segunda-feira, 24 de setembro de 2012

RESENHA DA OBRA A GENEALOGIA DA MORAL, DE NIETZSCHE

Na obra A Genealogia da moral, Nietzsche desenvolve uma crítica intensa dos valores morais que vêm desde Sócrates e outros impostos, posteriormente, por ideologias judaicos-cristãs. No prefácio da obra, o filósofo questiona-se: “qual é definitivamente a origem das nossas idéias do bem e do mal? Atribui-se ao bem um valor superior ao valor do mal, ao valor do progresso, da utilidade, do desenvolvimento humano. E por quê? Não poderia ser verdade o contrário?” Neste tom de crítica, Nietzsche discorre sua obra. Este escrito visa ressaltar alguns traços importantes desta relevante obra. Não será trabalhado aqui nenhum motivo transcendente, nenhum Deus que veio a revelar ao homem princípios para controlar o modo agir, mas sim investigará como surgiu entre os povos o juízo bom e mau. O livro se divide em três ensaios, sendo que o primeiro analisa os conceitos “bom e mau” e “bom e ruim”, o segundo estuda os conceitos de culpa e de má consciência e o terceiro, aspectos do ideal ascético.
A primeira parte, intitulada “Bem e mal – Bom e mau” consiste na psicologia do cristianismo. Nietzsche discute a origem dos sentimentos morais, a partir do antagonismo metafísico entre duas classes: a dos senhores e a dos escravos, na tentativa de explicação das condições de criação desses juízos e nas conseqüências para o desenvolvimento da sociedade. Tendo a classe senhorial, duas classes rivais: a guerreira e a sacerdotal; a primeira, dominante, cultua a virtude do corpo, enquanto a outra inventa o espírito. Desta rivalidade surgem as duas morais: a moral dos senhores (os fortes, os nobres, os sadios utilizam o termo “bom” tendo como antônimo o termo “ruim”. Por exemplo, numa luta o ruim é o adversário que não luta bem, porém isso não significa que ele é mal. Esta é uma avaliação técnica. Assim, é afirmado e elaborado o conceito bom a partir de si mesmo - eu sou bom, eu sou belo, eu sou forte -; em oposição cria o conceito ruim para tudo aquilo que é baixo, vulgar, plebeu) e a moral dos escravos (os fracos, os doentes, os escravos usam o termo “bom” tendo como antônimo o termo “mal”. Estes não julgam a técnica de luta, mas a crueldade. Dizem: nós somos bons e nossos adversários são maus, cruéis. Desta forma, surge uma avaliação moral. Esta é uma moral que nasce do ressentimento e é sempre uma reação ao que lhe vem de fora; sendo assim, seu conceito original é mal, para designar todo não-eu e com uma lógica surpreendente infere: ele é mal, logo eu sou bom). Quando os fortes deixam de fazer a avaliação técnica e começam a fazer a avaliação moral, acabam percebendo que são os maus e, desta forma, ficam arrependidos, tendo como conseqüência a má consciência. Assim, os fortes já não são mais fortes. Deixam de ser lobo para ser ovelha (animal de rebanho). Em suma, existe uma dupla origem para nossos juízos de valor, resultante de duas formas distintas de avaliar a vida: segundo a moral dos senhores ou segundo a moral dos escravos. Durante longo tempo essa dupla forma de avaliar conviveu na história até a revolta dos escravos na moral, que começa com o povo judeu e segue adiante com o cristianismo, que irá consolidar a vitória da moral dos escravos como a única moral. Nietzsche analisa o surgimento de uma inversão de valores – transvaloração dos valores. Assim, o bom passa a ser o pobre; o miserável, em contrapartida, o ruim, o mau, o impuro são aqueles materialmente ricos. Isso Nietzsche identifica como um “ato da mais espiritual vingança”. Nas palavras de Nietzsche, “os judeus vingaram-se dos seus dominadores por uma radical mudança dos valores morais. Com uma lógica formidável, atiraram por terra a aristocrática equação dos valores ‘bom, nobre, poderoso, formosa, feliz, amado por Deus’. E, com o encarniçamento do ódio afirmaram: bons são apenas os miseráveis, os pobres, os impotentes, os humildes, [...] os que sofrem, os necessitados, os enfermos, os disformes”. Nietzsche vê a história do ocidente à luz de uma enorme simplificação. O Renascimento parece-lhe um breve despertar dos juízos de valor da Antiguidade, que, no entanto, salienta o filósofo “graças a esse movimento de ódio – alemão e inglês – fundamentalmente plebeu, que se chama a Reforma da qual havia de sair, por natural reação, a restauração da Igreja e o restabelecimento de um silêncio sepulcral sobre a Roma clássica”. Para Nietzsche, a moral dos escravos obteve na Europa uma vitória ainda mais decisiva com a Revolução Francesa, com o triunfo da mediocridade, com o nascimento das idéias modernas. É somente em Napoleão que revive ainda uma vez mais, em pleno auge da revolta plebéia, durante um breve instante histórico, o grande homem nobre, “síntese de inumano e de sobre-humano”. O filósofo destaca que quando os oprimidos, os servos, cheios de vingança e de impotência se põe a dizer: ‘sejamos o contrário dos maus, sejamos bons. O bom é o que não injúria a ninguém, nem ofende, nem ataca, nem usa de represálias, senão que deixa a Deus o cuidado da vingança [...] e espera pouco da vida como os humildes e os justos. Tudo isto quer dizer em suma: ‘nós, os fracos não podemos sair de fracos, não façamos, pois, nada que não possamos fazer’. Esta amarga prudência, que até o inseto possui (o qual, em caso de grande perigo, se finge de morto) tomou o pomposo título de virtude, como se a fraqueza do fraco fosse um ato livre, voluntário, meritório.
