos acadêmicos do que de práticos homens de negócios e políticos. Não raras vezes elogiou a eficácia da hipocrisia e da astúcia aduladora, mas em seus tratos, quer com o seu próprio governo, quer com potentados estrangeiros, ele era normalmente incapaz de esconder os seus sentimentos, capaz de mostrar os seus trunfos e, em negociações, era direto a ponto de ser desastrado.
            Parece ter sido marido e pai bondoso, afetivo e atencioso, como também um amigo verdadeiro e dedicado, um homem de palavra em assuntos de dinheiro, um cidadão admirado e respeitado. Neste sentido, como compreender os seus escritos políticos, eivados  de narrativas cruéis, sangüinolentas? Como entender os seus elogios a Cesare Borgia, homem ambicioso, prepotente e assassino? O que dizer da dedicatória feita a Lorenzo de Medici, a quem oferece o seu controvertido livro O Príncipe? São perguntas que até hoje não têm sido respondidas.
            Este trabalho monográfico tenta levantar o véu das verdadeiras intenções de Maquiavel quando escreveu essa obra, tão criticada e elogiada no decorrer de quatro séculos. Quais foram realmente as intenções do autor? Em O Príncipe, o pensador florentino parece simpático a um regime político monárquico-absolutista. Todavia, nos Comentários ele se manifesta claramente a favor de uma República, portanto por um modelo de governo exercido por muitos. O que isto significa? Maquiavel opta pela monarquia ou pela república? Pode ser denominado “conselheiro dos tiranos”?
            É evidente que este trabalho não pretende, em nenhuma hipótese, superar as interpretações dos mais autorizados teóricos políticos que tentaram desvendar o enigma. O que aqui se pretende é levantar suposições, a partir das afirmações de dois grandes filósofos da época moderna, os quais, em  poucas   linhas  abriram  novas  possibilidades   para  o  esclarecimento  de   reais  intenções  de


Maquiavel. Tais filósofos são Baruch de Spinoza e Jean-Jacques Rousseau, o primeiro descrevendo o assunto em sua obra Tratado político e o segundo no seu livro Do contrato social.
            Em sua primeira parte, esta monografia aborda o aspecto histórico de alguns dos mais importantes acontecimentos dos séculos que precedem o século XV, isto é, os tempos em que viveu Maquiavel. O Renascimento pode ser entendido, sob esse aspecto histórico, como um processo de luz e sombra. Ele acolhe a luz e a alegria da vida, mas também pressente a presença perturbadora das trevas. Deixou de ter força, nessa época a concepção medieval de uma república cristã, dirigida pelo Imperador e pelo Papa, responsáveis, respectivamente, pelo governo temporal e espiritual. A idéia que prospera é a do príncipe absoluto, presente num mundo humanista, agitado e sem meta.
            Em tal transcurso histórico é necessário um perfil renascentista, não deixando de lado o território italiano, dividido em principados seculares e religiosos, em várias tiranias e em regimes republicanos comunais-populares. No restante da Europa, entretanto, formavam-se monarquias nacionais poderosas. Como bem reconhece Chevallier, “a situação política da Itália era propícia ao surgimento de indivíduos plenos de virtù, ao seu desenvolvimento além do bem e do mal” (1986, p. 18).
            Na segunda parte, o trabalho se desenrola em termos da visão histórica maquiaveliana, ou seja, como um homem típico do Renascimento preconizava que a história era a mestra da vida. Nessa direção, Maquiavel explicita que a natureza humana é perversa, isto é, que os homens agem da mesma maneira como sempre agiram os seus antepassados. Não tem nenhum escrúpulo em afirmar as excelências de Cesare Borgia como o modelo do verdadeiro príncipe, aquele que teria todas as condições para unificar o território italiano, tornando-o um Estado forte e respeitado.
            Em tais circunstâncias, que características deveriam dotar o libertador da Itália? Maquiavel responde prontamente: virtù e fortuna. No primeiro caso, a astúcia, a coragem, a bravura; no segundo, ter a capacidade de enfrentar e resistir ao destino. Mas, o que pode um homem em face da sorte? Será útil dispender coragem, ardor, habilidade se o curso de todas as coisas estiver regulado fora de nós? Maquiavel acredita que o homem pode  e  deve  resistir  à  fortuna,  preparar-lhe, com a sua virtù, rudes obstáculos; até é conveniente, em sua presença, que se mostre impetuoso.
            Concluindo a terceira parte desta monografia, destaca-se que Maquiavel representa um marco extraordinário: ele é o primeiro a relatar amplamente o que é a atividade política, afastando-se de antigas tradições que debatiam o que a política deveria ser. Em suas reflexões, o pensador florentino utiliza um exame essencialmente empírico. Ele mesmo parece ter a pretensão de ser radicalmente novo. O fato é que o autor de O Príncipe tornou-se, através dos tempos, uma figura legendária, porém, acoimado de demoníaco, inescrupuloso, astuto e dessimulador.
            É o que Spinoza e Rousseau tratam de negar. Para ambos, Maquiavel, na verdade, procurou alertar o povo sobre as crueldades dos tiranos de seu tempo. Os seus escritos políticos constituem uma espécie de advertência para aqueles que acreditavam no direito da força sobre a força do direito. Assim como se diverte por meio de suas sátiras na peça teatral A mandrágora, Maquiavel utiliza toda a sua criatividade para pôr em xeque a pretensa legitimidade dos principados leigos e eclesiásticos.

I – Expansão no tempo e no espaço

            Este trabalho carrega um título de um mero ensaio, pois há suficiente clareza da tarefa extraordinariamente grande. Os contornos espirituais de uma época cultural oferecem, talvez, a cada observador imagem diferente e, em se tratando do conjunto de uma civilização que é a mãe da nossa e que sobre esta ainda hoje segue exercendo a sua influência, é mister que juízos subjetivos e sentimentos interfiram a todo momento, tanto na escrita quanto na leitura desta monografia. No vasto mar ao qual nos aventuramos, são muitos os caminhos e direções possíveis; o assunto é, em si, suficientemente importante para tornar desejáveis muitas outras investigações e exortar pesquisadores dos mais diversos pontos de vista a se manifestarem. Entrementes, qualquer atenção paciente a esta monografia, e a compreensão decorrente, entende-se já ser um retorno ao esforço aqui empregado.
            Em finais do século XV não se pode deixar de ter a impressão de que a história européia, e mesmo mundial, se acelera de um modo extraordinário. Em 1490, um europeu pode ter uma idéia satisfatória da Europa e dos países que circundam o Mediterrâneo. Tem igualmente uma vaga noção do resto da África e da Ásia, mas são noções que não podem combinar-se num todo coerente. Do mesmo modo, afirma que a Terra é sem dúvida redonda, mas não sabem bem quais são as suas dimensões.  Depois,  num  espaço de  trinta  anos,  tudo  muda.  Em  1492,   Colombo atravessa   o


Atlântico e descobre as Antilhas: nos anos que se seguem, chega ao continente americano. Em 1498, Vasco da Gama dobra o cabo da Boa Esperança e abre o caminho marítimo para a Índia. Em 1500, Pedro Álvares Cabral aproa à costa brasileira. Em 1519, Cortez desembarca no México e dá início à conquista organizada do continente. Por fim, em 1522, as naus de Magalhães concluem a primeira volta ao mundo, depois de uma viagem que durou três anos. Nunca trinta anos modificaram tanto a face do mundo.
            Na realidade, a mudança faz-se em duas direções. Por um lado, o mundo atinge proporções difíceis de imaginar. O processo já tinha começado nos anos anteriores, com a descoberta do mundo greco-romano: a memória recentemente adquirida multiplicava por dez ou por vinte a duração da história e, correlativamente,  a estrutura da humanidade. Agora, a expansão no tempo acrescenta-se a expansão no espaço. Ao Mediterrâneo vêm juntar-se os oceanos Atlântico, Índico e Pacífico; a Europa vê-se confrontada com a América, a África e a Ásia. O mundo era muito grande, não só em relação à idéia que dele se tinha, mas também devido à lentidão das deslocações (que nos séculos posteriores não deixará de ir diminuindo constantemente). As viagens já não duram meses, mas anos. Por outro lado, porém, o mundo pode começar a aperceber-se de que é infinito e dar os primeiros passos para a sua unificação. Antes não se ia tão longe, mas, como o mundo continuava a ser na sua maior parte desconhecido, podia pensar-se que era infinito. As descobertas geográficas continuaram, é certo, até ao século XIX, mas já só se trata de eliminar, um após outro, os espaços em branco de um mapa onde os contornos de conjunto já se encontram traçados. Quanto à unificação, a viagem de Magalhães não passa de um primeiro e tímido passo; permite-nos, porém, conceber e imaginar essa unidade que também irá aumentar com o avanço das comunicações.
            “Os literatos europeus sabem as notícias através dos relatos dos próprios viajantes, ou pelos autores das crônicas que ficaram em terra e que recolheram relatos orais. Na verdade, e por mais paradoxal que isso possa parecer, os relatos precedem as viagens”(GARIN, 1991, p. 231). Desde a Alta Idade Média que relatos mais ou menos fantasiosos gozam do favor do público e mantêm desperta a sua curiosidade. Vem-se a saber, por exemplo, que “o monge irlandês São Brandão levou


sete anos para alcançar o paraíso terrestre, depois de ter enfrentado todos os perigos e encontrado toda a espécie de seres sobrenaturais”(GARIN, 1991, p. 231). No início do século XIV, Marco Polo, regressando de uma viagem vindo da China , deixa-nos o Livro das Maravilhas que, embora não penda para o sobrenatural, justifica o seu título. Ainda um pouco mais tarde, John Mandeville escreve Viagem de Ultramar, uma miscelânea inextrincável de fatos reais e de fabulosas invenções em que também descreve o paraíso terrestre. Na mesma época multiplicavam-se os compêndios, Cosmografias ou Imagens do Mundo (entre os quais os célebres Imago Mundi, do cardeal Pierre d'Ailly), que inventariam os conhecimentos sobre todos os países e povos da Terra. Estas obras são pois bem conhecidas e preparam os relatos dos novos viajantes, que as considera, aliás, como informações seguras: [...] e é assim que Colombo parte levando cartas para o Grande Khan, descrito por Marco Polo, e Vasco da Gama faz o mesmo para o Prestes João, personagem lendária, habitante das Índias, segundo o relato de Mandeville. (GARIN,1991, p. 231 – 232)
            Leitores e ouvintes não ficam, portanto, verdadeiramente impressionados quando chegam até eles os primeiros relatos das novas descobertas e é de crer que o mesmo se passasse com os próprios viajantes, que também tinham sido leitores e ouvintes. Há para isso uma segunda razão, e não apenas a popularidade dos relatos antigos, que tem a ver com uma particularidade da história européia. As condições geográficas do Mediterrâneo asseguram o contato entre populações muito diferentes, tanto do ponto de vista físico como cultural: europeus cristãos, mouros e turcos muçulmanos, africanos animistas. No Renascimento, a essa heterogeneidade geográfica veio juntar-se a tomada de consciência por parte dos europeus da sua heterogeneidade histórica: de fato, começam a considerar-se os herdeiros de duas tradições muito diferentes, a greco-romana, por um lado, e a judaico-cristã, por outro; esta, de resto, já deixou de ser monolítica, dado que representa o exemplo singular de uma religião baseada numa outra (cristianismo e judaísmo). Por outras palavras, os europeus, baseados no seu passado e no seu presente, já conhecem bem a pluralidade das culturas: têm, em certo sentido, um compartimento  vazio  onde  podem  colocar  as  populações recentemente descobertas, sem que isso perturbe a sua imagem global do mundo.
            É o que se nota claramente, por exemplo, durante a conquista espanhola da América. Quando os conquistadores descobrem lugares de culto, chamam-lhes espontaneamente mesquitas, automatismo que deriva do fato de esse termo começar a designar qualquer templo que funcione para uma religião não cristã. Quando os espanhóis descobrem uma cidade de certa importância, chamam-lhe imediatamente o grande Cairo. Há inúmeros viajantes e relatos de viagens: durante o século XVI, em todos os principais países europeus, contam-se às centenas. Naturalmente, a diversidade é grande, o que se explica, em parte, pela diversidade dos países visitados.
            Concluindo, evidenciam-se três grandes pólos. Em primeiro lugar, a América, a mais estranha, a mais selvagem. Na direção oposta, a China, que naquela época se tem dificuldade em penetrar, mas cujos habitantes não são decerto selvagens. Por fim, a Turquia, encarnação do mundo muçulmano, próxima mas enigmática, odiada e temida (HELLER, 1994, p. 52). Aliás, a Turquia é o país que suscita maior interesse, contrariamente ao que hoje se poderia imaginar. Outra causa dessa variedade é a própria natureza da viagem: o país é diferente quando é visto pelos olhos do conquistador ou do missionário, do comerciante ou do simples curioso, e também se viaja porque foi decidido ou porque foi obrigado a empreender o caminho do exílio. Existem também, evidentemente, diferenças nas personalidades dos viajantes e na qualidade dos seus textos bem como uma grande variedade nos retratos de indígenas que daí emergem.

1.1 – Renascimento de luz e sombra

A Renascença no sentido estrito da palavra, é um movimento intelectual que se inicia no fim do século XV, desenvolvendo-se nos cinco primeiros lustros do século XVI, e que visa sacudir as disciplinas intelectuais da Idade Média. “Se há luz, há também  sombra.  O  Renascimento,  que  tão


jovial acolhe a luz e a alegria da vida, também pressente a presença perturbadora da treva” (ABRÃO, 2004, p.154). Conforme Heller,

[...] o conceito de Renascimento significa um processo social total, estendendo-se da esfera social e econômica, onde a estrutura básica da sociedade foi afetada até ao domínio da cultura, envolvendo a vida de todos os dias e as maneiras de pensar, as práticas morais e os ideais éticos quotidianos, as formas de consciência religiosa, a arte e a ciência [...] (1994, p. 52).


            Da Vinci é mestre na técnica de sfumato, no qual a claridade vai se obscurecendo gradativamente. Michelangelo é autor de Juízo Final, na Capela Sistina, a mais célebre realização sobre esse tema, muito comum na época. A busca da eternidade pela fama convive com o peso do pecado, da morte, e com a sensação de insignificância da vida. “Macbeth, personagem de Willian Shakespeare, murmurou no famoso monólogo: A vida é uma sombra errante, um pobre ator que gesticula em cena por uma hora ou duas e depois não é mais ouvido. Uma história contada por um idiota, cheia de bulha e fúria, que não significa nada” (ABRÃO, 2004, p. 154).
            Deste modo, “não há uma experiência histórica renascentista, há várias. Não há um Renascimento, há múltiplos” (SEVCENKO, 1994, p. 154). O mais característico desse fenômeno histórico é, pois, a rica variedade das suas manifestações, assemelhadas algumas práticas e produções entre si, contrastantes outras, convergentes ainda algumas e contraditórias inúmeras. Deixado sob condições de relativa liberdade para que apontassem novos rumos e valores em uma sociedade em processo rápido de mudança, esses criadores fizeram múltiplas escolhas:

"temos a técnica e a matemática em Brunelleschi, a sensualidade em Boccaccio e Lourenço Valla, o misticismo em Santa Tereza e São João da Cruz, a angústia da fé em Lutero, a autodisciplina em Loyola, o controle racional em Thomas Morus e Campanella, o civismo em Guicciardini, o poder em Maquiavel, a observação e a análise profunda em Da Vinci, o furor em Michelangelo, a ironia em Erasmo, o delírio condenatório em Bosch, a visão apocalíptica em Dürer" (SEVCENKO, 2004, p. 84).

