quarta-feira, 22 de maio de 2013

O “DIREITO DE DIZER NÃO” E A OPINIÃO PÚBLICA COMO INSTÂNCIAS MEDIADORAS DAS DETERMINAÇÕES ÉTICO-POLÍTICAS

            A constituição é a própria organização do Estado. As instâncias mediadoras das determinações ético-políticas ocorrem através da família, das corporações, dos estamentos e da opinião pública. A função dos estamentos é fazer a mediação entre o governo e o povo.

Consideradas como órgãos de mediação, as assembléias de ordem situam-se entre o governo em geral e o povo disperso em círculos e indivíduos diferentes. Delas exige a sua própria finalidade tanto o sentido do Estado, e a dedicação a ele, como o sentido dos interesses dos círculos e dos indivíduos particulares. Simultaneamente significa tal situação uma comum mediação com o poder governamental organizado de modo a que o poder do príncipe não apareça como extremamente isolado nem, por conseguinte, como simples domínio ou arbitrariedade, e assim que não se isolem os interesses particulares das comunas, das corporações e dos indivíduos. Graças a essa mediação, os indivíduos não se apresentam perante o Estado como uma massa informe, uma opinião e uma vontade inorgânica, poderes maciços em face de um Estado orgânico. (Rph, § 302).

Um povo sem estamentos é um povo sem Estado. É uma mera massa, uma mera multidão.

A função dos estamentos fica evidenciada: impedir o poder arbitrário do príncipe; exercer a mediação entre o governo e o povo; defender os interesses particulares junto aos interesses coletivos. Algumas dessas funções são hoje exercidas pelos sindicatos, pelas associações de bairro, etc. (WEBER, 2009, p.160-1).

A opinião pública tem como função controlar a administração do poder público. Ser membro de um Estado é ser membro de uma corporação. Entre as corporações, há também uma corporação que cuida da burocracia estatal. Nem todos participam desta corporação; “na opinião pública [...], todavia, pode cada qual encontrar os meios de se exprimir e de fazer valer a opinião subjetiva que possui do universal”. (Rph, § 308).

A liberdade subjetiva formal de os indivíduos terem e exprimirem os seus juízos próprios, a sua própria opinião sobre os assuntos públicos manifesta-se no conjunto de fenômenos a que se chama opinião pública. Nela, o uniersal em si e para si, o que é substancial e verdadeiro encontram-se associados ao que lhes é contrário: o particular para si, a particularidade da opinião da multidão. Esta existência é, portanto, a contradição de si mesma no dado, o conhecimento como aparência. É, ao mesmo tempo, o essencial e o inessencial. (Rph, § 316).

            Por meio da opinião pública, a opinião dos povos passa a ser conhecidas. Porém, essa opinião ocorre de forma “inorgânica” e subjetiva e não de forma orgânica, ou seja, por meio das mediações dos estamentos. A opinião pública tem o direito de não aceitar as decisões do governo. Conforme Rosenfield, “o que está em jogo é a capacidade de livre exame da opinião pública”. (1983, p. 258). O fundamento ético da Constituição não aceita que a força é o caminho para as decisões políticas. A base deve ser os hábitos e costumes dos povos. E isso se é manifestado através da opinião pública, mesmo sendo contingente. Ela é “apreciada, porque, sem contingência, não há alternativa e, sem estas, não há liberdade”. (WEBER, 2009, p. 162). Há, na opinião pública, tanto o verdadeiro quanto o falso. Encontrar o verdadeiro é tarefa dos grandes homens.

Em si contém pois a opinião pública os princípios substanciais eternos da justiça: o conteúdo verídico e o resultado de toda a constituição, da legislação e da vida coletiva em geral na forma do bom-senso humano, e o dos princípios morais imanentes em todos na forma de preconceitos. (Rph, § 316).