A segunda parte, chamada de “A falta, a má consciência e o que se nos afigura” encerra uma psicologia da consciência moral. Na visão de Nietzsche, a antiga e remota história do homem nos ensina que observar alguém sofrer, ser castigado era uma alegria, pois a crueldade fazia e faz parte da natureza humana, sendo um instinto fundamental. Neste tempo em que a humanidade não se envergonhava ainda de sua crueldade, observa o filósofo, a vida sobre a terra era mais serena e feliz do que nesta época de pessimismo. Um doentio moralismo ensinou o homem a envergonhar-se de todos os seus instintos. A interioridade é o resultado de uma perversão dos instintos. Todos os instintos que não se chegam a exteriorizar interiorizam-se. Todo o mundo interior, primitivamente embrionário, se desenvolveu, adquiriu profundidade, largura e altura, quando a expansão do indivíduo para o exterior foi entravada. Por conseguinte, a tese nietzscheana sobre a origem da consciência moral é do seguinte teor: a consciência não é mais do que um instinto de crueldade impedido de se exteriorizar e que, por isso, se interioriza. Deste modo, a origem da má consciência é colocada como instintos reprimidos que não podem se exteriorizar e, então, se voltam para dentro, contra o homem mesmo que possui esses instintos. Aquele pequeno mundo interior vai se desenvolvendo a medida que a exteriorização do homem acha obstáculos. Parafraseando o autor, “as barreiras que a organização social construía para se desenvolver contra os antigos instintos de liberdade, e, em primeiro lugar, a barreira do castigo, conseguiram que todos os instintos dos homens selvagens se voltassem contra o homem interior. A ira, a crueldade, a necessidade de perseguir, tudo isso se dirigia contra o possuidor de tais instintos; eis a origem da má consciência”. Então, veio ao mundo a maior e mais perigosa de todas as doenças: o homem doente de si mesmo que declarou guerra contra os antigos instintos. O homem é sempre um animal feroz, quer para o exterior, quer no seu íntimo.