E, ainda assim, cada um desses personagens era infinitamente mais complexo, se os olharmos com mais detalhes. Cada um, por sua vez, tinha múltiplas facetas. Por conseguinte, é claro que as sociedades elegeram algumas dessas opções e as adotaram, incorporando por completo todos os seus elementos e sua significação, porque conduziam com os novos interesses que se tornavam predominantes.
            No período entre os séculos XI e XIV o Ocidente europeu assistiu um processo de ressurgimento do comércio e das cidades. O estabelecimento de contatos constantes e cada vez mais intensos com o Oriente, inicialmente através das Cruzadas e em seguida pela fixação ali de feitorias comerciais permanentes, garantiu um fluxo contínuo de produtos, especiarias e, sobretudo, de um estilo de vida novo para a Europa. A criação deste eixo comercial dava origem a novas condições que tendiam a progressivamente dissolver o sistema feudal que prevalecera até então. Destarte, surgiam os grandes burgos e por conseguinte, a economia de subsistência e de trocas naturais tendia a ser suplantada pela economia monetária, a influência das cidades passou a prevalecer sobre os campos, a dinâmica do comércio a forçar a mudança e a ruptura das corporações de ofícios medievais. A nova camada dos mercadores enriquecidos, a burguesia, procurava de todas as formas conquistar  poder político e prestígio social correspondentes a sua opulência material.
         Por volta do século XIV, entretanto, todo esse processo de crescimento entrou em colapso. Os fatores que têm sido apontados pelos historiadores como os principais responsáveis pelo refluxo do desenvolvimento econômico são: a Peste Negra, a Guerra dos Cem Anos e as revoltas populares. Essa crise do século XIV tem sido denominada também crise do feudalismo, pois acarretou transformações tão drásticas na sociedade, na economia e na vida política da Europa, que praticamente diluiu as estruturas feudais ainda predominantes e reforçou, de forma irreversível, o desenvolvimento do comércio e da burguesia. A Peste Negra foi, sem dúvida, um efeito de precárias condições de vida e higiene existentes nos burgos da Baixa Idade Média e exterminou cerca de um terço até a metade da população européia. A mortalidade foi ampliada  pela  disputa  secular  (1346-
1450) entre os soberanos da França e da Inglaterra, na Guerra dos Cem Anos. A grande mortalidade, decorrente da peste e da guerra, procedeu à desorganização da produção e dessiminou a fome pelos campos e cidades – razão das grandes revoltas populares que abalaram tanto a Inglaterra e a França, quanto a Itália e a Flandres nesse mesmo período.
            Havia, porém, outras razões para as revoltas populares. Com o declínio demográfico causado pela guerra e pela peste, os senhores feudais passaram a aumentar a carga de trabalho e impostos aos camponeses remanescentes, a fim de não diminuir seus rendimentos. Era contra essa super exploração que os trabalhadores se revoltavam. A solução foi adotar uma forma de trabalho mais rentável, através da qual poucos homens pudessem produzir mais. Adotou-se então, preferencialmente, ao trabalho assalariado, o arrendamento, ou seja, os servos foram liberados para vender seus excedentes no mercado das cidades.

1.2 – A ideia do Príncipe Absoluto

A concepção medieval de uma República cristã, dirigida, na parte temporal, pelo Imperador e, na espiritual, pelo Papa, que se auxiliavam mutuamente, embora não desaparecesse, deixou de ter força. O individualismo do Renascimento manifesta-se, na política, pela organização da Europa num sistema de Estados. A Itália continua dividida, sem dúvida porque as suas cidades-Estados estavam constituídas de forma sólida, sem laços de dependência mútua e numa situação de equilíbrio sem que se impusesse a necessidade de unificação. A monarquia absoluta resulta da rivalidade de duas classes: a burguesia e a nobreza. A luta de classes é talvez o principal fator do desenvolvimento das monarquias absolutas. A maior parte dos Estados Europeus evolui  no  sentido da monarquia absoluta.
 [...] É o regime em que o rei, encarnando o ideal nacional, possui além disso, de direito e de fato, os atributos da soberania: poder de decretar leis, de prestar justiça, de arrecadar impostos, de manter um exército permanente, de nomear funcionários, de julgar os atentados contra o bem público e, em especial, a autoridade real por meio de jurisdições de exceção emanadas do seu poder de justiceiro supremo (MONSIER, 1960, p. 107).

            A idéia de monarquia absoluta acrescenta-se, sem destruí-las, “às velhas idéias de contrato e de costume, que regulamentavam as relações dos reis com seus vassalos e súditos e que, ao mesmo tempo, a temperavam” (MONSIER, 1960, p. 107). Estes grandes Estados são, aliás, vivificados e unificados por um poderoso sentimento de patriotismo, que se mescla, de forma estranha, ao patriotismo local e ao sentimento de fidelidade em relação ao príncipe suserano. Tal patriotismo, já muito antigo, encontra campo para se expandir devido às grandes lutas com o estrangeiro, que leva a tomar consciência dos interesses comuns, devido à ação dos funcionários reais, às novas relações econômicas e, mais ainda, por causa da influência dos humanistas sobre os cortesãos e os grandes burgueses, que marcam o diapasão. O humanismo fornece a este sentimento, que nasce no íntimo do indivíduo, provocado por uma reação do homem ao meio, motivos suplementares: mais nitidez, mais precisão, mais forma e, portanto, uma força dobrada.
            O progresso da monarquia absoluta não deve ser pensado conforme o  desejo natural dos reis de aumentarem o seu poder. Segundo Monsier:

O Direito Romano já contribuíra, no século XIII, com a idéia do Príncipe Absoluto que concentra na sua pessoa todos os poderes e cuja vontade faz lei. A voga da Antiguidade dá, no séc. XVI, novo surto ao Direito Romano, acrescentando-lhe a idéia antiga do herói, do semideus dominador e benfazejo (1960, p. 110).

Contudo, não são apenas as representações mentais que se impõem ao indivíduo e lhe determinam doravante seus atos. “O Direito Romano  deveu  seu  êxito  ao  fato  de  ter  apresentado fórmulas cômodas para exprimir as tendências profundas dos contemporâneos” (MONSIER, 1960, p. 110). O herói é o modelo de ser a quem os povos têm necessidade de se entregar. A doutrina do absolutismo corresponde às necessidades dominantes dessas sociedades e há como que  um desejo do corpo social.
            Enfim, a necessidade de um poder forte é imposta, inicialmente, pela luta das nações. Com a constituição de grandes Estados, suficientemente poderosos para que seus chefes não mais sejam absorvidos pelas lutas internas e possam consagrar-se à ampliação externa de seu poderio, com o progresso desses Estados, no sentido da Constituição de unidades econômicas, começam as grandes guerras pela preponderância econômica e política. A guerra impõe o fortalecimento da autoridade, governo de decisões rápidas e prontamente executadas por todos e em toda parte.

1.3 – Humanismo agitado e sem meta

Segundo Padovani e Castagnola, a Renascença é uma poderosa afirmação,

[...] particularmente no campo da prática, de humanismo e de imanentismo, o que é manifestado pelo seu individualismo, pelo seu estetismo, pelo seu ardente interesse pelo mundo a conquistar, dominar, gozar com meios humanos; pelo seu naturalismo que diviniza o homem material – como já aconteceu no paganismo antigo, para o  que o humanismo, de fato, apela, e da qual parece um retorno (1956, p. 207).

            Entretanto, falta ao Humanismo moderno a espontaneidade e a serenidade do paganismo antigo: “o Humanismo moderno não descansará em um tranqüilo gozo da vida, mas procurará alimento no ativismo agitado e sem meta, característico da idade moderna” (PADOVANI e CASTAGNOLA, 1956, p. 207). É que, entre o paganismo  antigo  e  o  paganismo  novo,  medeia  a
mensagem cristã. Esta revelou ao homem a sua profunda limitação e, portanto, tornou mais vivo o senso do sofrimento e resolveu o problema da vida e do mal – problema que se apresenta fatalmente a todo homem – não eliminando a dor, mas valorizando-se através da cruz. Poder-se-á, portanto, também depois do cristianismo, viver pagamente e ainda mais pagamente – e a história da civilização moderna pode documentá-lo – mas não se poderá conquistar a ignara serenidade pagã, pois a revelação da cruz está a separar os dois mundos.
            O Humanismo pode, com razão, definir-se pela palavra: “[...] o homem potenciado, celebrado, exaltado até a divindade, livre de si mesmo, dominador da natureza, senhor do mundo”(PADOVANI e CASTAGNOLA, 1956, p. 207). É, logo, um paganismo ainda mais radical que o antigo porquanto espiritual e interior. Dar uma documentação formal desse caráter pagão, imanentista, do Humanismo e da Renascença não é coisa fácil, pois trata-se de um período inicial, em que se entretecem motivos múltiplos, e, sobretudo, o velho persiste ao lado do novo, dando origem àquela duplicidade especulativa e prática, tão característica dos homens da época.
            Mas o início do Humanismo e da Renascença é rico de todos os germes que se desenvolverão no sucessivo período moderno, imanentista, em que se poderá claramente conhecer a árvore pelos frutos. É uma multiplicidade de motivos indiscutivelmente dominado pelo espírito panteísta do neoplatonismo, que atravessou toda a Idade Média; entretanto, na Idade Média, tal espírito era corrigido, religiosamente, pela teologia católica e, racionalmente, pela escolástica tomista. “[...] é uma dualidade composta de velho e de novo, em se considerar, em geral, o ideal da vida daquela época que chamava virtude à força, e enaltecia não o Pobrezinho de Assis e sim o Príncipe Valentino Cesare Borgia” (PADOVANI e CASTAGNOLA, 1956, p. 208), tendo presente Maquiavel, que o Estado, mera obra do homem, é o vértice da humanidade, estando acima da religião e da moral transcendente, e prefere o paganismo ao cristianismo. É o exemplo de Giordano Bruno, o qual parece reconhecer a obscuridade e a incoerência do seu pensamento, mas tem consciência de que a sua doutrina – racionalista, monista e humanista – é um crepúsculo preludiando o dia e não a noite.
            Essa é a alma, o significado, não o valor do Humanismo e da Renascença: uma alma pagã. Não há, ao lado do humanismo pagão, um humanismo cristão, que seria uma contradição em termos. Entretanto, existem homens cristãos ao lado de homens pagãos, e tem-se a valorização dos elementos humanistas conciliáveis com o cristianismo. Esses elementos são essencialmente formais e estéticos porque a grande valorização cristã da civilização clássica – do pensamento grego e do jus romano – era já um fato consumado. E os elemento novos do humanismo – a ciência, a técnica, a história, a política – não se podem dizer imanentista antes que cristãos, pois, em si mesmos, são infra-filosóficos e, portanto, indiferentes a qualquer concepção da realidade.
            Por fim, o renascimento cristão, a unidade real e potencial dos grandes valores da civilização no valor sumo da religião, não é obra dos séculos XV e XVI, mas do século XII que se abre com Inocêncio III e se encerra com Dante, e viu Francisco de Assis e Antonio de Lisboa, Domingos de Gusmão e Tomás de Aquino. Unidade real e potencial, porquanto, como já assimilara em si mesma os bens (espirituais e ideais) da civilização antiga, ainda mais estava em condições de acolher os bens (materiais e infrafilosóficos) da nova civilização.

1.4 - O típico homem do renascimento
           
            O Renascimento é sobretudo uma afirmação renovada do homem, dos valores humanos e nos vários domínios: desde as artes à vida diária. Não é por acaso que aquilo que mais impressiona nos escritores e nos historiadores, desde as origens, é essa preocupação com os homens, com o seu mundo, com a sua atividade no mundo. A célebre frase de Jacob Burckhardt, segundo a qual “a civilização do Renascimento é a primeira a descobrir e a realçar totalmente a figura rica do homem”
(1991, p. 22) está impregnada de retórica e se tornou quase insuportável nos dias de hoje, não deixa de ser verdade que enterra as suas raízes numa realidade em que as histórias dos homens, os casos dos homens, as figuras e os próprios corpos dos homens, ocupam um lugar central, em que pintores e escultores retratam inesquecíveis figuras humanas e em que os filósofos repetem: “Grande milagre é o homem (magnum miraculum est homo)” (GARIN, 1991, p. 22).
            O Renascimento durou, portanto, cerca de dois séculos e meio; local de nascimento, sobretudo de algumas cidades-Estado da Itália. São estas as coordenadas onde se deve procurar e situar, embora com características bem definidas, o homem do Renascimento, ou seja, uma série de figuras, que nas suas atividades específicas põem em prática, de modo análogo, características novas:

[...] o artista, que não é apenas artífice de obras de arte originais, mas que através da sua atividade altera a sua posição social, intervém na vida da cidade, especializa as suas relações com os outros; o humanista, o notário, o jurista, que se tornam magistrados, e que com os seus escritos influem na vida política; o arquiteto que negocia com o príncipe para construir fisicamente a cidade (GARIN, 1991, p. 11)

            Por conseguinte, Burckardt, que foi um dos criadores do conceito de homem do Renascimento (1991, p. 12), misturou continuamente – e não sem equívoco – dois temas diferentes, embora estreitamente ligados entre si. O primeiro é a atenção que, no Renascimento, se centra no homem com uma intensidade sem igual, para o descrever, exaltar, colocar no centro do universo. É o desenvolvimento de uma filosofia do homem, que implica uma teoria da sua formação, da sua educação. É o esboço de uma nova pedagogia não isenta de preocupações políticas.
            Outra coisa, porém, é a manifestação, num momento de crise e de transformação de uma sociedade, de uma riqueza singular de tipos relacionados com novas formas e especificações de atividades. Surgem, então, nas oficinas dos artistas e nas escolas dos humanistas, figuras originais,  que mudando as atividades, transformam-se em  homens novos, que também degeneram – e que de modelos se transformam em máscaras,  personagens  de  farsa,  objetos  de  troça.  Por  conseguinte,

"[...] é o pintor ou o escultor fantasista e estranho, sutil e profundo, que cria fraudes extraordinárias, que põe em crise a identidade pessoal e os próprios fundamentos da existência; é o humanista que se torna um pedante insuportável, a outra face do homem erudito que se transforma em objeto de sátiras e comédias" (GARIN, 1991, p. 11).