            Já em relação à imprensa, Hegel destaca que ela tem a liberdade de dizer e escrever o que ela quer. (cf. Rph, § 319). Liberdade de expressar o que se pensa não significa ser irresponsável. “Um ato público, não violento, contrário à lei, com o objetivo de mudá-la, que é o que Rawls chama de ‘desobediência civil’, é algo perfeitamente possível e necessário”. (WEBER, 2009, p. 163).

Ser membro do Estado é ser membro de uma classe e estamentos são as instâncias mediadoras da eticidade e, portanto, momentos da busca e determinação de princípios éticos universais. Essa busca não ocorre na ‘roda do discurso’, como em Apel e Habermas, mas nas mediações (que podem incluir a argumentação) da família, das corporações, do Estado. A ética fica, assim, política, e a política, ética. (WEBER, 2009, p. 164).

Para Hegel, “o Estado é uma união e não uma associação, um organismo vivo e não um produto artificial, uma totalidade e não um agregado, um todo superior e anterior as suas partes, e não uma soma de partes independentes entre si”. (BOBBIO, 1991, p. 98). Os indivíduos que são responsáveis por cargos públicos, exercem-nos porque há um reconhecimento por parte dos cidadãos desta capacidade. Eles devem realizar o que é do interesse de todos e os cidadãos devem ter a sua disposição a possibilidade de examinar a vida pública. “A opinião pública tem o direito de ser informada”. (ROSENFIELD, 1995, p. 266). Se os indivíduos concluírem que os encarregados das atividades do Estado não são competentes, não há a possibilidade de realização do reconhecimento. O povo está satisfeito quando os encarregados das funções públicas são os mais capazes para tais cargos. “O caráter público dos debates dá a qualquer cidadão a possibilidade de se medir com aqueles que dirigem a vida do Estado”. (ROSENFIELD, 1995, p. 267). Quando o povo está bem-informado, não é possível manipulá-lo. Por meio da opinião pública é que ocorre a formação política dos cidadãos. É possível por meio da opinião pública utilizar o ‘direito de dizer não’. “O que está em questão é uma intervenção sobre a vida política enquanto tal com o intuito de prevenir o surgimento de qualquer forma despótica ou totalitária de exercício do poder”. (ROSENFIELD, 1995, p. 267).

Suportar um Estado não significa que se deva submeter passivamente à opressão existente. Compete aos cidadãos acionar, pelo direito à crítica, os meios de resistir a este estado de coisas e de transformá-las à medida que progride a consciência do que é a emergência de uma liberdade necessária. Quando os indivíduos comportam-se em relação ao Estado como se ele fosse uma substância inerte e fixa, abre-se um período de degradação da livre organização social. [...] O exercício do direito, a atividade do pensamento e o pensar do cidadão perfazem e desenvolvem o conceito do Estado. (ROSENFIELD, 1995, p. 231).

O Estado não pode impor decisões sobre os cidadãos sem o consentimento dos mesmos. Eles devem reconhecer as decisões. Por meio da opinião pública é que se exige uma explicação das decisões do Estado, “concretizando o princípio de uma liberdade subjetiva que questiona qualquer decisão que se refira ao conjunto do corpo social”. (ROSENFIELD, 1995, p. 268). Porém, nem sempre a opinião pública expressa o necessário; ao expressar a imediação, o governo deve ter uma independência necessária em relação a ela.

O ideal filosófico de uma opinião pública permanecerá sempre um ideal, pois a crônica está submetida aos seus acasos. Isto, no entanto, não deve impedir um trabalho de conscientização da opinião pública, pois o que se encontra em jogo é a concretização do direito de dizer não. (ROSENFIELD, 1995, p. 269).

“As diferentes figuras e esferas do real determinam-se reciprocamente e, dessa circularidade, nasce a Ideia da liberdade como realidade viva e como atualização efetiva do conceito”. (ROSENFIELD, 1995, p. 285). A concepção de Hegel não visa uma valorização do Estado sobre o indivíduo.