Nesta terceira parte, denominada “Qual é o fim de todo o ideal ascético?”, que trata da psicologia do sacerdote, o filósofo interpreta a relação de várias figuras humanas, tais como: dos filósofos, dos sacerdotes e dos doutores da ciência, com os ideais ascéticos, procurando apontar o que significam estes ideais. Pode-se dizer que procura por uma contrapartida aos ideais ascéticos (contrapartida que ele não desenvolve na obra A Genealogia da Moral). Nietzsche salienta que os ideais ascéticos não significam a busca do vazio e do nada. Ao contrário, correspondem a uma característica fundamental da vontade humana: seu horror ao vazio, e a necessidade de um objetivo. Há várias formas de ideais ascéticos. Para os filósofos, o ideal ascético é apenas uma forma de autodisciplina, da economia de suas forças. Por isso, para a filosofia, os ideais ascéticos não são um envenenamento da fonte da vida. Diferente e de caráter problemático, é o ideal ascético do sacerdote, em que esse ideal nasce do instinto profilático e de defesa de uma vida que degenera. O domínio e o adoecimento do animal homem garante o seu poder. Segundo Nietzsche, “o sacerdote ascético deve ser o salvador predestinado, o pastor e o defensor do rebanho doente; tal é a sua prodigiosa missão histórica. A dominação sobre os doentes: eis o seu papel, a sua arte, a sua maestria, a sua felicidade. Tem que defender o seu rebanho, contra quem? Contra aos sãos, seguramente, mas também contra a inveja que inspiram os sãos”. O sacerdote é a este respeito o falso médico e salvador que mantém no seu sofrimento a vida que sofre, a vida miserável e medíocre. Ele cura a ferida de uma tal vida sofredora e envenena-a ao mesmo tempo, pelo que a ferida precisa constantemente de ser tratada. Para Nietzsche, o sacerdote é o homem que muda a direção do ressentimento. Ele persuade o doente de que está enfermo por sua culpa, consola-o e esforça-se por lhe fazer aceitar o ideal ascético. “Os fortes, segundo o autor, aspiram a separar-se e os fracos a unir-se. Assim, todos os doentes aspiram instintivamente a organizar-se em rebanhos, o sacerdote ascético adivinha este instinto e alenta-os onde quer que haja rebanhos, o instinto de fraqueza forma-os, a habilidade dos sacerdotes organiza-os”. O sacerdote faz o seu rebanho entender que a dor é um castigo. Assim, houve uma nova doença no mundo: o pecado. Quanto ao poder do ideal ascético sobre nós a resposta é que esse poder não tem antagonistas. É a única explicação, a única fonte de sentido para o homem até hoje. E esse sentido é dado como se a vida fosse um erro o qual devemos evitar. Toda a idealidade dos ideais da história, diz Nietzsche, era ascética. Quando o homem se eleva acima da mera sujeição animal aos seus instintos, quando ele é vontade, ele opõe a sua vontade ao instinto, ele “quer” contrariando o instinto. Contudo, o homem deverá exercer o seu arbítrio. Ele não pode limitar-se a vegetar; precisa cultivar ideais acima de si próprio; mas, até esse momento todos os ideais eram invenções dos sacerdotes (ideais contrários à natureza). Deste modo, Nietzsche estabelece uma relação íntima entre a vontade e o ideal ascético. Em certa medida existe ascetismo em cada vontade. Qual era o objetivo da vontade ao entregar-se aos ideais ascéticos? Nietzsche responde: o nada. A vontade era uma vontade de nada, uma tendência niilista da vida. A vontade na tensão do ascetismo quer o nada, quer o nada do Além, do ultramundano, dos ideais morais, ao mesmo tempo que nega o mundo terreno, a vida que vive. O filósofo diz que não havia até então na terra outro ideal senão o ideal contrário à Natureza, o ideal ascético; não havia ainda um ideal que fosse conforme a Natureza. O ideal ascético trata a vida como uma ponte para outra vida. Por ser o único sentido até hoje, e o homem ser um animal carente de sentido, o homem preferirá querer o nada a nada querer. O ideal ascético, contudo, tem importância positiva, pois ele cria o abismo e o precipício sobre os quais a vontade procura lançar uma ponte. O homem torna-se, assim, ponte entre ele próprio e o super-homem. Importa repensar a idealidade a partir da estrutura da vida que se supera a si própria, a partir da marcha gradual da vontade de domínio. O ideal ascético fora, até então, o único ideal; porém, a partir da Zaratustra existe um contra-ideal. Nietzsche nutre uma inimizade absoluta, encarniçada e ardente contra tudo quanto antes encerrava um “valor”. Ao repensar a natureza de valor, acaba abençoando o que até então era maldito e amaldiçoa o que até então era abençoado.
Em última análise, A genealogia da moral é o estudo da origem e da história dos valores morais. Nietzsche identifica a inversão de valores que levou ao surgimento da má consciência interiorizada pelo homem (ressentido) que não pode exercer suas vontades. Foi o ressentimento que destruiu valores vitais e promoveu a moral ascética dos fracos. A conclusão de Nietzsche foi de que não existem as noções absolutas de bem e de mal. Para ele as concepções morais surgem com os homens, a partir das necessidades dos homens. Ou seja, são produtos da história humana. Os homens são os verdadeiros criadores dos valores morais, sobretudo as religiões. Para o filósofo, grande parte das pessoas adota uma moral de rebanho. Para Nietzsche, todos os problemas da filosofia são problemas de valor.