            Burckhardt tende a unificar – mesmo correndo o risco de confundir – a elaboração de uma nova filosofia do homem com o interesse pela história dos homens em sociedade. A exagerada curiosidade do homem em relação ao homem, típica do Renascimento, radica-se, portanto, numa nova concepção do homem no mundo. Os italianos, observa o historiador, foram os primeiros europeus que revelaram uma tendência decisiva para descrever exatamente o homem histórico nos seus traços e nas suas qualidades interiores e exteriores e que se comportaram em função dessa tendência. Não se limitaram à descrição do lado moral dos homens e dos povos, também o homem exterior é objeto de observação atenta e minuciosa. Por isso insiste demoradamente no olhar artístico com que, em documentos de todos os gêneros, mesmo os mais impensados, vemos  perfilarem-se  indivíduos e tipos.
            No seu extenso trabalho, intitulado precisamente El hombre del Renacimiento, editado em Budapeste, Ágnes Heller, aluna de Lukács, afirma que o Renascimento foi a época das grandes biografias, ou melhor, a época das autobiografias. E isso, acrescenta ela, porque muitas figuras excepcionais iam aparecendo numa sociedade que se construía, se transformava e se relatava a si própria. A um momento estático – continua Heller – sucedera um momento dinâmico. O homem novo, o homem moderno, era um homem que se ia fazendo, construindo, e que estava consciente disso. Era, precisamente, o homem do Renascimento.
            Enfim, de sua parte, Eugenio Garin (1991) assiná-la que em primeiro lugar, e esse é sem dúvida o elemento de maior dramaticidade, o príncipe do Renascimento aparece como alguém que normalmente se comporta de uma maneira cínica, cruel e egoísta com os outros, fossem eles quem fossem: súditos, conselheiros, outros soberanos e mesmo  membros  da  sua  família.  Em  segundo
lugar, nestas histórias o príncipe revela, muitas vezes, um certo desprezo pelo conceito medieval de cristandade e, sobretudo, rejeita a visão de uma sociedade hierárquica e ordenada colocada sob as duas espadas, do papado e do império. O senhor do Renascimento já não é um príncipe, no sentido feudal do termo, mas, de acordo com as concepções de Maquiavel e de outros pensadores políticos, que remetem para a tradição clássica, um soberano independente, que confia mais na sua inteligência e nos seus recursos do que nos seus superiores e na posição que lhe é proporcionada por Deus numa sociedade piramidal. Em terceiro lugar, e talvez mais positivamente, o príncipe do Renascimento parece enfrentar os assuntos do governo com um novo espírito: mostra-se relutante em conformar-se com os costumes tradicionais e dispostos, entusiasticamente, à mudança. Assim exerceria uma maior influência na evolução do Estado.

1.5 – Maquiavel e a Itália dividida

         Maquiavel, nome próprio universalmente conhecido que teria de formar um substantivo, “maquiavelismo”, e um adjetivo, “maquiavélico”, evoca uma época, a Renascença; uma nação, a Itália; uma cidade, Florença; e enfim, o próprio homem, o bom funcionário florentino que, na maior ingenuidade, na total ignorância do estranho futuro, trazia o nome de Maquiavel, votado à reputação mais ruidosa e mais equívoca. A Itália dos séculos XV e XVI era uma colcha de retalhos onde uma série de cidades-livres como Milão, Gênova, Florença e outras conviviam com os Estados Pontifícios controlados diretamente pela Igreja. Também foi palco de uma série de invasões estrangeiras que se deram a partir de 1494, ocorrendo até o terrível saque de Roma feito em 1527 por tropas do imperador Carlos V.
            Internamente, a península italiana estava dividida em principados seculares e religiosos, em várias tiranias e em regimes republicanos comunais-populares, além da histórica rivalidade entre Guelfos e Gibelinos. No resto da Europa, entretanto, formavam-se monarquias nacionais poderosas, nas quais os reis, ao contrário do que se passava na Itália, concentravam cada vez mais poder e autoridade, sobrepondo-se à alta nobreza e à influência da Igreja. Havia, pois, múltiplos poderes: o da Igreja Católica, o dos nobres, o das cidades-livres, o dos tiranos, e o dos reis estrangeiros, contribuindo isto tudo para um clima de dilaceramento e perturbação geral, fazendo com que tal situação trouxesse muitos padecimentos à Itália. É de supor-se que a longa descrição que Dante fez do Inferno na sua Divina Comédia (aparecida entre 1313-1316) tenha sido resultado do seu desgosto com a situação em que sua amada península se encontrava.
            “A situação política da Itália era propícia ao surgimento de indivíduos plenos de virtù, ao seu desenvolvimento além do bem e do mal” (CHEVALLIER, 1986, p. 18). O sentimento da italianidade, obscuro na maioria, claro em alguns espíritos raros, juntamente com o orgulho da herança romana, achava-se abafado por uma poeira de principados efêmeros. Ao redor de quatro eixos fixos, Roma, Veneza, Milão e Florença, havia uma multidão de Estados, proliferando, pulando, apodrecendo, fazendo-se, desfazendo-se, refazendo-se, às mais das vezes com o auxílio dos estrangeiros, franceses e espanhóis, que tinham invadido a Itália. Não obstante, a Roma pontifical, que oferecia (em particular sob Alexandre VI) o menos edificante, o menos evangélico dos espetáculos, empregava também, quando oportuno, exércitos estrangeiros, como qualquer outro meio conveniente para aumentar, quer a sua propriedade temporal, quer os domínios dos filhos, irmãos, sobrinhos, primos do soberano Pontífice. Os condottieri[1], que alugavam pela melhor oferta seus bandos mercenários, esforçavam-se por aumentar a duração das guerras e arranjavam-se para saquear ainda em tempo de paz. Tal era a Itália em fins do século XV, devastada por dissenções e crimes, no meio das mais esplêndidas florações artísticas que a humanidade jamais conheceu, desde os tempos antigos.
            A incomparável Florença, na primavera tão suave, de atmosfera seca e leve, propícia as idéias claras e aos juízos lúcidos, fora, mais do que qualquer outra cidade, devastada pelas contendas das facções, até que os Médicis, família de ricos banqueiros – a partir de 1434, com Cosmes, - se apoderassem do Poder. Lorenzo, embora merecendo o nome de Magnífico, devido ao gosto pelas artes (ele próprio era poeta), pela caça, pelos vinhos finos e pelas mulheres, consumara a ruína das antigas liberdades públicas, tão caras aos corações florentinos. Contra ele, malogrou uma conjuração (dos Pazzi), em 1477.

Pôde ver-se – e Maquiavel, que contava nove anos, pôde ver - os corpos do Arcebispo de Pisa, Salviati, e de Francisco Pazzi, suspensos às janelas do Palácio da Senhoria, enquanto o rio Arno arrebatava o cadáver de Jacó Pazzi, antes arrastado pelas crianças, ao extremo de uma corda, pelas ruas da cidade. (CHEVALLIER, 1986, p. 19).

Lorenzo morre em 1492 e seu sucessor Pedro tem de fugir em 1494, diante do povo revoltado contra o acordo que estabelecera com o rei da França, Carlos VIII. Restabelece-se a República em Florença. Mas, para cair, durante três anos, nas mãos do monge dominicano Jerônimo Savonarola, profeta ascético, mesquinho e veemente, que agitava, ao pregar sobre temas do Apocalipse. Sua pregação fascinou os inconstantes florentinos que só pensavam em viver e em gozar. Savonarola só lhes fala de morte e eles o seguem; as mulheres renunciam às jóias, às toilettes; durante a Quaresma de 1497, a multidão lança ao fogo da Inquisição, por penitência, inúmeros livros e obras artísticas. O religioso, senhor de Florença sem título oficial (como mais tarde Calvino em Genebra), ali estabelece uma democracia teocrática e puritana. Austeridade, sob pena de castigo; grupos de crianças praticam espionagem nas casas e denunciam os pecadores. O espírito da Reforma sobressalto da consciência cristã, mas de uma Reforma operada no interior da Igreja por monges ascéticos, sopra nesse exagerado Savonarola, devorado pelo ódio do vício. Ele anatematiza a ambição e a luxúria de Roma papal; recusa o chapéu cardinalício e injuria o Papa Alexandre VI Não quer, proclama ele, senão “o que foi concedido a  todos  os santos,  a  morte,  um chapéu rubro, um chapéu de sangue” (CHEVALLIER, 1986, p. 20). Sua aventura terminará, de fato, pela morte, depois de peripécias dramáticas: processo e torturas. É enforcado e queimado, com dois de seus fiéis, a 23 de maio de 1498; todos os florentinos o haviam abandonado. Esse estranho episódio serviria para curá-los definitivamente de todo acesso de misticismo.
            Simbolicamente, poucos dias após o suplício do frade dominicano, a 15 de junho de 1498, Nicolau Maquiavel, aos vinte e nove anos de idade, entra oficialmente na vida pública, como secretário da segunda Chancelaria da República florentina. Pertence a uma excelente família da burguesia toscana;  o pai é um grave jurisconsulto. Em breve, sem deixar a segunda Chancelaria, é colocado, como secretário, à disposição dos Dez de Liberdade e de Paz, magistrados eleitos, encarregados de diversos serviços públicos e, em particular, da correspondência com os representantes de Florença no estrangeiro.
            Medíocre é a situação, bem mal remunerada, de Nicolau Maquiavel, e medíocre é a sua vida. Vida de funcionário, de burocrata, que executa ordens, debate-se entre mesquinhas intrigas de colegas e preocupações financeiras. Não é, em absoluto, como às vezes se julga, e como se tem dito pomposa e erroneamente, uma vida de diplomata, de embaixador. Sem dúvida, deve-se tal confusão ao fato de que Maquiavel, como sucede aos funcionários superiores dos ministérios, freqüentemente se viu encarregado de missões, quer no estrangeiro, quer na própria Itália. Em geral, desincumbia-se  às maravilhas de tais funções, o que lhe permitiu assumir segura influência oficiosa sobre a diplomacia florentina. Além disso, tendo os olhos singularmente abertos e sabendo observar o fundo das coisas sob as diversas máscaras com que se apresentam, deveu a tais missões singular lucidez em matéria de temperamentos nacionais, e de relações entre os povos. Conheceu assim a França de Luíz XII, a Alemanha do imperador Maximiliano, notável pela riqueza das cidades e pelo espírito militar dos habitantes. Seus soldados, escreve Maquiavel, “nada lhes custam, pois todos os habitantes são armados e exercitados” (MAQUIAVEL, s/d, p. 80). O problema de organizar uma milícia preocupava constantemente Maquiavel, que obteve dos  Dez  o  encargo  de  organizar  uma tropa formada por cidadãos florentinos, que permitiria à República livrar-se dos mercenários.
            Na própria Itália, uma das missões de Maquiavel aproximou-o, em 1502, de Cesare Borgia. Duque de Valentinois, filho do Papa Alexandre VI, Cesare, cardeal aos dezesseis anos, decididamente sem vocação, renunciara suas dignidades eclesiásticas a fim de tentar constituir na Itália central um vasto domínio principesco. Modelo acabado de grande fera da Renascença, monstro encantador, produziu em Maquiavel inesquecível impressão. Achava-se em bom caminho a carreira do secretário florentino, após quatorze anos de serviço inteligentes e devotados, quando de novo se alterou o regime de Florença (1512). A República, absorvida nos redemoinhos da luta entre a Papa Júlio II e o rei da França, Luís XII, teve sua milícia dizimada pelas forças da Liga Pontifical. Os partidários dos Médicis aproveitaram-se do desastre para restabelecer os magníficos Medici em todas as honras e dignidades de seus antepassados. Maquiavel, funcionário da República, foi destituído de todas as suas funções e banido de Florença.
            “Tudo está perdido, mas tudo se ganhou. Maquiavel perdeu seu lugar, mas nós ganhamos Maquiavel” (CHEVALLIER,1986, p. 22). É claro que, sem esse infortúnio, o secretário florentino, como sempre será designado, não acharia oportunidade para escrever a sua obra. Esta compreende, em primeiro lugar, os Discursos sobre a primeira Década de Títo Lívio; Maquiavel, a proprósito da História Romana (história de um povo ambicioso), compôs um verdadeiro tratado de ciência política, inacabado, sobre o governo republicano. Seguem-se a História de Florença, o Tratado sobre a Arte da Guerra. Sem esquecer, bem entendido, a pequena obra, “opúsculo”, como a qualifica o próprio autor, escrita de certo modo à margem dos Discursos: O Príncipe, cujo verdadeiro título é Dos Principados. Deixemos de lado a Mandrágora, comédia muito leve e a Vida de Castruccio Castracani, história romântica de um condottiere de Lucca.
            Maquiavel, desfavorecido, vive numa modesta  casa de campo que lhe pertence, perto de San Casciano, nos arredores de Florença. Passa dificuldades; deve subsistência à esposa e filhos; sente-se cheio de rancor e de tédio. Rancor de se ver desprezado pelos novos senhores de Florença, esses  Medici  a  quem,  embora  radicalmente  republicano de  coração,  está  pronto  a  servir  com lealdade. Tédio de estar afastado dos negócios públicos, aos quais consagrara, pelo espaço de quatorze anos, toda a sua inteligência. Expande-se nas cartas a seu eminente amigo Vettori, embaixador de Florença em Roma, que conhece seu valor e dá a maior importância aos conselhos que recebe sobre as questões políticas delicadas.
            Maquiavel descreve seus dias melancólicos. Faz armadilhas aos tortos, manda cortar as árvores do seu bosque, conversando com os lenhadores. Lê Dante, Petrarca, ou as apaixonadas queixas de Tibulo, de Ovídio. A estalagem o tem como frequentador; ali, colhe, dos fregueses de passagem, informações sobre as terras donde vêm; ali se avilta jogando gamão, entre inúmeras altercações e palavras grosseiras, com o estalajadeiro, o moleiro, o açougueiro e dois operários  do forno de cal. Mas, sobrevindo a noite, muda o cenário, pois Maquiavel se retira ao gabinete de trabalho, entre os seus livros, tesouros de obras antigas. Ele próprio diz:

Deponho no limiar as empoeiradas vestimentas de todo dia, visto-me nas Cortes e perante os reis... Vestido como convém, penetro nas Cortes antigas dos homens de outrora, que me recebem com amizade; a seu lado, encontro o único alimento que me dá prazer e para o qual nasci. Sem falsa modéstia, ouso conversar com eles e perguntar-lhes as causas de suas ações; é, tão grande a sua humanidade, que me respondem. Durante quatro longas horas, não sinto mais aborrecimento algum, esqueço todas as misérias, não mais receio a pobreza, não mais me atemoriza a morte, transporto-me inteiramente a eles (MAQUIAVEL, 1973, p. 119).
                                                                                                                                 
            E, “como disse Dante, que não há ciência quando não se conserva o que se aprendeu” (MAQUIAVEL, 1973, p. 119), Maquiavel anota, nesses livros sagrados, imortais conversações dos grandes homens, tudo quanto lhe parece de certa importância: “Compus um opúsculo, De Principatibus, onde me absorvo, tanto quanto possível, nas profundezas do meu tema, investigando qual a essência dos principados, de quantas espécies podem ser, como adquiri-los, como conservá-los e o porquê de sua perda” (MAQUIAVEL, 1973, p. 119). Eis aí, pensa Maquiavel, um gênero de devaneio que agradará a Vetorri, mas que sobretudo deve convir a um príncipe e, em especial, a um príncipe novo. Eis por que o dedica à grandeza de Giuliano de Médicis, irmão do Papa Leão X. Esse livrinho surge como a última mensagem do funcionário desfavorecido que deseja apaixonadamente recuperar a graça. Diz ele:

Definho nesta solidão, e não posso continuar assim por muito tempo sem cair na miséria e no desprezo. Desejaria, pois, que os senhores Medicis consentissem em empregar-me, nem que fosse para rolar uma pedra... Lendo-se este livro, ver-se-ia que, durante os quinze anos em que tive ocasião de estudar a arte do governo, não passei meu tempo dormindo ou me divertindo. E cada um deveria fazer questão do serviço de um homem que assim soube adquirir, à custa alheia, tanta experiência. (MAQUIAVEL, 1973, p. 120).