Nesta perspectiva, é interessante fazer uma breve comparação com Platão e Aristóteles, que estão em estreita correspondência com o que Hegel denomina bela unidade da ‘cidade’ grega e cujos pensamentos aparecem quando essa unidade já não mais existe. A corrupção dos costumes já tinha tomado conta da vida da polis, anunciando o fim de uma época. Eles puderam pensar a bela harmonia da ‘cidade’ como fim último do agir humano, pois haviam se distanciado de uma situação histórica que não correspondia mais ao conceito desta individualidade ética. Suas tentativas de restabelecer a harmonia perdida estavam destinadas ao fracasso, porque desconheceram a verdade do que nascia, a liberdade subjetiva. A ‘cidade’ recusou-se a integrar em si o que, no entanto, tinha nascido nela. A particularidade desenvolveu-se em oposição à unidade ética: de modo subjetivo, ela concretizou-se na religião cristã e, objetivamente, no mundo romano. (ROSENFIELD, 1995, p. 285-6).

A concepção de eticidade hegeliana corresponde à concepção orgânica de Estado, conforme o ideal grego, diferentemente da vertente contratualista moderna, que sustentava um atomismo político. Hegel, perante a oposição entre a liberdade subjetiva e a substancialidade ética, demonstra que a concretização da liberdade só ocorre por meio das mediações sociais e jamais de forma abstrata e imediata. Todavia, conforme Rosenfield esboça,

os violentos acontecimentos que marcaram os séculos XIX e XX recolocaram, com maior intensidade, a problemática enfrentada pelo filósofo: como organizar livremente as relações entre o indivíduo e a comunidade em um único movimento de mediação? Pensar o indivíduo como membro de uma comunidade livre, eis umas das questões com a qual nos debatemos ainda hoje. [...] O desafio lançado por Hegel é o de pensar a contingência necessária da sua própria filosofia. (1995, p. 286-7).

            “A vontade tem, então, o direito de dizer não ao que acontece na história, tem o direito (e o dever) de transformar o existente, o direito de não aceitar o que lhe é imposto” (ROSENFIELD, 1995, p. 31). Portanto, segundo a concepção hegeliana, é necessário pensar o indivíduo não como alguém isolado, mas determinado em uma teia de relações. Não é possível pensar uma concepção atomista, mas holista acerca da sociedade civil e política. “À medida que o conceito apropria-se do mundo, à medida que se reconhece no produto de sua própria atividade, ele chega a aprender-se como essencialmente histórico.” (ROSENFIELD, 1995, p. 31). Na moralidade, fala-se do sujeito, termo médio entre pessoa e membro. “A esfera da moral não é independente da esfera jurídica, nem da esfera ética, ou, mais particularmente, da política, mas visa, na realidade, a organizar o todo segundo uma ordem de verdade”. (ROSENFIELD, 1995, p. 108). A ação moral é possível na eticidade, permeada por relações econômicas, culturais, políticas e sociais.

A vontade moral vive da tensão entre o que ela é individualmente e o que ela crê ser a universalidade do conceito: trata-se do ponto de vista da relação (Verhältnis), do dever-ser (Sollen) e da exigência (Forderung) (Hegel, 1967ª, § 108). Logo, estas três determinações da vontade moral indicam que a vontade individual guarda ainda uma relação formal com a vontade universal em dois sentidos: a) a forma do dever-ser moral permanece uma universalidade abstrata, que deve reger cada ação individual sem, contudo, poder orientá-la praticamente. O dever-ser moral é, assim, uma ideia prática que, entretanto desconhece a realidade sobre a qual age, podendo-se verificar como uma ação moral pode separar-se de uma ação política e pôr como fim de qualquer ação um além que nenhuma comunidade humana pode-se jamais alcançar. São casos nos quais o que ‘deve ser’ em termos morais não pode sê-lo na prática; b) essa relação formal, contudo, não é algo fixo, pois ela consiste essencialmente em uma atividade que põe suas próprias determinações na objetividade. Ou seja, a ação moral, postulando o seu dever-ser e sua finalidade interior, tenta se dar os meios suscetíveis de realizá-la praticamente, verificando-os segundo a sua dimensão de verdade; aqui, a determinação moral torna-se um componente essencial de toda ação política: o que ‘deve ser’ em termos morais não pode sê-lo na esfera política. (ROSENFIELD, 1995, p. 109).