RESENHA DA OBRA CRÍTICA DA RAZÃO PURA, DE KANT

Com o idealismo transcendental, Kant se diferencia dos outros sistemas idealistas da tradição. A sua ideia é que não conhecemos as coisas tal como elas são nelas mesmas. Portanto, o idealismo transcendental defende que não é possível conhecer a coisa-em-si. O projeto crítico kantiano tem como foco a delimitação do conhecimento a objetos conhecidos espaço-temporalmente. Desta forma, o Absoluto é incognoscível, já que o ser humano não tem o intelecto intuitivo, que supostamente permitiria o acesso imediato ao Absoluto. Kant recusa todo o saber dos objetos clássicos da metafísica, tais como ser, mundo, alma e Deus, pois para conhecer esses objetos é necessário estender-se para além do mundo fenomênico.
Em seu projeto crítico, Kant investiga a questão do conhecimento, ou seja, a possibilidade, o limite e o âmbito de aplicação do conhecimento, pois em sua época a filosofia se defrontava com a nova ciência da natureza, que ombreava os avanços bem anteriores realizados pela lógica e pela matemática. Já a metafísica não era capaz de oferecer soluções unanimemente aceitas, e tinha sua pretensão a ser ciência questionada. Por isso, Kant investiga a possibilidade dela como ciência, pois “lhe parece intolerável que a Primeira Filosofia, chamada tradicionalmente de Metafísica, permaneça envolvida em uma disputa sem fim em torno das questões de Deus, da liberdade e da imortalidade” (HÖFFE, 2005, p. 11). Para que a filosofia mantenha seu lugar entre as ciências, essa controvérsia, acerca dos fundamentos metafísicos, deve ser superada. Para tal, a investigação kantiana procura pelo critério que permite delimitar o que pertence e o que não pertence à ciência para verificar se a metafísica se situa ou não no campo científico, e assim, o porquê da metafísica não apresentar o mesmo grau de certeza da lógica, da matemática e da física.
Ao invés de propor um novo sistema metafísico, que sem dúvida teria sorte idêntica à dos outros, Kant irá atacar o problema pela raiz, interrogando-se sobre as próprias possibilidades da razão. Intima-a para conhecer-se a si mesma por meio de um método reflexivo e para instituir um tribunal que se recuse a seguir todas as exigências que carecem de fundamento. Esse tribunal, onde juiz e ré são a razão, é a crítica da razão pura. Trata-se de um exame crítico da razão, isto é: de um exame que tem por fim de discernir ou distinguir o que a razão pode fazer e o que é incapaz de fazer. A preocupação crítica consiste essencialmente em não se dizer mais do que se sabe. E, se essa crítica diz respeito à razão pura, isso se deve à intenção de Kant de pronunciar-se apenas sobre o valor dos conhecimentos puramente racionais, como devem ser os da metafísica. Portanto, é preciso buscar na própria razão as regras e os limites de sua atividade, a fim de saber até que ponto podemos confiar na razão.
O fracasso da metafísica em suas pretensões científicas se deve ao fato dela ter empreendido sua tarefa dogmaticamente, ou seja, ter procedido sem uma crítica prévia das possibilidades e limites da razão para um projeto tão ambicioso. Ao investigar os fundamentos do conhecimento, Kant se contrapõe ao dogmatismo – mas não ao procedimento dogmático. “A crítica não se opõe ao procedimento dogmático da razão no seu conhecimento puro, enquanto ciência (pois esta é sempre dogmática, isto é, estritamente demonstrativa, baseando-se em princípios a priori seguros), mas sim ao dogmatismo, quer dizer, à presunção de seguir por diante apenas com um conhecimento puro por conceitos (conhecimento filosófico), apoiado em princípios, como os quais que a razão desde há muito aplica, sem se informar, como e com que direito os alcançou. O dogmatismo é, pois, o procedimento dogmático da razão sem uma crítica prévia da sua própria capacidade” (KrV, B, p. 30).
É dentro dessa perspectiva que se deve entender o conceito de transcendental: todo o conhecimento que, em geral, se ocupa não tanto com os objetos, mas com o modo de conhecê-los, na medida em que esse conhecimento deva ser possível a priori (Cf KrV, B,  p.53). Toda a investigação kantiana é transcendental, no sentido de que a crítica tem, como objeto, nossa faculdade cognoscitiva. O conceito transcendental, para Kant, significa o modo de conhecer os objetos, enquanto possível a priori. Esses modos são a sensibilidade e o entendimento, a que inerem estruturas a priori próprias do sujeito e não do objeto. Sem elas, é impossível qualquer experiência de qualquer objeto. Antes de Kant, a metafísica clássica denominava de transcendental as condições do ser enquanto tal, ou seja, as condições sem as quais o próprio objeto deixava de existir. Após Kant e a sua revolução copernicana não é mais possível falar das condições do objeto em si, mas somente das condições do objeto em relação ao sujeito. Com Kant, o transcendental não está mais no objeto, mas no sujeito.