           Como duvidar da fidelidade de alguém que, aos quarenta e três anos de idade, é pobre depois de ter servido por tanto tempo o Estado, e que, tendo até então observado sempre a fé e a lealdade, não vai agora aprender a trair? Premente apelo de um homem que experimenta necessidades, ao mesmo tempo que possui o sentimento do próprio valor, e que receia simultaneamente a miséria e o desprezo. Nada mais claro (a despeito de todas as interpretações do futuro), do que as razões pelas quais Maquiavel, reunindo num pequeno volume o fruto parcial de suas leituras meditadas, dedica-o a um dos Medici – em 1513, Giuliano, e, em 1516, após a morte de Giuliano, Lorenzo, Duque de Urbino, sobrinho do Papa Leão X. Tanto Giuliano quanto Lorenzo pareciam ter diante de si, como Medici e parentes próximos do chefe da Igreja, um magnífico futuro territorial de príncipes novos.
            A dedicatória de O Príncipe, por fim dirigida a Lorenzo, completa maravilhosamente a carta a Vettori. Maquiavel, por meio desse pequeno volume, desse “opúsculo”, pretende colocar à disposição de Lorenzo o conhecimento das ações dos grandes homens, que adquirira, seja por uma longa experiência dos negócios dos tempos modernos, seja pelo estudo assíduo da dos tempos antigos. E voluntariamente para que o livro tirasse todo o seu brilho do próprio fundo, da variedade da matéria e da importância do tema, o autor despojou-o dos grandes arrazoados, das frases empoladas e enfáticas, de todos os ornamentos estranhos à questão. Que, de sua elevada posição, se digne Lorenzo considerar a obscuridade onde definha o autor, a fim de ver quão injustamente sofre a rude e contínua perseguição do destino. Clara incitação ao novo príncipe, zeloso de conservar o que tiver adquirido por sorte, força ou habilidade, para que não continue a privar-se dos leais serviços de um homem de tanta penetração política – e para que faça voltar a Florença o secretário florentino.
            Enfim, tal a gênese do “opúsculo”, cujo verdadeiro título, como se viu, é: De Principatibus, ou seja, dos governos principescos ou principados. Ora, sabem todos que o título indiscutivelmente triunfador é O Príncipe, em italiano Il Príncipe. Esta singelíssima observação oferece o melhor fio condutor para a análise do livro – grande obra política, embora muito afastada da perfeição pela negligência da composição, como da grandeza no sentido material, com os seus vinte e seis breves capítulos. Por conseguinte, no segundo capítulo desta monografia se permanecerá na obra O Príncipe, desvelando-se toda a essência deste misterioso opúsculo.

 II – História como mestra da vida


            Como Segundo Chanceler de Florença, Maquiavel tinha uma vida política muito ativa. Era uma época de mudanças, o sistema feudal era substituído pela produção capitalista, as soberanias eram absorvidas pelas monarquias e existia uma centralização de poder na Europa, exceto na Itália. Maquiavel, então, participava de encontros com as cortes estrangeiras para fazer acordos políticos. A experiência de sua vida é relatada em O Príncipe, mostrada para o homem comum as verdadeiras intenções de um governante ambicioso. Maquiavel, como ele próprio nos diz na carta a Vettori, propôs investigar qual a essência dos principados, de quantas espécies podem ser, como adquiri-los, como conservá-los e qual a razão de sua perda.
            O autor inicia a sua obra com uma breve dedicatória ad  Magnificum Laurentium Medicem.[2] Em seguida, começa a tratar de um assunto que se estende por grande parte da obra: os principados. Vale ressaltar a definição de Estado, segundo Maquiavel: “Todos os Estados, todos os domínios que tiverem e têm império sobre os homens, foram e são ou repúblicas ou principados” (MAQUIAVEL, s/d, p. 37). Em seguida, o autor propõe-se a examiná-los com profundidade, de acordo com suas características, inicialmente os Principatibus Hereditariis e os Mixtis[3]. Assim, no caso dos principados hereditários, sua conquista é tarefa difícil para o príncipe, uma vez que para a conservação de tal conquista será preciso eliminar a família reinante (S/d, p. 39).
            Relativamente, aos principados novos, sua tomada pela força não exige maiores esforços, o mesmo não ocorrendo com a sua conservação. Geralmente, a população revolta-se contra o príncipe quando este a ofende ou a prejudica. Então, serão seus inimigos todos aqueles que foram prejudicados com a ocupação do principado, e seus amigos serão aqueles que colocaram o príncipe  lá, pois estavam insatisfeitos; e mesmo que ele esteja fortalecido, não poderá ser violento contra eles porque precisa das boas graças dos habitantes.

"Por tais motivos, Luís XII, rei da França, ocupou Milão com rapidez, mas com rapidez a perdeu; e bastaram para retomá-la, na primeira vez, as próprias forças de Ludovico, dado que aquela gente que lhe havia aberto as portas, vendo-se lograda na sua esperança e nos futuros benefícios que haviam suposto, não pôde suportar os inconvenientes do novo domínio." (S/d, p. 41).

Destarte, estados conquistados e acrescentados a um Estado antigo, sendo na mesma província e de idêntica língua, “facilmente são sujeitados, sobretudo se não têm o costume de viver livres” (S/d, p. 43). Para Estados com língua diferente, mas com os mesmos costumes, o conquistador, para conservá-los, deve ter em mira duas regras: “primeira, extinguir a  linguagem  do antigo príncipe; segunda, não modificar leis e impostos” (S/d, p. 43). Por conseguinte, “o desejo de conquista é coisa realmente natural e comum e os homens que podem satisfazê-lo serão louvados sempre e nunca recriminados” (S/d, p. 45). Mas, não o podendo e querendo fazê-lo de qualquer modo, então estão em erro e merecem censura. Maquiavel, a seguir, ilustra o cur Darii Regnum quod Alexander occupaverat a successoribus suis post Alexandri mortem non defecit[4], contrastando este caso com territórios ocupados pela França.
            A grande explicação reside na forma de organização da monarquia: no reino de Dario existe apenas uma figura central e de maior importância no poder, o príncipe, e todos os outros são servos; já nos reinos governados pela França, “[...] o rei cerca-se no seu governo de uma multidão de senhores de antiga estirpe, todos reconhecidos e amados por seus súditos” (S/d, p. 52), o que não cria uma figura central forte e cujo poder não pode ser contestado. Não obstante, o filósofo trata quomodo administrandae sint civitates vel principatus, qui antequam occuparentur, suis legibus vivebant[5]. Diz que por mais que novas ideologias sejam infiltradas, as antigas leis do principado perdurarão até que o novo principado transgrida as regras antigas e declare novas regras, contanto que se permita que “[...] repouse a lembrança da perdida liberdade” (S/d, p. 56).
            Retomando o assunto dos principados, estes agora são diferenciados pela forma com que foram conquistados, contrastando de principatibus novis qui armi propriis et virtute acquiruntur e de principatibus novis qui alienis et fortuna acquiruntur[6]. No primeiro caso, os príncipes “conhecem muita dificuldade para se instalarem no principado, para nele se radicarem; mas, depois, têm muita facilidade para conservá-lo” (S/d, p. 57). A maior dessas dificuldades iniciais consiste no estabelecimento de novas instituições. Eis um empreendimento obrigatório para fundar o novo governo e alicerçar a segurança do novo príncipe, mas tarefa cheia de perigos e de incertezas.

Deve-se considerar que não há coisa mais difícil de fazer, de êxito  mais duvidoso e mais perigoso de conduzir, do que levar a cabo a introdução de novas instituições legais, pois o reformador encontra inimigos em todos aqueles que, das instituições antigas, se beneficiavam e tíbios[7] defensores em todos os que das novas se beneficiaram (S/d, p. 59).

           Por conseguinte, Maquiavel cita os exemplos de Moisés, Teseu, Ciro e Rômulo, que por virtude própria tornaram-se príncipes. Estes profetas, que conseguiram fundar instituições, só as puderam conservar porque estavam armados. Desarmados, teriam a sorte que coube ao frei Jerônimo Savonarola[8], que viu perder-se o seu trabalho reformador quando o povo não mais acreditou nele, não tendo ele meios de mantê-los confiantes nem de fazer com que nele acreditassem os incrédulos. Mas quando os fundadores, sabendo apoiar-se  na força conservadora das crenças, conseguiram atravessar esses obstáculos e superar essas dificuldades extremas, “quando começaram a ser venerados e se libertaram dos invejosos de sua classe, permaneceram poderosos, tranqüilos, honrados e felizes” (S/d, p. 50).
            Já no segundo caso, a regra é a seguinte: “facilidade para conquistar, dificuldade para conservar” (S/d, p. 61). Nenhuma dificuldade detém no caminho os novos príncipes; eles voam. As dificuldades mostram-se após a conquista; dificuldades tais que é quase fatal acabarem por perder o Estado. Efetivamente, eles dependem, por demais, da vontade e da fortuna que são variáveis; não possuem forças próprias que lhes sejam devotadas e fiéis; aliás, saberiam comandá-las? “A menos que um homem seja dotado de um grande espírito e de grande valor, é pouco provável que, tendo vivido sempre como simples particular, saiba comandar” (S/d, p. 62). Além disso, Estados subitamente formados carecem de raízes profundas e correm o risco de desmoronamento à primeira tempestade. A menos que o príncipe, favorecido pela fortuna, se ache dotado desse grande espírito e desse grande valor, acima exigido, e que saiba preparar-se imediatamente para conservar o que a fortuna lhe colocou nas mãos.
            Neste momento, a figura de Cesare Borgia, que impressionou a imaginação de Maquiavel ao ponto de imaginá-lo como um príncipe excepcional, entra em cena. Tudo quanto um grande príncipe, tendo alcançado o poder soberano pelo favor da fortuna e pelas armas alheias, pode e deve fazer para manter-se entre as dificuldades inerentes a esta origem, Cesare Borgia o fez[9]. Porém, Cesare, vencido por extraordinária e ilimitada contrariedade da fortuna, sai, pois, vencedor do rigoroso exame da técnica política, a que o submete Maquiavel. Não cometeu falta nenhuma; nada desprezou de quanto um homem prudente e hábil, de grande coragem e de grande ambição, supremamente dotado de virtù devia fazer para radicar-se profundamente nos Estados que lhe haviam alcançado as armas alheias e a fortuna.
            Seu proceder, no qual Maquiavel nada acha a criticar, pode ser apresentado como modelo, não obstante o desastroso resultado final a todos os príncipes novos que se acham no mesmo caso e até, segundo parece, aos outros. Mas também existe de his qui per scelera ad principatum parvenere[10], ou seja, aqueles principados conquistados por meio da perversidade[11]. Maquiavel trata o fato de se atingir principados através de “[...] atos maus ou nefandos [...]” (S/d, p. 73). Vale destacar, de outro modo, a forma com que o autor propõe a maneira como devem ser inflingidas as injúrias ao povo, isto é, “ todas de uma só vez, para que, durando pouco tempo marquem menos.” (S/d, p. 73). Também é interessante a maneira com que os benefícios ao povo devem ser proporcionados: “[...] pouco a pouco, para serem melhor saboreados [...]” (S/d, p. 73).
            Não obstante, para se alcançar o principatu civile[12] não é necessário grande valor ou fortuna, mas astúcia. Este é alcançado pelo favorecimento dos grandes ou do povo. Aliás, ora é o povo, ora são os grandes que assim constituem um príncipe. Em toda cidade, o povo deseja não ser dirigido nem oprimido pelos grandes, e os grandes querem dirigir e oprimir o povo. O príncipe é obra do povo ou dos grandes, segundo a oportunidade acolhida por um ou por outro. Os grandes percebem que não podem se opor ao povo. Então, começam a promover a reputação de um membro do povo e o fazem príncipe. Este, para se conservar no poder, tem dificuldade. Já o povo, percebendo sua incapacidade de se opor aos grandes, concede prestígio a alguém e o torna príncipe, mediante sua autoridade. “Este ajuda o povo a não ter dificuldade, pois está cercado de outros que lhe parecem iguais” (S/d, p. 76).
            Por outro lado, aquele que atinge a condição de príncipe graças ao povo, encontra-se só. O pior que o príncipe pode esperar de um povo hostil é ser abandonado por ele; porém dos grandes  não deve apenas temer que o abandonem, mas também que o ataquem. “Este príncipe deve viver sempre com o mesmo povo, mas nem sempre com os mesmos grandes” (S/d, p. 77). Para um príncipe, é necessário contar com a amizade do povo, caso contrário não haverá solução nas adversidades. “Um príncipe sábio deve pensar em um modo pelo qual seus cidadãos, sempre e em qualquer circunstâncias, careçam do Estado e dele, com o que lhe serão, depois, sempre fiéis” (S/d, p. 78). Observa-se, na aquisição do principado civil, a preferência que Maquiavel, burguês de Florença, tem pelo povo, e a sua evidente hostilidade para com os grandes.
            Já os principatibus ecclesiasticis[13] podem ser adquiridos pela fortuna[14] ou por virtù[15], mas o admirável é que, para conservá-los, não se precisa nem de fortuna nem de virtù. Basta o poder das antigas instituições religiosas; substituem tudo o mais, o bom governo, a dedicação dos súditos, a habilidade, o valor guerreiro. Destarte, “ [...] é Deus que os eleva e os conserva” (S/d, p. 83). O autor afirma que “ [...] somente estes principados são seguros e felizes” (S/d, p. 83). No tom de Maquiavel, mistura-se aqui o respeito fingido e o surdo sarcasmo: é o tom de um homem da Renascença, que não tem simpatia pelos sacerdotes, que não ama o catolicismo romano, que não ama tampouco o espírito do cristianismo. Entretanto, ao refletir acerca dos principados eclesiásticos, Maquiavel homenageia o Papa Leão X[16].
            Maquiavel afirma: “Assim, Sua Santidade encontrou poderosíssimo o pontificado; e espera-se que, como os seus antecessores o fizeram poderoso pelas armas, este, com a sua bondade e as suas infinitas outras virtudes o faça ainda maior e venerado” (S/d, p. 85). Essa homenagem explica-se aparentemente porque Leão X é um Medici, e porque o autor só pode contar com o favor dessa família para recuperar um emprego digno de seus méritos. Entre as explicações desses principados, Maquiavel discorre a respeito da forma quomodo omnium principatuum vires perpendi debeant[17] e diz que “[...] os príncipes capazes de se conservarem por si só, que podem, por abundância de homens e de dinheiro,  devem constituir um exército forte e enfrentar qualquer assaltante” (S/d, p. 79).
            Estes exércitos devem ser regidos por leis. Deste modo, este principado terá uma cidade fortificada, mas que não se faça odiada. É da natureza dos homens o obrigar-se tanto pelos benefícios feitos como pelos recebidos, não obstante, pode-se concluir que não será difícil um príncipe prudente garantir-se de seu povo. Depois da discussão a respeito dos principados, o autor discorre sobre as milícias e os exércitos, os quais afirma serem as bases principais de sustentação do poder, ao lado de boas leis, e ambos têm uma forte ligação entre si.
            Por conseguinte, no capítulo quot sint genera militiae et de mercenariis militibus[18], Maquiavel aborda a necessidade de um príncipe em possuir fundamentos sólidos, com boas leis e princípios. Como boas leis não existem onde não há armas, “ [...] as forças com as quais um príncipe conserva o seu Estado são próprias ou mercenárias, ou auxiliares ou mistas” (S/d, p. 87); estes são os quatro tipos de milícias. As mercenárias e auxiliares são inúteis e perigosas, pois não são de fato ligadas ao príncipe, “[...] são ambiciosas, sem disciplina, infiéis, insolentes com os amigos e covardes com os inimigos, não temem a Deus, nem fazem fé nos homens” (S/d, p. 87). Sendo assim, o príncipe apenas retarda a sua própria ruína.
            Não obstante, de militibus auxiliariis, mixtis et propriis[19] pode-se afirmar que as tropas auxiliares podem ser, em si, “boas e úteis, mas são para quem as chama em seu auxílio, quase sempre danosas, porque aniquilam quem perde, e fica à mercê delas quem vence” (S/d, p. 93). Todos os príncipes prudentes repelem este tipo de tropas, as auxiliares; sempre preferem as suas próprias tropas para assim poder chegar a uma vitória de fato. Com esta observação de diferentes tropas, conclui-se que sem possuir tropas próprias nenhum príncipe está garantido a não ter contratempos. “As forças próprias são compostas de súditos ou cidadãos, ou de servos; todas as outras são mercenárias ou auxiliares” (S/d, p. 96). Eis, então a máxima dos homens sábios: quod nihil sit tam infirmum aut instabile quam fama potentiae non sua vi nixa[20].
            Concluindo, sobre quod principem deceat circa militiam[21] Maquiavel diz que “a arte da guerra deve ser exercitada, tanto com ações como mentalmente” (S/d, p. 98), para que o Estado esteja sempre preparado  para uma emergência inesperada e, também, para que os seus soldados o estimem e possam ser de confiança. Os príncipes prudentes devem, então, observar e nunca estar ociosos nos tempos pacíficos; ao contrário, devem esforçar-se para capitalizar experiência e dela valerem-se na adversidade, de modo que, quando esta lhes modifique a sorte, se encontrem preparados a resistir-lhe.  Através do estudo dessas abstrações sobre os principados, o leitor procura instintivamente a pessoa concreta que dá a tais governos o valor e tom, isto é, o “príncipe”.