            Na moralidade, Hegel apresenta a concepção da liberdade subjetiva. É o momento em que o sujeito é consciente do seu processo de determinação de si. Portanto, o Estado não domina e impõe a sua vontade sobre o sujeito. “O Estado, nos eu conceito, vem a ser a atualização desse movimento de reconhecimento de cada indivíduo nas determinações do todo”. (ROSENFIELD, 1995, p. 110). O indivíduo, sabendo de sua liberdade, limita a ação de um Estado histórico despótico. Somente diante da ignorância dos indivíduos em relação a sua liberdade é que torna possível Estados despóticos.

Uma interioridade cultivada, crítica, constitui uma das melhores garantias contra todas as tentativas que visam à sujeição do homem, tornando-se, portanto, uma condição para o desenvolvimento da liberdade, sem a qual qualquer comunidade pode vir a ser opressora em relação à vida individual. Trata-se de criar as condições que tornem possível uma coincidência efetiva entre a finalidade da ação moral e a finalidade da ação política. (ROSENFIELD, 1995, p. 110).

            Conforme Rosenfield, “o conceito de direito engendra-se efetivamente graças ao desenvolvimento das novas relações sociais, e [...] assegurando a legalidade da troca, desdobra as determinações de igualdade e de justiça das quais ela é portadora. (1995, p. 196). A jurisdição se faz necessária para gerar a ordem.

[...] Trata-se de duas determinações próprias deste movimento de mediação: uma ‘põe’ o direito privado como uma realidade efetiva, como lei, e a outra consiste na consideração preliminar da jurisdição como momento mediador entre a unidade da vida econômica e a efetuação das suas oposições. Com efeito, este movimento contraditório da sociedade inscreve-se na posição própria das determinações do ‘sistema dos carecimentos’, indicando aqui e ali o sentido das oposições que se esboçam. Em outras palavras, Hegel, com a sua preocupação de fortalecer esta unidade que se engendra diferentemente segundo a esfera de sua efetuação, procura estabelecer uma relação universal do direito como instância adequada de resolução de todos os conflitos privados, assim como de uma proteção efetiva dom trabalho e da propriedade. Os conflitos privados encontram solução na administração da justiça, enquanto o Estado tentará resolver as contradições sociais. (ROSENFIELD, 1995, p. 196-7).

            Através da jurisdição é possível viver na sociedade exercendo a sua liberdade. Apenas afirmar que os homens são iguais não basta. É necessário também viver isso subjetivamente na exterioridade das coisas. É por meio da cultura que a jurisdição efetiva-se na eticidade. “Formar o homem para a prática da liberdade, elevar a consciência do indivíduo à forma universal da cultura, eis um dos grandes problemas da filosofia política de Hegel”. (ROSENFIELD, 1995, p. 197).

A exigência de que o direito deve ser conhecido (Hegel, 1967a, § 210) pela consciência e que seja conhecido por todos como tendo uma validez universal revela que este processo, graças ao qual o direito adquire uma potência de efetividade (Macht der Wirklichkeit), não se confunde com uma potência separada da realidade efetiva dos indivíduos. A presença do particípio passado do verbo saber (gewusst) expressa de duas maneiras esta atividade do conceito: a) a lei, objetividade ‘posta’ do direito, é o produto consciente de uma cultura que se pensa na atualidade de sua história; a vontade se sabe no seu próprio objeto; b) se não se viola a lei, é porque todos sabem que ela é igual para todos. Não se trata de um mero conhecimento do que é a lei, mas de saber que ela veio a ser o produto universal de um pensamento da objetividade. (ROSENFIELD, 1995, p. 198).