Analisando a faculdade de conhecer, o filósofo afirma que, “se, porém, todo o nosso conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que todo ele derive da experiência” (KrV, B, p. 36). Ele distingue dois conhecimentos: o a priori (conhecimento da razão que é puro, universal, necessário e independente da experiência) e o a posteriori (conhecimento da experiência que é empírico, particular e contingente). O que os distingue é a necessidade e a universalidade, específicos do conhecimento a priori. Feita esta distinção, impõe-se distinguir os juízos analíticos dos juízos sintéticos. Os analíticos são juízos de elucidação; a conexão sujeito-predicado é pensada por identidade; são universais, necessários e verdadeiros, mas não ampliam o conhecimento por serem tautológicos. Os sintéticos são os juízos de ampliação; a conexão sujeito-predicado é pensada sem identidade; são particulares, contingentes, porém ampliam o conhecimento.
Originalmente, Kant propõe uma nova classe de juízos: os sintéticos a priori. Estes são o verdadeiro núcleo da Teoria do Conhecimento: são universais, necessários, verdadeiros, ampliam e fazem prosperar o conhecimento. Conceitualmente, esses juízos são possíveis. A questão é saber se essa possibilidade conceitual pode realizar-se, isto é, se são possíveis os juízos sintéticos a priori e, portanto, a ampliação do conhecimento anterior a toda experiência.
Em torno dessa questão (de como são possíveis os juízos sintéticos a priori), Kant estrutura a Crítica da Razão Pura. Na Estética Transcendental procura responder como são possíveis os juízos sintéticos a priori na matemática e investiga os princípios apriorísticos da Sensibilidade (Espaço e Tempo). Na Analítica Transcendental procura responder como são possíveis os juízos sintéticos a priori na ciência da natureza e investiga os princípios apriorísticos do Entendimento (Categorias). E, na Dialética Transcendental, investiga se são possíveis os juízos sintéticos a priori na metafísica. Convém ratificar que, na metafísica, Kant indaga se são possíveis os juízos sintéticos a priori e não como são possíveis, pois esta ainda não havia se constituído como ciência, ao passo que a matemática e a física, sim.
A matemática e a física se constituíram ciência graças a uma inversão na maneira de pensar: ao invés da faculdade de conhecer ser regulada pelos objetos, estes são regulados por aquela. Isso se denomina revolução copernicana. Ela irá questionar essa visão metafísica existente. Portanto, “aquele que primeiro demonstrou o triângulo isósceles (fosse ele Tales ou como quer que se chamasse) teve uma iluminação; descobriu que não tinha que seguir passo a passo o que via na figura, nem o simples conceito que dela possuía, para conhecer, de certa maneira, as suas propriedades; que antes deveria produzi-la, ou construí-la, mediante o que pensava e o que representava a priori por conceitos e que para conhecer, com certeza, uma coisa a priori nada devia atribuir-lhe senão o que fosse consequência necessária do que nela tinha posto, de acordo com o conceito” (KrV, B, p. 17).
Desse modo, a ciência moderna torna-se, para Kant, uma espécie de ponto de partida para a abordagem epistemológica, embora suas preocupações e interesses maiores sejam metafísicos. Isso porque ele percebe que, desde as bases postas para a ciência, por Copérnico, Galileu e Newton, na aurora da modernidade, o conhecimento científico alcançou um tal progresso e riqueza de resultados que se tornou um fato inegável. Por esse motivo, ele investiga o que caracteriza e o que fundamenta a ciência. Para Kant, a ciência é constituída por leis, por juízos sintéticos a priori, que, como foi visto, são universais e necessários e propiciam um avanço no conhecimento.
Kant discorda tanto dos empiristas como dos racionalistas acerca de sua concepção sobre ciência e conhecimento. Os racionalistas sustentam que a ciência é constituída por juízos analíticos a priori e os empiristas, por juízos sintéticos a posteriori. Kant conclui que eles não estão certos devido à errônea concepção do conhecimento que eles têm. A ciência, desta forma, é impossível, segundo Kant, pois o objeto fornece somente a novidade e o sujeito fornece somente a universalidade. O conhecimento não surge somente com o sujeito ou somente com o objeto, mas surge da junção dos dois, ou seja, o conhecimento é o resultado de um elemento a priori – sujeito -, e de um elemento a posteriori – objeto. Kant irá descobrir os juízos sintéticos a priori. Portanto, em sua filosofia especulativa, ele afirma que o conhecimento humano não é reprodução passiva de um objeto por parte do sujeito, mas construção ativa do objeto por parte do sujeito. Isso o leva a negar a possibilidade da metafísica como ciência.