2.1 – Perfil do verdadeiro príncipe

            Como já observamos, Maquiavel aproveita e mostra o perfil de Cesare Borgia, tipo de príncipe novo, modelo de virtuosidade política, em oposição a Luís XII, príncipe hereditário que acumulou faltas. Por conseguinte, o autor traça o retrato de corpo inteiro, de frente e em plena luz, do seu príncipe novo[22]. Resta ver agora, de his rebus quibus homines et praesertim principes laudantur aut vituperantur[23]. E como deve esse príncipe proceder em relação a seus súditos e seus amigos? Parece mais conveniente, afirma Maquiavel, “ir diretamente à efetiva verdade do que comprazer-se em imaginá-la” (S/d, p. 101). Muita gente imaginou repúblicas e principados que jamais foram vistos ou de cuja real existência jamais se teve notícia; e é tão diferente o como se vive do como se deveria viver, que aquele que desatende ao que se faz e se atém ao que se deveria fazer aprende antes a maneira de arruinar-se do que de preservar-se[24].
            Assim, o homem que queria em tudo agir como bom acabará arruinando-se em meio a tantos que não são bons. Destarte, é necessário a um príncipe, “para manter-se, aprender a não ser bom e usar ou não usar o aprendido, de acordo com a necessidade” (S/d, p. 101). Sem dúvida, que haveria de mais desejável do que um príncipe que reunisse todas as boas qualidades, que fosse generoso, benfazejo, compassivo, fiel à sua palavra, firme e corajoso, indulgente, casto, franco, grave e religioso? Isto, porém, é praticamente impossível, “a condição humana não comporta” (S/d, p. 102). Verifica-se, assim, que como há certas qualidades que parecem virtudes e causariam a ruína do príncipe, há outras que parecem vícios, mas que podem ser a causa de sua conservação e de seu bem-estar.
            Maquiavel, ao examinar a figura do príncipe, revela seu pensamento com absoluta franqueza. É o pensamento de um homem que, tendo tratado com os outros homens, está desiludido; que sabe, aliás, distinguir perfeitamente o bem do mal e que até preferiria o bem, mas que recusa fechar os olhos ante o que julga ser a necessidade do Estado, ante o que julga serem as sujeições da condição humana. Não obstante, no capítulo de liberalitate et parsimonia[25] o autor salienta que seria bom um príncipe ser considerado liberal, generoso; todavia, ser parcimonioso é um dos vícios que fazem reinar. As liberalidades acabam por conquistar-lhe muito poucos indivíduos e por erguer contra ele imenso número de inimigos, por torná-lo odioso aos súditos: “[...] finalmente, empobrecido, perde a consideração que lhe dedicam” (S/d, p. 103). Igualmente, “todo príncipe deve desejar que o considerem clemente e não cruel” (S/d, p. 104). Verifica-se agora uma questão clássica: crudelitate et pietate; et an sit melius amari quam timeri, vel e contra[26]. Observando o que já foi exposto, Maquiavel nos diria que todo o príncipe deve desejar ser tido como piedoso, e não como cruel; não obstante, deve cuidar de não usar mal a piedade[27].
            Por conseguinte, o melhor consistiria em ser amado e temido, mas é difícil. Então, é mais seguro ser temido. Por quê? Há várias razões para isto. Em primeiro lugar, os homens são geralmente ingratos, inconstantes, dissimulados, trêmulos em face dos perigos e ávidos de lucro; enquanto lhes fazem bem, são dedicados; oferecem-vos o sangue, os bens, a vida, os filhos, enquanto o perigo só se apresenta  remotamente, mas, quando este se aproxima, bem depressa se desviam. Ai do príncipe que confiasse exclusivamente em todas essas amizades pagas com liberalidades, em breve estaria perdido! Além disso, os homens receiam muito menos ofender aqueles que o amam do que aquele que o temem. O vínculo do amor, rompem-no ao sabor do próprio interesse, enquanto o temor se conserva por um medo do castigo, que jamais os abandona.       Enfim, não depende do príncipe o ser amado, pois os homens amam o seu “bel-prazer”, mas dele depende o ser temido, pois os homens temem conforme quer o príncipe. Ora, um sábio príncipe deve basear-se  não do que depende de outrem, mas do que depende de si mesmo. Ser temido, aliás, em nada significa ser odiado; o ódio dos súditos – como o seu desprezo – é grave; nele não se deve incorrer, porque todas fortalezas que o príncipe odiado possuir contra os súditos não o salvará de suas conjurações[28]. Há uma singela receita, para evitar esse ódio: “é abster-se de ofender, seja contra os bens dos súditos, seja contra a honra de suas mulheres” (S/d, p. 110).
            Mas afinal, quomodo fides a principibus sit servanda[29] 

Todos compreendem como é louvável num príncipe manter a fé e viver com integridade, não com astúcia. Entretanto, os fatos de nossos dias mostram que há príncipes que realizaram grandes coisas sem que tivessem em demasiada conta a fé da palavra empenhada e souberam, pela astúcia, mudar a opinião dos homens; e que, por fim, superaram aqueles que fundaram seus atos na lealdade (S/d, p. 111).
          
 Existem duas maneiras para combater: uma, pelas leis, outra pela força. A primeira é natural do homem, a segunda dos animais. Ao príncipe se faz preciso, porém, saber investir-se de animal e de homem, um desacompanhado do outra é origem de instabilidade[30]. Sendo, pois, preciso a um príncipe saber bem usar a natureza dos animais, “deve aproveitar-se das qualidades da raposa e do leão para amedrontar os lobos. Os que adotam apenas a natureza do leão não têm êxito” (S/d, p. 111). Não pode um príncipe prudente guardar a palavra empenhada quando isso lhe é prejudicial e quando os motivos que o determinarem deixarem de existir. Não obstante, “um príncipe não pode seguir a todas as coisas tidas como boas, sendo, muitas vezes, obrigado a agir contra a caridade, a fé, a humanidade, a religião” (S/d, p. 112).
            É pertinente destacar uma das máximas maquiavelianas: “Os fins justificam os meios”. Maquiavel nunca chegou a escrever esta frase, porém deixou explícita na seguinte afirmação:

"Nas ações de todos os homens, especialmente os príncipes, contra as quais não há tribunal a que recorrer, os fins é que contam. Faça, pois, o príncipe tudo para alcançar e manter o poder; os meios de que se valer serão sempre julgados honrosos e louvados por todos, porque o vulgo atenta sempre para aquilo que parece ser e para os resultados" (S/d,p. 113).

            Uma tarefa essencial ao príncipe é saber de contemptu et odio fugiendo[31]. O príncipe procura evitar as coisa que o façam odioso ou desprezível e sempre que agir assim terá cumprido o que lhe cabe e não correrá perigo algum em relação aos outros defeitos. “O que o torna sobretudo odioso é o ser rapace e usurpador  dos bens e das mulheres dos súditos. Torna-o desprezível o fato de ser tido como volúvel, leviano, efeminado, pusilânime, irresoluto” (S/d, p. 115). Tais coisas devem ser evitadas do mesmo modo que o navegante evita um rochedo. Deve ele fazer que em suas ações se reconheça a grandeza, coragem, gravidade e fortaleza, e quanto às ações particulares de seus súditos deve fazer que sua presença seja irrevogável, portando-se de tal modo que ninguém pense enganá-lo ou fazê-lo mudar de idéia.
            “Um príncipe deve ter dois receios: um, em relação ao perigo interno aos seus súditos; outro, em relação ao perigo externo das potências estrangeiras” (S/d, p. 115). Deverá defender-se destas com boas armas e bons aliados; e sempre que tiver boas armas terá bons amigos. Sempre estarão seguras as coisas internas quando estiverem seguras as do exterior, a não ser que já as perturbem uma conspiração. A um príncipe, pouco deve-se importar as conspirações se ele é querido pelo povo “pois se este é seu inimigo e o odeia, deve temer a tudo e a todos” (S/d, p. 116). Deve-se estimar os poderosos, porém, não se tornar odiado pelo povo. O ódio, muitas vezes, se adquire com más ações. Por isso, um príncipe, desejando conservar o Estado, “é freqüentemente obrigado a não ser bom” (S/d, p. 118) , porque quando a maioria, seja povo, senado ou grandes, de que julga ter certeza para se conservar no poder,  caso tal maioria seja corrupta, é conveniente que satisfaça os seus desejos e, assim, as boas ações serão prejudiciais.
            É de se notar, neste ponto, que assassínos deliberados por homens obstinados são impossíveis de ser evitados pelos príncipes, porque todo aquele que não tiver medo da morte praticará assassinatos. Não deve, entretanto, o príncipe amedrontar-se, pois são raríssimos tais homens. Deve somente evitar não injuriar gravemente algumas das pessoas de que se utiliza e que as tenha a seu lado, a serviço de seu governo, como fez Antonino.[32] Contudo, quem observar o que foi narrado, por Maquiavel, entenderá que o ódio e o desprezo foram motivos de ruína de muitos imperadores e conhecerá ainda os motivos pelos quais alguns deles, agindo de uma forma e outros de modo contrário, alguns terminaram bem e outros tiveram triste fim.
            Poderá ser visto no capítulo intitulado An arces et multa alia quae cotidie a principibus fiunt utilia an inutilia sint[33] o seguinte:

"[...] alguns príncipes, a fim de manterem com segurança o Estado, desarmavam os súditos; alguns outros mantiveram divididas as terras submetidas; outros nutriram inimizades contra si próprios; alguns outros se dedicaram a ganhar a amizade dos que lhe eram suspeitos no começo do seu governo; alguns construíram fortalezas; alguns as demoliram e destruíram" (S/d, p. 125).

Ora, jamais aconteceu que um príncipe novo desarmasse os seus súditos; ao contrário sempre que os encontrou desarmados, armou-os. Porém, a melhor fortaleza do príncipe, afirma Maquiavel, é não ser odiado pelo povo, porque embora tenha fortalezas, se o povo lhe vota ódio elas não o salvam; “eis que não faltam nunca ao povo, que se haja  rebelado,  armas  estrangeiras  que  o socorram” (S/d, p. 129).
            No decorrer da obra, um questionamento se faz necessário: quod principem deceat ut egregius habeatur[34]? Não há coisa que faça mais considerado um príncipe do que a realização de empreendimentos e o dar de si exemplos extraordinários. Ao novo príncipe, nada mais resta, senão observar certas regras, tanto na política exterior, quanto na escolha de seus conselheiros e ministros. Jamais deverá tornar poderoso um outro príncipe, pois seria trabalho para uma ruína. Mostra-se francamente amigo ou inimigo, isto é, sabe declarar-se abertamente pró ou contra tal ou qual Estado: o partido da neutralidade, que os príncipes irresolutos quase sempre abraçam, atemorizados pelos perigos presentes, quase sempre os conduzem também à ruína.
            Maquiavel preocupa-se também de his quos a secretis principes habent[35]. Um bom ministro, afirma o autor, é aquele que nunca pensa em si, mas sempre no príncipe, e que só lhe fala do que diz respeito ao interesse do Estado. Mas é preciso também que, por sua vez, “o príncipe pense no ministro, cumule-o de riquezas, de considerações, de honras e dignidades” (S/d, p. 136), para que receie toda mudança como o fogo e saiba perfeitamente que é tudo com o amparo do príncipe, nada sem ele. Por outro lado, quomodo adulatores sint fugiendi[36] é um assunto pertinente a ser tratado pelos príncipes,  pois as cortes estão repletas de aduladores. Uma maneira eficaz de defender-se contra adulações é “[...] fazer com que os homens entendam que não ofendem dizendo a verdade” (S/d, p. 137).
            Porém, o príncipe prudente deve escolher homens sábios para seus auxiliares, “e apenas a estes deve conceder liberdade de dizer-lhe a verdade e somente a respeito daquilo que ele lhes perguntar, não de outras coisas” (S/d, p. 137). Destarte, um príncipe deve aconselhar-se sempre; deve, contudo, perguntar muito e ouvir pacientemente as coisas que, em resposta, forem ditas com franqueza. Enfim, “os bons conselhos, venham eles de onde vierem, devem nascer da prudência do príncipe, e não a prudência do príncipe nascer dos bons conselhos” (S/d, p. 139).


2.2 – O segredo que anima Maquiavel

            No entanto, o supremo segredo, segredo tanto de seu coração quanto de seu espírito, Maquiavel continuava a guardá-lo. Começa a desvelá-lo quando se questiona do cur Italiae principes regnum amiserunt[37]? Na busca de respostas, Maquiavel diz que “um príncipe novo tem suas ações muito mais observadas do que um príncipe hereditário” (S/d, p. 141); e quando o valor delas é reconhecido, o príncipe conquista muito melhor a consideração dos homens e muito mais os têm obrigados do que os teriam um príncipe de sangue antigo, “pois os homens se atêm muito mais às coisas do presente do que às do passado” (S/d, p. 141). Será assim glória dupla o de haver dado início a um principado e o de havê-lo posto em ordem e fortalecido com boas leis, boas armas e bons exemplos, enquanto que para aquele que nasceu príncipe será dupla vergonha perder o Estado, por sua pouca prudência. Por conseguinte, “os meios de defesa somente são bons, são certos, são duradouros, quando dependem do valor do príncipe” (S/d, p. 142).
            Mas, o que pode um homem em face da sorte? Será útil dispender coragem, ardor, habilidade, se o curso de todas as coisas estiver regulado fora de nós ? Maquiavel se questiona ainda quantum fortuna in rebus humanis possit, et quomodo illi sit occurrendum[38] e desenvolve a seguinte reflexão:

"Não ignoro que muitos homens têm sido e são de opinião que as coisas do mundo são de tal maneira dirigidas pela sorte e por Deus, que os homens não podem com sua prudência corrigi-las e nem mesmo têm recursos para fazê-lo; e que, por isso, julgarão que não convém afadigar-se muito em relação às coisas, mas deixar-se conduzir pela sorte" (S/d, p. 143).