            Para que haja uma estabilidade nas leis é necessário que o direito individual (privado) seja reconhecido por todos. “Não compete ao livre-arbítrio da subjetividade do indivíduo violar o que está por lei estipulado. [...] O crime não é mais apenas uma violação da liberdade de outrem, mas do universal efetivamente reconhecido por todos”. (ROSENFIELD, 1995, p. 201). A atomização de atos particulares não comprometem mais o conceito da eticidade. A solidariedade faz parte de uma sociedade unida e coesa. “A clemência na aplicação da pena é, assim, inversamente proporcional ao poder da sociedade. No caso de uma sociedade poderosa, livre, a pena tende a ser fraca”. (ROSENFIELD, 1995, p. 201). Portanto, cada época e cada lugar têm a sua cultura, o seu jeito de ver as penas. É no Estado que há a efetivação da liberdade concreta. Isso se traduz pela conexão existente entre a universalidade do Estado e a particularidade dos indivíduos. “A universalidade estatal é livre à proporção que libera o princípio da livre subjetividade em que este princípio se perfaz”. (ROSENFIELD, 1995, p. 232).

A vontade particular reconhece-se como membro do todo, pois esse ato de reconhecimento tornou-se a concreção de um movimento no qual ela dissociou-se do universal, voltando a sua unidade substancial com o Estado. A unidade estatal vive do processo de extrema dissociação da vontade particular, ou melhor, a liberdade ética é sempre vivida individual e subjetivamente. (ROSENFIELD, 1995, p. 232).

Hegel não aceita uma forma estatal que se impõe autoritariamente sobre os indivíduos. Ele defende, contudo, um Estado que salvaguarda a liberdade. “A identidade substancial entre o Estado como fim supremo (Endzweck) universal e os interesses particulares dos indivíduos manifesta-se politicamente em um sistema de direitos e deveres”. (ROSENFIELD, 1995, p. 233). Tanto no direito abstrato quanto na moralidade não é visível a diferença entre direitos e deveres, pois a forma e o conteúdo eram idênticos a todos. Por exemplo, “na propriedade [...] expressava uma mesma relação formal de reconhecimento entre diferentes proprietários dizendo respeito a um único objeto de troca, possuindo cada um, [...] direitos e deveres em relação a outrem”. (ROSENFIELD, 1995, p. 233). Na eticidade, todavia, a forma permanece idêntica, mas o conteúdo não é o mesmo. Por exemplo, “o direito do indivíduo é ser reconhecido como livre, enquanto o seu dever é defender o Estado quando este entrar em guerra com um outro Estado”. (ROSENFIELD, 1995, p. 233).
A culminação do processo do desenvolvimento do conceito ocorre no Estado. Portanto, o Estado é a Ideia plena da liberdade. Com isso, segundo Rosenfield, fica clara a ideia de progresso em Hegel: “um avançar que se nutre de uma volta sempre reiterada ao processo de totalização lógica e figurativa da vida histórica do conceito, o qual, para chegar a si numa nova figura, efetua o que se chama um retorno ao ‘fundamento ético’”. (1995, p. 235). Esta concepção orgânica do Estado já está em Aristóteles[1]. Tanto para Aristóteles quanto para Hegel, as relações humanas são substanciais e não contratuais. O pensamento hegeliano acerca da família, da sociedade civil e do Estado tem suas bases na concepção aristotélica de pólis. “O todo não é um conjunto de indivíduos isolados numa relação negativa de mútua exclusão, pois se trata, essencialmente, de uma relação orgânica em que cada membro cumpre uma função determinada”. (ROSENFIELD, 1995, p. 235-6). Agnes Heller destaca que Hegel foi o último suspiro da concepção ético-política de justiça que surgiu com Aristóteles. (cf. 1998, p. 127).

Hegel, partindo da dissociação moderna entre a liberdade individual e a comunidade política, tenta reconciliar o indivíduo com a substancialidade ética pela criação de um novo conceito de indivíduo. A reconciliação (Versöhnung) indica a unidade criada pelo dilaceramento entre o particular e o universal graças ao ato que reconhece em cada um desses termos o movimento de produção do outro. Com efeito, a vida política moderna desenvolve-se a partir da formação cultural de uma nova individualidade, que se reconcilia progressivamente com um mundo por ela criado”. (ROSENFIELD, 1995, p. 236).