Posto que o conhecimento constitui-se da correlação sujeito-objeto e o objeto não fornece os elementos essenciais para que se alcance o estágio científico, será necessário buscar o elemento a priori (universalidade e necessidade), indispensável para que haja lei e, portanto, ciência, no sujeito. “Se é o Sujeito quem determina as possibilidades, sujeitos diferentes, nas mesmas circunstâncias, deverão chegar aos mesmos resultados. Essa é a condição para que haja juízo sintético a priori - e Ciência” (WEBER, 1999, p.15). Desse modo, constata-se que o fundamento dos juízos sintéticos a priori é o próprio sujeito. Daí que se compreende a afirmação kantiana de que “só conhecemos a priori das coisas o que nós mesmos nelas pomos” (KrV, B, p. 21).
Para que um estudo se constitua como ciência é preciso que haja unanimidade entre os colaboradores e que, por um caminho, se chegue a conclusões verdadeiras, isto é, que se proceda conforme um plano, seguindo metas. Quando, constantemente, é preciso voltar ao ponto de partida e tomar outro caminho ou quando se torna igualmente impossível aos diversos colaboradores porem-se de acordo sobre a maneira como o objetivo comum deve ser perseguido, então pode-se estar sempre convicto de que um tal estudo acha-se, ainda, bem longe de ser tomado como caminho seguro de uma ciência, constituindo-se antes num simples tatear. E é nesse estágio que a metafísica – um conhecimento da razão inteiramente isolado e especulativo que através de simples conceitos se eleva completamente acima do ensinamento da experiência -, se encontra. “O destino não foi até hoje tão favorável, que permitisse trilhar o caminho seguro da ciência à metafísica” (KrV, B, p.18). A razão emperra continuamente na metafísica mesmo quando quer discernir a priori aquelas leis que a experiência mais comum a confirma.
Na metafísica é preciso retomar o caminho inúmeras vezes, porque se descobre que não leva aonde se quer, e quanto à unanimidade de seus colaboradores isso está longe de acontecer, pois não existe um consenso sobre o método. Por isso, não há dúvida de que o procedimento da metafísica foi “um tateio apenas entre simples conceitos” (KrV, B, p.19). Esse seu procedimento deve-se, talvez, ao fato dela não ter deixado vir à mente essa questão (de como são possíveis os juízos sintéticos a priori); ou, talvez, por nem ter feito a distinção entre juízos analíticos e sintéticos. Só que a resposta a essa questão é de capital importância, pois decide sobre a sua possibilidade como ciência. Desta forma, o objetivo de Kant, a exemplo dos geômetras e os investigadores da natureza, é tentar transformar o procedimento tradicional da metafísica no modo de encarar suas relações com os objetos, comparável à de Copérnico. Ele afirma que, até agora, se supôs que todo o nosso conhecimento tinha de ser regulado pelos objetos. Porém, “tentemos, pois, uma vez, experimentar se não se resolverão melhor as tarefas da metafísica, admitindo que os objetos se deveriam regular pelo nosso conhecimento, o que assim já concorda melhor com o que desejamos, a saber, a possibilidade de um conhecimento a priori desses objetos, que estabeleça algo sobre eles antes de nos serem dados” (KrV, B, p. 20). Esse a priori possibilita que emitamos juízos universais e necessários, exigência para que um conjunto de conhecimento se torne ciência.  Porém, como será visto, não poderá ultrapassar os limites da experiência sensível, que é justamente a sua ocupação.
A filosofia deveria investigar a possível vigência de certos princípios a priori, que seriam responsáveis pela síntese dos dados empíricos, ou seja, ela deveria investigar a sensibilidade e o entendimento. A sensibilidade é a faculdade das intuições; por ela, os objetos nos são dados; é formada pelo espaço (forma do sentido externo que fornece, por meio dos cinco sentidos, as impressões acústicas, óticas, gustativas...) e pelo tempo (pertence ao sentido interno com suas representações, inclinações e sentimentos), que são as intuições puras, os princípios apriorísticos (Cf. HÖFFE, 2005, p.71). Eles são, como assevera Weber, “a condição de possibilidade de todo conhecimento humano” (WEBER, 1999, p.21). O entendimento é a faculdade dos conceitos; por ele os objetos são pensados; é formado pelas categorias (leis/regras) pelas quais as intuições são sintetizadas.