Não obstante, desde que o nosso livre arbítrio não se extinguiu, julgo poder ser  verdade  que a sorte[39] seja árbitro da metade de nossas ações, mas que certamente nos deixe governar a outra metade ou quase. Por conseguinte, o homem pode e deve resistir à fortuna, preparar-lhe, com a sua virtù, rudes obstáculos; até é conveniente que, em sua presença, se mostre impetuoso. Pois ela é mulher, pronta a ceder aos que empregam violência e que a tratam rudemente, a ceder mais aos jovens e arrebatados, audaciosos, autoritários, do que aos homens maduros, circunspectos e respeitosos. Enfim, o último e grande assunto que Maquiavel trata é a exhortatio ad capessendam Italiam in libertatemque a barbaris vindicandam[40]. O autor afirma que, na Itália, “nunca as circunstâncias foram tão favoráveis a um príncipe novo que queira tornar-se ilustre” (S/d, p. 146); a libertação poderia ser levada a termo por essa família dos Medici, singularmente qualificada pelas suas virtudes hereditárias, sua fortuna, a favor de Deus e da Igreja, cujo trono atualmente ocupa.
            Será uma grande obra de justiça, pois a força é justa quando necessária e as armas se tornam instrumentos da piedade, quando somente nelas se pode esperar. Segundo Maquiavel, foi necessário que a Itália se encontrasse reduzida a situação tal e qual, a saber, que fosse  mais escravizada que os hebreus, mais oprimida do que os persas, mais dispersados os italianos que os atenienses; que estivesse sem chefe e sem ordem; que fosse batida, espoliada, lacerada, invadida; e que houvesse experimentado toda sorte de desastres[41]. Mais ainda, Deus manifesta a sua vontade por prodígios, por esplêndidos sinais: abriu-se o mar, numa nuvem mostrou-se o caminho, uma fonte de água viva brotou do rochedo, o maná caiu no deserto: assim, tudo favorece a vossa grandeza[42].
            Por conseguinte, não se deve perder esta ocasião, a fim de que a Itália, depois de tanto tempo, encontre o seu redentor. E Maquiavel salienta:

"[...] não posso dizer com quanto amor seria recebido em todas aquelas províncias que sofreram as invasões estrangeiras; com que sede de vingança, com que fé obstinada, com que piedade, com que lágrimas. Que portas se cessariam diante deles ? Que povos lhe negariam obediência ? Que inveja se lhe oporia ? Que italiano lhe negaria reverência ? Todos têm horror ao domínio bárbaro" (S/d, p. 150).

E conclui: “Portanto, aceite a ilustre casa dos Medicis tão bela tarefa com a ousadia e a esperança que convém às grandes empresas; possa, sob o seu estandarte, realizar-se o que anunciou Petrarca” (S/d, p. 150):

Virtù, contro a furore
Prenderà l´arme, e fia el combatter corto;
Ché l´antico valore
Nell´italici cor non è ancor morto[43].


            Assim o autor de O Príncipe julgava ter fornecido a Giuliano, depois a Lorenzo de Medici, príncipes novos, todas as receitas do poder[44], que haurira  na longa experiência dos negócios modernos, no longo e contínuo estudo dos antigos. Como anunciava a dedicatória de O Príncipe, o autor evitara grandes arrazoados, frases empoladas, enfáticas, todo ornato estranho ao fundo do tema. Com efeito, nada sacrificara à expressão. Nada de obscuridade, nada de afetação; um pensamento sempre adequado ao objeto; um estilo sempre exatamente ajustado ao pensamento. Quanto à forma e ao fundo, por conseguinte, parecia devidamente satisfeito o propósito de Maquiavel, cumprida todas as suas promessas, revelados todos os seus segredos.

 III – O enigma da obra maquiaveliana

        Há quase cinco séculos a obra de Maquiavel vem desafiando a inteligência de seus intérpretes e comentadores, que tentam decifrar o conceito central ou a atitude política por ele defendida. A variedade e, sobretudo, a divergência das leituras possíveis da obra do humanista de Florença ficaram evidenciadas com o ensaio de Isaiah Berlin, que se dedicou a sintetizar as interpretações mais conhecidas surgidas desde o século XVI, chegando a cerca de vinte e cinco posições diferentes. A constatação de Berlin leva-nos a dar razão a Raimond Aron:

Quem escreve o nome de Maquiavel no alto de uma folha em branco não pode deixar de sentir uma certa angústia; depois de centenas de escritores [...], prepara-se também para fazer a escolha que tantos outros já fizeram anteriormente. Qualquer que seja a interpretação, não lhe pertencerá [...]. o que quer que diga ou faça, já pertencerá a uma das famílias. Não importa se de maquiavelistas, de maquiavelianos ou de leitores de Maquiavel, chega tarde demais para fundar uma nova família (ARON, 1985, p. 97).

                       A advertência de Aron faz com que os que se ocupem da obra de Maquiavel abandonem qualquer pretensão de terem descoberto um caminho novo, uma chave de leitura inédita com a qual seria possível resolver definitivamente todas as contradições que as perseguem desde que se tornou um  dos  escritos  mais  polêmicos  da  filosofia  política.  Enfim,  foi  desconcertante  o  destino  de Maquiavel e de sua obra. Seria capaz, ele,  de imaginar, por um só instante, a repercussão que teria através dos séculos, o seu pequeno volume, cujo efeito imediato foi nulo? Lorenzo de Medici, Duque de Urbino, recebeu O Príncipe em manuscrito; não lhe dispensou atenção alguma e, naturalmente, não cuidou de recompensar o autor. Ele faleceu em 1519, aos vinte e sete anos, vítima do mal napolitano, deixando uma filha póstuma que seria Catarina de Medici e, ignorando que seu principal título à memória dos homens lhe adveria de ter sido o príncipe, a quem fora dedicado O Príncipe. Aliás, deve dizer-se que, entre os numerosos contemporâneos, em cujas mãos circulou a obra manuscrita, foi medíocre o interesse: sumário de máximas banais; quem estivesse algo familiarizado com o espetáculo da política cotidiana nada de novo teria a aprender nesse opúsculo.
                        Se Maquiavel, a partir de 1519, recupera certo favor dos Medici, é devido à sua reputação de funcionário prudente, de hábil político, e não por causa de O Príncipe. Recebe uma pensão para escrever a sua História de Florença, é encarregado de insignificantes missões. Só a partir de 1525, em conseqüência das alterações na política geral, confiam-lhe os Medici tarefas mais dignas de suas qualidades; mas, ao mesmo tempo, compromete-se definitivamente com eles. Quando, em maio de 1527, os Medici são de novo expulsos de Florença, restabelecendo-se a República, o autor de O Príncipe, dedicado a um dos tiranos, o historiador a seu soldo, não mais poderia contar com o favor  do regime restaurado. Eis restabelecido seu antigo cargo de secretário dos Dez de Liberdade e de Paz. O pesar se acrescenta a graves males intestinais, para levar, a 22 de junho de 1527, aos cinqüenta e oito anos de idade, Nicolau Maquiavel, munido dos sacramentos da Igreja.
                        Quatro anos após sua morte, O Príncipe é finalmente impresso, com a autorização do Papa Clemente VI (1531); a edição é dedicada a um cardeal. Nada de emoção, de sensação; a obra parece inofensiva. As edições, porém, vão multiplicar-se; muito se lerá O Príncipe, talvez demais. A partir de 1550, eleva-se o rumor que encherá o fim do século XVI. À Renascença pagã, sucedeu a Reforma protestante, que obrigou a própria Igreja a reformar-se interiormente. A renovação da fé cristã será combinada com a violência fanática das massas, com o embate de poderosos interesses, para produzir a grande e selvagem confusão das guerras religiosas. Maquiavel e seu livro serão envolvidos nos turbilhões da vasta contenda que os ultrapassa. Por conseguinte,


   o Cardeal-Arcebispo de Canterbury, Reginald Pole, católico, julga O Príncipe escrito pela mão do Demônio. Se o demônio é amigavelmente chamado na Inglaterra de Old Nick, velho Nicolau, não será por alusão ao prenome de Maquiavel? Houve quem o pretendesse. O escritor indigno e celerado é denunciado, em 1557, pelo Papa Paulo IV; é condenado pelo Concílio de Trento e colocado no índex. Na França, é particularmente odiado como conselheiro póstumo de Catarina de Medici, como inspirador de sua Corte, povoada de italianos maquiavélicos. O massacre de São Bartolomeu (1572) aparece, a muitos protestantes, como um movimento florentino, uma astúcia florentina (CHEVALLIER, 1986, p. 46).

           
E os protestantes abominam Maquiavel como sendo jesuíta. Mas os jesuítas, não menos vigorosamente, o denunciam à indignação católica.

O livro do jurisconsulto protestante Innocent Gentillet, publicado em 1576, Discursos sobre os meios de bem governar, contra Nicolau Maquiavel, é lido pelo padre jesuíta Antoine Possevin, que aliás só leria Maquiavel através de Gentillet. Os jesuítas de Ingolsdadt, na Baviera, pedem para queimá-lo em efígie (CHEVALLIER, 1986, p. 86).


É assim que, á verdadeira personagem do secretário florentino, sucedeu decididamente, ao raiar do século XVII, um monstro mítico. O companheiro alegre, cáustico e atrevido, bom funcionário, bom pai e bom esposo, cedeu lugar a uma figura sombria e satânica, aureolada de prestígios infernais. Todavia, à proporção que aumenta, pela lei da imitação, a onda de invectivas, os soberanos e primeiros ministros, apaixonados do poder, fazem de O Príncipe, breviário do absolutismo, o livro de cabeceira.

Em 1641, Richelieu encomenda ao cônego Machon uma Apologia de Maquiavel. O bibliotecário de Mazarino, Gabriel Naudé, publica Considerações políticas sobre os golpes de Estado, onde se exprime um maquiavelismo prático e bonacheirão. Determinado libelo, onde sopra o espírito da Fronda, acusa Mazarino de ter educado o futuro Luís XIV na religião do divino Maquiavel  (CHEVALLIER, 1986, P. 46).

E é verdade: mais de um príncipe, superficialmente alimentado com inúmeras educações do príncipe cristão, muito perdoa, no íntimo do coração, a esse ímpio Maquiavel, por muito haver pregado a razão do Estado, por não ter visto no homem senão a matéria-prima do poder.
           
3.1 - A visão de Spinoza e Rousseau

No desenvolvimento de seu Tratado Político, Spinoza afirma de que meios um príncipe, onipotente, possuido pelo desejo do domínio, deve usar para estabelecer em manter o seu poder, porém quanto ao fim visado, este não surge claramente. Se o príncipe se propôs uma boa finalidade, tal como é de esperar de um homem prudente, parece demonstrar de que imprudência as massas dão provas quando suprimem um tirano, quando não podem supremir as causas que fazem com que um príncipe se torne um tirano, mas, pelo contrário, quanto mais motivos houver para temer um príncipe, tanto mais causas há para fazer dele um tirano, tal como acontece quando a multidão faz do príncipe um exemplo e glorifica um atentado contra o soberano como um grande feito. (SPINOZA, 1973, cap. V, p. 07)
E Spinoza acrescenta:

"Talvez Maquiavel tenha querido, também, mostrar quanto a população se deve defender de entregar o seu bem-estar a um único homem que,se não é fútil ao ponto de se julgar capaz de agradar a todos, deverá constantemente recear qualquer conspiração e, por isso, vê-se obrigado a preocupar-se sobretudo consigo próprio e, assim, a enganar a população em vez de a salvaguardar. E estou tanto mais disposto ajulgar assim acerca deste habilíssimo autor quanto mais se concorda em coinsiderá-lo um partidário constante da liberdade e quanto, sobre a maneira necessáriadea conservar, ele deu opiniões muito salutares" (SPINOZA, 1973, p. 329).

De sua parte, Rousseau salienta no livro Do Contrato Social: Os reis querem ser absolutos e,
a distância, gritam-lhes que o melhor meio de sê-lo é fazer-se amar por seus povos. Essa máxima é muito bonita e mesmo, em certos aspectos, muito verdadeira: infelizmente, porém, sempre mofarão dela nas cortes. O filósofo genebrino acrescenta que, sem dúvida, o poder que se origina do amor dos povos é o maior dos poderes, mas é precário e condicional; os príncipes jamais se contentarão com ele. Isto significa que os melhores reis querem ser maus, caso lhes agrade, sem deixar de ser os senhores.
                Em seguida, Rousseau manifesta que será grato a um pregador político dizer-lhes que, sendo sua força a do povo, seu maior interesse estará em ser o povo florescente, numeroso, temível; ele sabe muito bem que isso não é verdade. O seu interesse pessoal estará principalmente em ser o povo fraco, miserável, que nunca possa oferecer-lhes resistência. O autor Do Contrato Social esclarece que os príncipes, no entanto, sempre preferem a máxima que lhes seja mais imediatamente útil. É o que Maquiavel fez ver com evidência. Fingindo dar lições aos reis, deu-as, grandes, aos povos. O Príncipe de Maquiavel e o livro dos republicanos. (Cf. ROUSSEAU, livro III, cap. VI, p. 95)
Não obstante, Napoleão, que domina o século XIX, aparece a seus inimigos, entre os quais Chateaubriand, como a realização mais perfeita do príncipe segundo Maquiavel; verdadeiro monstro de virtù, sabendo – considerai o regresso da ilha de Elba – ser desabrido para com a fortuna, que “é mulher”.

Em 1816, o padre Guillon publica um Fantasista Maquiavel comentado por Napoleão Bonaparte: fragmentos de Maquiavel, de uma tradução manuscrita de O Príncipe, destinada ao uso pessoal do usurpador, teriam sido encontrados em seu carro, no campo da batalha de Waterloo; Bonaparte teria anotado à margem várias passagens do livro. Quanto ao sobrinho, Napoleão III, a quem Victor Hugo chama de o Pequeno, na História de um Crime, assinala que o futuro imperador, prisioneiro em Ham, preparando-se para a usurpação só lia um livro: O Príncipe  (CHEVALLIER, 1986, p. 47).


            O idealismo político do século XIX odeia o autor desse breviário cínico. O mesmo idealismo, porém, acha-se de joelhos  perante  o  despertar  das  nacionalidades. Tanto é  assim  que Maquiavel tem direito à mais fervorosa gratidão da Itália unificada de 1870[45] e dos democratas do mundo inteiro. Antes, ninguém como Maquiavel tinha se batido  pela transformação da península italiana numa grande nação. Os democratas-radicais, deste período, tomam como ponto de partida a afirmação do próprio Maquiavel de que os seus ensinamentos foram extraídos do estudo atento da história. O maquiavelismo seria assim, a prática política corrente entre os poderosos de todos os tempos. Criadores e detentores das técnicas de dominação não precisariam jamais de lições; Maquiavel teria, então, como objetivo, não ensinar a eles, mas ao povo. Na impossibilidade de dirigir-se diretamente ao seu público, teria optado por desmitificar o poder, despojando-o de toda moralidade aparente através da crua revelação dos procedimentos e técnicas utilizadas em sua conservação por parte dos governantes.