            A base sólida do Estado existe porque o cidadão é “uma singularidade que sabe e quer para si (für sich wissende und wollende Einzelheit) e uma universalidade sabendo e querendo o que é substancial (das Substantielle wissende und wollende Allgemeinheit)”. (ROSENFIELD, 1995, p. 236).

A moralidade abstrata e subjetiva não somente é pressuposta pela eticidade mas, ao unir-se com a objetividade do direito abstrato, permite a realização efetiva ou concretização (Verwirklichkeit)  do movimento autoconsciente e autodeterminante da liberdade humana, através da história de suas figurações. O saber (Wissen) e o querer (Wollen) se engendram efetivamente na própria autoconsciência que desvelará, em última análise, a substancialidade da verdadeira liberdade, ou seja, a figura do ‘Bem’ abstrato (determinado pela moralidade) que é finalmente concretizado eticamente (no conceito concreto de Sittlichkeit). (OLIVEIRA, 1999, p. 89).

Hegel possui uma concepção ética do jurídico. Ele não aceita um mero formalismo. Conforme Bourgeois, “Hegel afasta ainda mais o ato da justiça da afirmação propriamente jurídica do direito”. (2004, p. 49). O direito, assim, está além do formalismo, do jurídico. Conforme Heller, “Hegel queria realizar a preservação e o reforço de um completo conceito ético-político de justiça, que tanto é adequado à modernidade como ainda apoiado na realidade”. (1998, p. 128). A ideia central na teoria do direito em Hegel é a liberdade. A questão do justo e do injusto é central em Hegel. Destarte, a liberdade só se concretiza na sociedade onde o justo impera. O reconhecimento do direito objetivo ocorre na lei, no direito positivo. Através dele a justiça se materializa. “É [...] o próprio domínio do relativo, a cultura, que dá existência ao direito. O direito é, então, algo de conhecido e reconhecido, e querido universalmente, e adquire a sua validade e realidade objetiva pela mediação desse saber e desse querer”. (Rph, § 209). A justiça, para Hegel, é a justiça ético-política. Ela ocorre por meio das medições culturais transformando-se historicamente. O Estado concretiza-se através de uma Constituição. Essa é formada por um sistema de Constituições. “A razão desenvolvida e realizada no particular [...] é a base segura do Estado bem como da confiança e dos sentimentos cívicos dos indivíduos”. (Rph, § 265).


[1] “A natureza da cidade, no mundo grego, é o resultado do processo de atualização da ‘família’ e da ‘aldeia’. A relação entre o indivíduo e a comunidade é de uma identidade entre a razão de ser de cada um, e a finalidade da pólis, a finalidade de todos. Tal indivíduo não é, bem entendido, o indivíduo produzido pela liberdade subjetiva dos tempos modernos. Com efeito, é importante assinalar que a ‘cidade’ é a concretização de um processo teleológico enraizado nos seus elementos simples, ou seja, a família (macho/fêmea, pai/filhos e senhor/escravo) e a aldeia, formas comunitárias da totalidade política, e significam que a ‘cidade’, realizando os eu fim, sendo que o todo só existe por suas partes, que só se efetuam nele”. (ROSENFIELD, 1995, p. 235).

Referências

BOBBIO. N. Estudos sobre Hegel. Direito, Sociedade Civil, Estado. 2. ed. São Paulo: Brasiliense/UNESP, 1991.
BOURGEOIS, Bernard. Hegel: os atos do espírito. São Leopoldo: Unisinos, 2004.
HELLER, Agnes. Além da justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
HEGEL. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 
OLIVEIRA, N. F. de. Tractatus ethico-politicus: genealogia do ethos moderno. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.
ROSENFIELD, D. Política e liberdade em Hegel. São Paulo: Ática, 1995.

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