A sensibilidade dá a matéria do conhecimento e o entendimento dá a forma. Assim, conhecer é dar forma a uma matéria dada. É ligar representações em conceitos. O resultado disso é que nosso conhecimento só se refere a fenômenos, pois só conhecemos as coisas no espaço e no tempo. Todo objeto, para ser conhecido, deve estar condicionado ao espaço e ao tempo, isto é, precisa afetar a sensibilidade causando uma impressão sensível.
O entendimento age sobre a sensibilidade e sintetiza as múltiplas intuições sensíveis. Sensibilidade e entendimento são mutuamente independentes: “sem a sensibilidade, nenhum objeto nos seria dado; sem o entendimento, nenhum seria pensado. Pensamentos sem conteúdos são vazios; intuições sem conceitos são cegas” (KrV, B, p. 89). O conhecimento pode surgir da reunião dos dois. O entendimento e a sensibilidade, com suas formas a priori, são as condições de possibilidade dos juízos sintéticos a priori, específicos da ciência. E só podemos conhecer fenômenos (múltiplo) que adentram a sensibilidade em suas formas puras de espaço e tempo; sobre esse conteúdo fenomênico é que o entendimento aplica as suas categorias, obtendo a cada aplicação uma síntese.
O conhecimento, para Kant, é um todo unitário. Além da formas apriorísticas da sensibilidade e do entendimento, deve haver uma outra condição transcendental necessária, que é o eu transcendental – suprema condição unificadora de toda a nossa experiência. A apercepção transcendental é a consciência da identidade contínua do eu. No eu penso, o ser humano conhece a si mesmo somente como ele lhe aparece e jamais como ele realmente é. E, desta mesma forma, conhece todos os objetos – somente como fenômeno. Portanto, conhecemos somente os fenômenos - objetos exteriores no uso empírico - e não os númenos – objetos exteriores no sentido transcendental.
Kant irá distinguir os fenômenos (as coisas tais como aparecem ao sujeito) e os númenos ou coisa-em-si (as coisas tais como são nelas mesmas) afirmando que a coisa-em-si é inacessível à razão humana, ou seja, não se pode conhecer e nem dizer a coisa-em-si. Só conhecemos as coisas que nos aparecem, enquanto aplicamos nela as categorias a priori de nossa mente. Conforme Hartnack, não podemos entender nada, não podemos formar conceito ou pensamento senão através das categorias (Cf. HATTNACK, 1984, p. 100). É na Analítica Transcendental que o filósofo irá mostrar a distinção entre o fenômeno e o númeno, tão relevantes para a compreensão deste tema. O fenômeno é o objeto da intuição sensível. Ele tem uma matéria e uma forma. A matéria nos é dada pelas sensações singulares e pode existir apenas somente a posteriori. Já a forma vem do sujeito e é a priori. É impossível captar o objeto como ele é em si, mas somente como ele aparece para nós. O númeno é pensado pelo intelecto, não sendo objeto do sentido. O conceito númeno é problemático, pois ele pode ser pensado, mas não conhecido. Contudo, é um conceito necessário, a fim de que a intuição sensível não se estenda até as coisas em si, e seja assim limitada a validade objetiva do conhecimento sensível.

A razão, caracterizada como a busca do incondicionado, ou seja, que tende a ir além do âmbito fenomênico, não se contenta com as sínteses do entendimento, pois esse, de certo modo, é formado por uma multiplicidade de sínteses. Ela exige a síntese suprema, a máxima unidade que ponha termo à série das condições. As sínteses do entendimento são o objeto da razão. Esta age sobre o entendimento, o que resulta nas ideias transcendentais: Deus, liberdade e imortalidade – objetos da metafísica. Essas ideias estão fora do espaço e do tempo: não existe um objeto a elas correspondente no mundo sensível. Por isso, elas não afetam a sensibilidade e, portanto, não podem ser conhecidas. Contudo, podem – e a razão o exige -, ser pensadas. 

     A Analítica Transcendental apresenta as categorias e os princípios sem os quais não pode haver conhecimento. A Dialética Transcendental apresenta a ilusão da razão que pretende fazer um uso indevido desse conhecimento a priori. Por isso, a Dialética põe fim na metafísica tradicional. Hegel restitui a ideia de um ser supremo da posição que o projeto crítico lhe havia retirado. Kant afirma que nos é vedado o conhecimento do supra-sensível e essa é a tese do idealismo transcendental. O objeto de estudo no conflito da razão (paralogismos e antinomias) restringe-se à Dialética Transcendental. Aqui Kant irá mostrar que os argumentos que a razão utiliza para comprovar o valor objetivo, transcendente e numênico das ideias, quando dizem respeito à alma e a Deus são paralogismos e, portanto, errôneos; e quando dizem respeito aos argumentos que se referem ao mundo são antinomias e, portanto, são inconcludentes.