3.2 – Um príncipe ideal do século XX

No começo do século XX as discrepâncias quanto ao entendimento da obra do diplomata florentino permitirão o aparecimento de várias interpretações, sensivelmente divergentes. Em meio às guerras gigantescas, o mundo liberal se vê assaltado, de todos os lados, pela maré autoritária, em breve totalitária o idealismo político perde terreno diante dos realismos, que se valem, mais ou menos abertamente, de Maquiavel e de O Príncipe. “Benito Mussolini (1883-1945), em um Prelúdio a Maquiavel, escrito em 1924 para louvar o florentino, louvando-se a si mesmo, prende o fascismo ao maquiavelismo e afirma que a doutrina de Maquiavel está hoje mais viva do que há quatro séculos [...]” (CHEVALLIER, 1986, p. 47). Destarte, o transforma em um precursor do fascismo. De sua parte, Gramsci (1891-1937), marxista, assimilará ao príncipe ideal renascentista o partido do proletariado, como instrumento contemporâneo de sua vontade e ação coletiva (Cf. GRAMSCI, 2000, p. 18).
            A Segunda Guerra gigantesca deste século termina com a queda sangrenta, não só do fascismo italiano, como da empresa hitleriana para subjugar o mundo. Nesta empresa, pode reconhecer-se um novo aspecto do maquiavelismo, o mais hediondo, maquiavelismo desordenado, como que enlouquecido. “Julgou-se que a derrota de Hitler era a derrota de Maquiavel, a esperança de que Maquiavel poderá um dia ser dominado, ao menos em certa medida. [...] mas a derrota de Hitler é, em grande parte, a vitória de Stalin” (CHEVALLIER, 1986, p. 48).



 Ora, deve-se crer no que Arthur Koestler, em O Zero e o Infinito, põe nos lábios do seu herói Roubachov, bolchevique desfavorecido: Diz-se que o Stálin tem constantemente à cabeceira O Príncipe de Maquiavel. Vê-se que Roubachov acrescenta, por sua conta: depois, nada se disse, de verdadeira importância, sobre as regras da ética política [...] (CHEVALLIER, 1986, p. 48).

           
Nos tempos nefastos em que vivemos na política nacional, aparecem mais e mais análises que aproximam a atitude de alguns políticos com a frase “os fins justificam os meios”, atribuída a Maquiavel. Quanto maquiavelismo nesta frase pronunciada há séculos sem qualquer referência com o contexto histórico em que foi escrita e, na maioria dos casos, descontextualizada em relação à totalidade da obra. Não deve nos surpreender o fato de maquiavelismo e maquiavélico terem adquirido o status de adjetivo e substântivo. O florentino não discute se os seus conselhos para o príncipe são morais ou não, aliás esta foi a grande contribuição dele para a ciência política: narrar as coisas como elas são, não como deveriam ser. Ele explica o comportamento mais adequado para determinados objetivos, não busca justificativas.
            Enfim, é preciso levar em conta que os leitores de O Príncipe deverão revelar o fato de um livro tão breve suscitar tantos comentários. No entanto, a força corrosiva do pensamento e do estilo de Maquiavel ultrapassaram, de infinita distância, o objeto do momento. Isto, por ter realçado tão cruamente o problema das relações entre a política e a moral e por ter concluído, em uma cisão profunda, uma irremediável separação entre elas.

 [...] O Príncipe atormentou a humanidade durante quatro séculos [...] e continuará a atormentá-la, senão eternamente, ao menos enquanto essa humanidade não tiver analisado inteiramente certa cultura moral, herdada, no que diz respeito ao Ocidente, de alguns antigos célebres , e, sobretudo, do cristianismo (CHEVALLIER, 1986, p. 48).

3.3 - A verdade efetiva das coisas


        O filósofo italiano Nicolau Maquivel é considerado o fundador do pensamento político moderno, porque desenvolve a sua filosofia política em um quadro completamente diferente do que se tinha até então. Ele centrou sua atenção na constatação de que o poder político tem como função regular as lutas e tensões entre as classes sociais, que, conforme ele, eram basicamente duas: a classe dos poderosos e o povo. Essas lutas e tensões existiram sempre, de tal forma que seria uma ilusão buscar um bem comum para todos. Mas, se a política não tem como objetivo o bem comum, qual seria o seu objetivo então? Maquiavel deixa claro que a política tem como objetivo a manutenção do poder e, para este fim, o governo deve lutar com todas as armas possíveis, ficando sempre atento às correlações de força que se mostram a cada instante. Isso significa que a ação política não cabe nos limites do juízo moral. O governante deve fazer aquilo que, a cada momento, se mostra interessante para conservar o seu poder.
Não se trata, portanto, de uma decisão moral, mas sim de uma decisão que atende à lógica do poder. Destarte, os fins justificam os meios. Em O Príncipe, Maquiavel faz uma análise objetiva, não moral, dos atos de diversos governantes, procurando mostrar em que momento as suas opções políticas foram interessante para a manutenção do poder. Deve-se a essa fraqueza despudorada maquiaveliana o uso do termo “maquiavélico”, que passou a designar o comportamento "sem moral", "desleal".
Mas o que se deve reter do seu pensamento é que ele inaugura um novo patamar de reflexão política, que procura compreender e descrever a ação política tal como ela se dá realmente. Esse é o mérito do florentino: ter compreendido que a política, no início da Idade Moderna, se desvinculava das esferas da moral e da religião, constituindo-se em uma esfera autônoma. Na história da  reflexão


sobre a política, Maquiavel representa um marco extraordinário: o primeiro a relatar amplamente o que é a atividade política, afastando-se de antigas tradições que debatiam o que a política deveria ser. Uma tradição que remontava a Platão e que a Idade Média tinha revigorado. Platão descrevera, na República, uma organização política ideal, dirigida por filósofos. Não obstante, enquanto Maquiavel analisa friamente a realidade, outros refugiam-se no sonho. Nas artes proliferam temas como “fonte de Juvena”, que assegura a juventude eterna, ou “jardim das delícias”, em que todos os prazeres são possíveis.
Os pobres imaginavam o “país da Cocanha”, onde há um morro de queijo parmesão gratinado em um rio de vinho branco ... Outros projetam sociedades ideais: as utopias. O iniciador desse gênero literário é Thomas Morus (1478-1535), cuja obra exatamente denominada Utopia (isto é, “lugar nenhum”). Nela, Morus descreve a organização social de uma ilha imaginária, onde não há propriedade privada nem injustiças ou perseguições de qualquer ordem, especialmente a religiosa. O dominicano Tommaso Campanella (1568-1639) é autor de A Cidade do Sol, de inspiração platônica, a começar por seu título. Nessa cidade feliz, governada pelo sacerdote Metafísico , também não há a propriedade privada, sendo tudo de uso comum. O egoísmo é inexistente e, por isso, também o roubo e outros crimes. O trabalho é mínimo – quatro horas diárias -, mas a sociedade vive com fartura. Idéias semelhantes  também aparecem na utopia de Francis Bacon (1561–1626), autor da célebre frase “Saber é poder”. De fato, em sua Nova Atlântida, quem governa é uma equipe de cientistas com amplos poderes.
Desse modo, o que os utopistas propõem é o avesso da sociedade em que vivem: contra a política da época, que lhes parece irracional, baseada unicamente na violência, imaginam governos que se apóiam na razão e na sabedoria. O pensamento de Maquiavel é completamente diverso. Em San Casciano tem plena consciência de sua originalidade e trilha um novo caminho. Os elementos fundamentais utilizados pelo florentino inovador foram: o utilitarismo (escrever coisas úteis para os que as entendam); o empirismo (procurar diretamente a verdade efetiva das coisas); o antiutopismo (não imaginar repúblicas e principados nunca vistos nem conhecidos como realidade); e o  realismo
(salienta a diferença entre o modo como se vive e aquele como se deveria viver) (Cf. MAQUIAVEL, s/d, p. 101). A busca da verità effetuale della cosa é que distinguia Maquiavel e nos leva afastá-lo de Morus, Campanella,  Bacon e tantos outros pensadores, imersos na tradição platônica. Maquiavel se utiliza, por conseguinte, de um exame puramente empírico. Este possui duas coordenadas teóricas básicas: uma filosofia da história e uma explicação da psicologia humana.
A primeira concebe o fenômeno histórico não como uma visão cristã, que o desenrolar dos fatos humanos no tempo cumpre desígnios divinos, dirigindo-se linearmente para o juízo final, mas como constituído por ciclos, que se renovam em movimentos de revolução em torno de si mesmo. Tal concepção completa-se com uma compreensão da psicologia humana.  Maquiavel conclui que os homens são todos egoístas e ambiciosos, só recuando da prática do mal quando coagidos pela força da lei. Os desejos e as paixões seriam os mesmos em todos os lugares e em todos os povos. Assim, a psicologia e a história não são apenas instrumentos teóricos, mas também guia para a ação. Segundo Maquiavel, quem observa os fatos do passado pode prever o futuro em qualquer república e usar os remédios aplicados desde a Antiguidade ou, na ausência deles, imaginar novos, de acordo com a semelhança de circunstâncias entre o passado e o presente. Não obstante, a psicologia desenvolvida em torno do poder fundamenta o conhecimento secular e autônomo do político e o separa radicalmente da ética e do direito.
            Voltado para a história, Maquiavel teria aprendido que as obras humanas, como a criação de Estados e religiões, impuseram aos fundadores o uso de todos os recursos; e o que fez foi simplesmente aceitar essa realidade como um dado concreto e definidor da natureza humana. Se existem boas teorias políticas, a prática é sempre diferente. O florentino fez simplesmente da prática uma teoria. O enunciado brutal dos principados do maquiavelismo, com sua chocante amoralidade, explicitaria a realidade interna do poder político. E isso talvez seja uma contribuição não pequena para a superação desse amoralismo.
            Maquiavel teria a pretensão de ser radicalmente novo. Essa pretensão está claramente explícita na seguinte afirmação: “Comparo meu empreendimento à descoberta de águas e terras desconhecidas”. Para a fundação desse novo continente político, obrigou-se a entrar por um “caminho ainda não percorrido por ninguém” (MAQUIAVEL, 1994, p. 17). Maquiavel pensa que a novidade de seu ensinamento está na ruptura com o afirmado pela tradição. Ele foi uma consciência crítica de seu tempo e teve a capacidade de romper com fórmulas consagradas por uma secular tradição de pensamento. Não obstante, está livre de quaisquer empecilhos de ordem moral ou religiosa.
            O pensamento maquiavélico aponta um aspecto central da filosofia política de todos os tempos, de Alexandre, O Grande, a George Bush. Seu pensamento colocou a humanidade face a face com uma de suas mais profundas e aparentemente insolúveis dicotomias. Será difícil encontrar alguém, hoje em dia, que não se sinta à vontade de empregar correntemente expressões como maquiavelismo, maquiavélico ou maquiavelicamente. Semelhante banalização do nome de Maquiavel gera uma ilusão traiçoeira de familiaridade com suas idéias que desestimula um esforço mais sério para conhecer o seu pensamento. O fato é  que o secretário florentino tornou-se através dos tempos uma figura legendária, eregido em símbolo de tudo o que há na política de demoníaco, de equívoco e inescrupuloso, de astúcia e dissimulação. O que não é verdade.

Conclusão


            É possível após a conclusão deste trabalho monográfico chegar-se a resultados práticos? Evidente que, tendo como ponto de partida o fato de se estabelecer um tema e, necessariamente, um problema, a conclusão deveria apontar para questões de uma determinada solução. Tal conclusão, porém, teria sempre o cunho de provisoriedade. Assim sendo, o trabalho monográfico intentaria atingir objetivos mais ou menos práticos sustentados por argumentos razoáveis. Neste caso, todavia, os resultados deixam muito a desejar, pois a interpretação de uma obra como O Príncipe será o resultado de um posicionamento demasiadamente subjetivo.
            Tendo em vista que os maiores comentaristas de Maquiavel o tem interpretado das mais diferentes maneiras, contrapondo-se, inclusive, entre si, que posição seria a mais plausível a ser adotada por um acadêmico de Filosofia em vias de concluir o seu curso? Todo problema, de caráter teórico, exige um posicionamento da parte de quem o enfrenta e o procura superar. Os meios a serem utilizados exigirão, sem dúvida alguma, certo teor de imaginação e criatividade. Neste caso específico, apelou-se pelo posicionamento crítico de dois filósofos da época moderna: Spinoza e Rousseau.
            Teria de fato Maquiavel, utilizando-se de uma linguagem aparentemente “realista”, querido transmitir aos seus contemporâneos e pósteros uma mensagem caracterizada pela sátira que transparece claramente na sua peça teatral A mandrágora? É sumamente difícil acreditar que o pensador florentino tenha apenas desejado adular a família Medici, visando sua recuperação política e a sua recondução no governo de Florença. Um homem conhecido por suas exemplares virtudes, sua dedicação voltada inteiramente para o bem-estar de sua cidade e do seu povo, teria se transformado num mero pedinte de cargos públicos?
            A obra O Príncipe, porém, não teria por outro lado a intenção manifesta de unir o povo italiano em torno da edificação de um Estado moderno a exemplo dos reinos da Inglaterra, Espanha e França? Tal pretensão, contudo, não assinalaria as referências de Maquiavel por regimes de governo monárquico-absolutista? Esta também é uma questão que não pode ser enfocada sem a leitura de outra de suas obras, os Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Esta afirmação implica em levantar outro questionamento: Maquiavel é favorável a uma monarquia na qual um só governe ou está inclinado por uma república onde muitos governem?
            Então, o problema maquiaveliano atinge proporções inimagináveis. Concluindo, é inevitável que se tenha de adotar um posicionamento. Não se trata de um posicionamento propriamente técnico, mas de caráter intuitivo, isto é, não desprezando, porém, o aspecto lógico que tal problema carrega consigo mesmo. Esse posicionamento obedece as versões espinozistas e russonianas, ou seja, Maquiavel satirizou, com toda a força de seu caráter os tiranos e assassinos oficiais do seu tempo. Procurou alertar ao homem comum da malignidade do poder sem limites.

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[1]  Caudilhos, chefetes.
[2]   A seguir, a carta de Maquiavel a Lorenzo, filho de Piero de Medici: “As mais das vezes, costumam aqueles que desejam granjear as graças de um príncipe, trazendo-lhe objetos que lhe são mais caros, ou com os quais os vêem, deleitar-se; assim, muitas vezes, eles são presenteados com cavalos, armas, tecidos de ouro, pedras preciosas e outros ornamentos dignos de sua grandeza. Desejando eu oferecer a Vossa Magnificência um testemunho qualquer de minha obrigação, não achei, entre os meus cabedais, coisa que me seja mais cara ou que tanto estime quanto o conhecimento das ações dos grandes homens, apreendido por uma longa experiência das coisas modernas e uma contínua lição das antigas; as quais, tendo eu, com grande diligência, longamente cogitado, examinando-as, agora mando a Vossa Magnificência, reduzidas a um pequeno volume. E enquanto julgue indigna esta obra da presença de Vossa Magnificência, não confio menos em que, por sua humanidade, deva ser aceita, considerando que não lhe posso fazer maior presente que lhe dar a faculdade de poder em tempo muito breve aprender tudo aquilo que, em tantos anos à custa de tantos incômodos e perigos, hei conhecido. Não ornei esta obra e nem a enchi de períodos sonoros ou de palavras empoladas e floreios ou de qualquer outra lisonja, ou ornamento extrínseco com que muitos costumam descrever ou ornar as próprias obras; porque não quis que coisa alguma seja seu ornato e a faça agradável senão a variedade da matéria e a gravidade do assunto. Nem quero que se repute presunção o homem de baixo e ínfimo estado discorrer e regular sobre o governo dos príncipes; pois assim como os que desenham os contornos dos países se colocam na planície para considerar a natureza dos montes, e para considerar a das planícies ascendem aos montes, assim também para conhecer bem a natureza dos povos é necessário ser príncipe, e para conhecer a dos príncipes é necessário ser do povo. Tome, pois, Vossa Magnificência este presente com a intenção com que eu o mando. Se esta obra for diligentemente considerada e lida, Vossa Magnificência conhecerá o meu extremo desejo que alcance aquela grandeza que a Fortuna e outras qualidades lhe prometem. E se Vossa Magnificência, do ápice de sua altura, alguma vez volver os olhos para baixo, saberá quão sem razão suporto uma grande e contínua má sorte”. (MAQUIAVEL, 1996, p 33-34).
[3]  Principados hereditários e mistos.
[4]  Por que o Reino de Dario, ocupado por Alexandre, não se rebelou, depois da morte deste, contra os seus sucessores.
[5]  De como governar cidades ou principados que, anteriormente à ocupação, se regiam por leis próprias.
[6] Dos principados novos que são conquistados mercê de armas próprias e valor  e dos principados novos que se conquistam mercê das armas e boa sorte alheia.
[7] Tíbios porque são, como todos os homens, incrédulos, e porque não puderam convencer-se, pela experiência, da excelência das novas coisas. (CHEVALLIER, 1978, p. 28).
[8]   Frei Jerônimo Savonarola (1452–1498), nascido em Ferrara, foi chamado em 1480, por Lorenzo de Medici. Ao tempo da expulsão deste, organizou a nova república florentina sobre bases democráticas. Em 1498, o partido dos Medici (os “Palleschi”) dirigiu o ataque contra o palácio do “Capitano del Popolo”, Obizzo degli Alidosi. Abandonado pelo povo, Savonarola foi preso, enforcado e teve seu corpo queimado; ele foi um profeta desarmado.
[9]   Cesare se tornou príncipe favorecido pelo pai, o Papa Alexandre VI,  que consegue, apelando a Luís XII contra o Duque de Milão, instalar seu filho na Romagna. Cesare logo compreende que só poderá firmar-se tornando-se independente dos mercenários do seu próprio exército, e, depois, do rei da França. Começa por massacrar os condottieri , seus antigos cúmplices, que sabia acharem-se em via de traição, atirando-os todos juntos à emboscada de Sinigaglia. Uma vez destruído esses chefes e conquistados os seus partidários, procura atrair seus súditos de Romagna, até então entregues aos roubos, pilhagens e violências de todas as espécies; ele efetua essa operação em dois tempos. Primeiro tempo: restabelece a ordem, por meio de um homem cruel e expedito, Ramiro d´Orco, a quem deu os mais amplos poderes. Segundo tempo: restabelecida a ordem, sendo já desnecessária uma autoridade tão severa, que poderia mesmo tornar odioso o nome de Cesare, este procede de modo que, numa bela manhã, seja visto numa praça pública Ramiro d´Orco cortado em dois, ao lado de um cepo e de um facão ensangüentado. Agora, só lhe resta sacudir a dependência para com o rei da França: por conseguinte, começa a procurar amizades novas, a tergiversar com os franceses, aproximando-se dos espanhóis; projetava mesmo deixar os franceses sem possibilidade de contrariá-lo. É então que tudo se arruina. O Papa Alexandre VI Bórgia morre demasiado cedo, antes que o filho tenha tempo de assenhorear-se da Toscana, o que o tornaria bastante poderoso para achar-se em condições de resistir, por si mesmo, a um primeiro embate. Estava pronto o plano de campanha de Cesare, executá-lo era questão de alguns meses apenas; quanto ao mais, Cesare tudo previra, no caso de uma mudança de Papa. Alexandre VI morre três meses mais cedo: em agosto de 1503, subitamente. Cesare só está firme na Romagna. Acha-se entre o exército espanhol e o francês, ambos virtualmente inimigos; não está em condições de resistir, por si mesmo, a um primeiro embate. E, para cúmulo da infelicidade, cai doente; julga morrer das febres romanas: assim, dizia-me que pensara em tudo quanto poderia acontecer, se seu pai viesse a morrer, e que para tudo achara remédio; somente, jamais lhe passara pela imaginação que, em tal momento, ele próprio se encontraria em perigo de vida. (Cf. citação em CHEVALLIER, 1986, p. 64 a 66)
[10]   Dos que ascendem ao principado pelo crime.
[11]  O autor dá dois exemplos: “o de siciliano Agátocles, na Antiguidade, que, simples filho de um oleiro, consegue elevar-se à dignidade de rei de Siracusa; o de Oliverotto, na época do Papa Alexandre VI, que se torna senhor de Fermo, massacrando o seu tio materno e os mais distintos cidadãos da cidade, por ele convidados a um banquete”. (S/d, p. 69)
[12]   Principado civil.
[13]  Principados eclesiásticos.
[14]  Fortuna é a sorte - boa ou má -, o acaso, as circunstâncias, a oportunidade.
[15]  A virtù nada tem a ver com a virtude cristã, que sujeita o indivíduo à vontade divina, na expectativa da vida perfeita; como também não é a virtude aristotélica, justa e racional; ou a estóica, resignada e tolerante. Para Maquiavel, virtù é a energia, a capacidade, o empenho, a eficácia, a vontade dirigida para o objetivo.
[16]  Giovanni de Medici (1475-1521), eleito Papa em 1513, tomou o nome de Leão X. Era pontífice no momento em que Maquiavel escrevia O Príncipe.
[17]  Como se devem medir as forças de todos os principados.
[18]  Das várias espécies de milícias e dos soldados mercenários.
[19]  Das tropas auxiliares, mistas e nacionais.
[20] “Que não há nada tão frágil nem tão instável quanto a fama do poder que não se apóia nos seus próprios fundamentos” (S/d, p. 96). Maquiavel refere-se a uma passagem de Tácito nos Anais, XII, 19, que entretanto está assim, apresentando ligeira diferença da transcrição feita: Nihil mortalium tam instabile ac fluxum est quan fama potentiae non sua vi nixae.
[21]  Das obrigações do príncipe em relação às tropas.
[22]  Inspirando-se, sem dúvida, em medida que não se deve absolutamente exagerar, no “tirano” de Aristóteles.
[23]  Das coisas pelas quais os homens, principalmente os príncipes, são louvados ou vituperados.
[24] Platão, com A República; Thomas Morus, com A Utopia; Francis Bacon, com a Nova Atlântida; Tommaso Campanela, com a Cidade do Sol.
[25]  Da liberalidade e da parcimônia.
[26]  Crueldade e piedade; e se é melhor ser amado do que temido ou o contrário.
[27]  Cesare Borgia era tido como cruel; entretanto, essa crueldade havia posto ordem na Romanha, promovido a sua união e a sua pacificação e inspirando confiança o que, bem considerado, mostra ter sido ele muito mais piedoso que os florentinos, os quais, para se esquivarem da reputação de cruéis, deixaram que Pistóia fosse destruída. Florença ocupou Pistóia depois de uma série de motins na cidade, ocorridos em 1501 e 1502, provocados pelas lutas entre as facções dos Panciatichi e dos Cancelliere, que o governo florentino fomentava.
[28]  Como todo florentino, Maquiavel vive atormentado pelas conjurações.
[29]  De que modo devem os príncipes manter a palavra dada.
[30]  Neste ponto, Maquiavel experimentou a necessidade, rara nele, de envolver seu pensamento nu e cru, de vesti-lo à antiga, num mito sedutor à imaginação. Escolheu o mito de Aquiles e do centauro Chiron, semi-cavalo e semi-deus. Assim, queriam exprimir os antigos que é necessário, a um príncipe, agir tanto como animal quanto como homem. É próprio do homem combater pelas leis, regularmente, com lealdade e fidelidade. É próprio do animal combater pela força e pela astúcia. Não basta a maneira puramente humana; muitas vezes o homem se vê obrigado a usar a maneira animal. O princípio perfeito, armado para a luta, cujo tipo é Aquiles, deve possuir de certo modo ambas as naturezas, de homem e de animal, as quais se amparam reciprocamente.
[31]  De como evitar o ser desprezado e odiado.
[32]  Antonino tinha assassinado, de modo indigno, um irmão de um centurião, e ameaçado a este ainda diariamente; mas, obstante isso, manteve-o na sua guarda, o que era coisa temerária e capaz de arruiná-lo, como sucedeu.
[33]   Se as fortalezas e muitas outras coisas que os príncipes fazem freqüentemente são úteis ou inúteis.
[34]  Como deve conduzir-se um príncipe para ser considerado.
[35]  Dos ministros dos príncipes.
[36]  De como evitar os aduladores.
[37]  Por que os príncipes da Itália perderam seus estados.
[38]  Quanto pode a sorte nas coisas humanas e de que modo se lhe resiste.
[39]  Maquiavel compara a sorte (fortuna) “a um rio desastroso que, quando se enfurece, inunda as planícies, destrói árvores e edifícios, carrega terra de um ponto para outro, e diante do qual todos fogem e a cujo ímpeto cedem, sem poder coisa alguma intentar para contê-lo. Mas, apesar desta natureza, não é impossível aos homens, quando este rio estiver em calma, tomar medidas preventivas, construindo barragens e diques, de maneira que, avolumando-se ele depois, ou correrá por um canal ou o seu ímpeto não será violento nem tão danoso” (S/d, p. 143).
[40]  Exortação a que a Itália seja recobrada dos bárbaros e libertadas.
[41]  E se, como Maquiavel dissesse, foi necessário para que se mostrassem as virtudes de Moisés, que o povo de Israel tivesse sido escravizado no Egito; que, para que se visse a grandeza do ânimo de Ciro, os persas tivessem sido oprimidos pelos medas; e, para que se visse o valor de Teseu, que os atenienses se houvessem dispersados.
[42]  Linguagem que parece insólita nesse Maquiavel, que dá a impressão de só acreditar no que vê; o quê! Agora, este cínico profetiza!
[43]  A virtude tomará armas contra o furor, e o combate será curto, pois o valor antigo ainda não morreu nos corações italianos; verso 93-96 da canção Italia mia, bem ch´l parla sia indarno, nas Rime sparse, de Francesco Petrarca.
[44]  Conquista, conservação, fortalecimento.
[45]   A unificação italiana alertou profundamente o quadro político da Europa no século XIX, rearticulando um equilíbrio de forças que resultaria na I Guerra Mundial (1914-1918). Com as transformações econômicas e sociais que atingiram a Europa no século XIX, o norte da Península Itálica se desenvolveu. A industrialização impulsionou o comércio e as cidades explodiram. Criou-se uma infra-estrutura ferroviária. A alta burguesia queria a unificação, que garantiria o progresso e lhe daria possibilidades de concorrer no mercado externo. Para ela, a unificação tinha significado apenas liberal; o nacionalismo não passou de instrumento. Seus objetivos se resumiam no movimento chamado Risorgimento. A média burguesia, aliada ao proletariado urbano, desejava um Estado que adotasse medidas econômicas e sociais de tendência democrática. Preferia uma unificação em termos republicanos, enquanto a alta burguesia queria unificar o mais fácil e rápido possível, em torno do reino mais forte da Itália: Piemonte-Sardenha. Por conseguinte, após o Congresso de Viena, a Itália ficou sob tutela do Império Austríaco, dividido em sete Estados: ao norte, Reino Piemonte-Sardenha; Parma; Módena e Toscana; Reino Lombardo-Veneziano; ao centro, o Estado Pontifício, sob domínio do Papa; e ao sul, Reino das Duas Sicílias. Em 1848, o rei Carlos Alberto do Piemonte-Sardenha tentou a unificação e declarou guerra à Áustria. O movimento Jovem Itália estimulava o nacionalismo, completado pelo Risorgimento; a finalidade era reviver o espírito da Renascença e do Império Romano. Vencida, o rei deixou o trono para seu filho Vítor Emanuel II. Outras rebeliões foram sufocadas, mas o ideal de unificação continuou mais forte que nunca. Em 1852, o ministro Cavour, do Piemonte, tomou a seu cargo a unificação; queria fazê-la por intermédio da casa de Savóia, mas precisava de aliado forte para expulsar os austríacos. Por isso, enviou tropas italianas à Guerra da Criméia, que opunha Rússia contra França e Inglaterra (1854-1856), ganhou o direito de ganhar parte no Congresso de Paris, onde se discutiu o problema da unificação italiana. Em 1859, Cavour e Napoleão III se encontraram secretamente e fizeram um acordo: Napoleão apoiaria o Piemonte contra a Áustria e receberia os condados da Savóia e da Nice; o Piemonte receberia a Lombardia, mas a mobilização da Prússia e a reação dos católicos franceses amedrontaram Napoleão, que assinou a paz com a Áustria. O Piemonte recebeu a Lombardia, mas a Áustria conservou Veneza. Nesse tratado ficou combinada a formação de uma confederação dos Estados Italianos sob a presidência do papa, o que contrariava os objetivos de Cavour. As campanhas militares de 1859 repercutiram em toda a Itália, Toscana, Parma, Módena e Romagna, Estados pertencentes ao papa, se revoltaram, querendo unir-se ao Piemonte. Napoleão III concordou, desde que a França recebesse Savóia e Nice. Os dois condados, em plebiscito em 1860, aprovaram a passagem para a França quase por unanimidade. Com a conivência  de Cavour, Garibaldi e alguns voluntários se apossaram da Cicília e, na volta, passaram por Nápoles e puseram em fuga o rei Francisco II. As tropas de Piemonteenvadiram os Estados papais, únicos do centro da Itália ainda não integrados. Garibaldi, republicano, opunha-se à casa de Savóia, pois daria ao país um regime monárquico. Para não atrapalhar a unificação, afastou-se da vida pública temporariamente. Quando Cavour morreu em 1861, o Piemonte já dominava quase toda Itália. Vítor Emanuel II declarou-se rei e transferiu a capital para Florença. Para completar a unificação, faltava só a adesão dos restantes Estados papais e Veneza. A conquista de Veneza foi possível graças à guerra entre Áustria e Prússia, à qual os italianos se aliaram. Vencida, a Áustria pediu o arbritamento de Napoleão III. Veneza passou à Itália após um plebiscito. A Áustria ainda conservaria Trento e Trieste até a I Guerra Mundial. O problema com os Estados papais era mais difícil. Roma sempre havia sido capital da Itália. Mas o papa se recusava a entregar a cidade, garantia da independência da Igreja, e também a reconhecer a autoridade de Vítor Emanuel II. Garibaldi tentou tomar Roma, mas Napoleão III enviou uma guarnição para proteger o papa: tomar Roma pela força equivaleria a declarar guerra à França. Mas em 1870, os prussianos invadiram e venceram a França; os italianos, então, tomaram Roma e ocuparam o resto dos Estados pontifícios. Em 1871, Vítor Emanuel ofereceu ao papa as leis de garantis, mas Pio IX considerou-se prisioneiro no Vaticano e recusou qualquer conciliação. A questão romana só se resolveu em 1929 pelo Tratado de Latrão, entre Mussolini e Pio XI, que criou o Estado do Vaticano, com quase cinco quilômetros quadrados de superfície. (ARRUDA, José de A., PILETTI, Nelson, 1996, p. 212-213).