Na Analítica, Kant ensina que o conhecimento científico é fenomênico. A matemática e a física são ciências porque permanecem no horizonte do fenômeno, isto é, do condicionado. Quando o intelecto se lança para além dos fenômenos, ou seja, quando ele passa a tratar do númeno e não mais do fenômeno, ele é razão.  Ao tratar da coisa-em-si, do incondicionado – entidade apenas pensável e não cognoscível -, o intelecto cai em ilusões estruturais. Os erros que a razão cai quando ela vai além da experiência não são voluntárias, mas involuntárias. A dialética funciona como crítica dessas ilusões. Os conceitos puros da razão são as ideias, assim como os conceitos puros do intelecto são as categorias. Diferentemente de Platão, que afirmava que as ideias eram transcendentes em relação à razão subjetiva, para Kant as ideias são os conceitos supremos da razão. Há três ideias correspondendo aos três tipos de silogismos: silogismo categórico corresponde à ideia psicológica – alma; silogismo hipotético corresponde à ideia cosmológica – mundo como unidade metafísica; silogismo disjuntivo corresponde à ideia teológica – Deus. O uso das ideias não é constitutivo, como o têm as categorias, mas o uso regulativo, não alargando o conhecimento dos fenômenos, mas o unificando.
Apesar de já ser denunciada, essa ilusão não desaparece, pois é uma ilusão natural. O pensamento humano, na questão do conhecimento, limita-se ao horizonte da experiência. Porém, a própria natureza do homem o faz ir além da experiência. Mas ao fazer isso, o espírito humano cai em erro. Por dialética, Kant entende o estudo crítico desses erros. A razão, sendo a faculdade que faz com que o homem busque os fundamentos últimos e supremos, é a faculdade da metafísica. A Dialética Transcendental estuda o funcionamento da razão para determinar a possibilidade da metafísica. A atividade da razão consiste em unificar, mediante o raciocínio, toda a experiência sob algumas ideias fundamentais. Para provar o valor objetivo, transcendente e numênico das ideias, a razão elaborou numerosos argumentos. Mas estes argumentos são todos errôneos e inconcludentes. São errôneos os argumentos que dizem respeito à alma e a Deus (paralogismos). São inconcludentes os argumentos que dizem respeito ao mundo (antinomias).
A primeira ideia é a da alma. A psicologia racional visa demonstrar a imortalidade da alma. Os erros transcendentais que a razão cai ao tentar construir tal ciência são denominados de paralogismos. O ser humano tem consciência de si como ser pensante, como fenômeno, mas não conhece o substrato numênico de si mesmo, ou seja, o seu substrato ontológico.
            A segunda ideia é a do cosmo. A razão, ao querer passar de considerações fenomênicas do mundo para considerações numênicas, acaba caindo em certas antinomias, em que teses e antíteses acabam se anulando. Porém, tanto a tese como a antítese são defensáveis em nível de pura razão e nenhuma pode ser confirmada ou desmentida pela experiência. Os argumentos que a razão utiliza para determinar a origem do mundo e a sua natureza são inconcludentes. Existem bons argumentos tanto a favor como contra acerca da tese da origem do mundo no tempo.
Existem quatro antinomias que correspondem aos seguintes quatro modos: quantidade, qualidade, relação e medida. Nas antinomias, a tese é afirmativa e a antítese nega a tese. A tese da primeira antinomia diz: “o mundo tem um início e, além disso, no que se refere ao espaço, é fechado dentro de limites”. A sua antítese diz: “o mundo não tem início nem limites espaciais, mas tanto em relação ao tempo como em relação ao espaço, é infinito”. A tese da segunda antinomia diz: “toda substância composta que se encontra no mundo consta de partes simples, e não existe em nenhum lugar a não ser o simples, ou aquilo que dele é composto”. Sua antítese afirma: “nenhuma coisa composta que se encontra no mundo consta de partes simples; e nele não existe, em nenhum lugar, nada de simples”. A tese da terceira antinomia diz: “a causalidade segundo as leis da natureza não é a única da qual possam ter derivado todos os fenômenos do mundo; é necessário admitir, para a explicação deles, também uma causalidade livre”. Sua antítese diz: “não existe nenhuma liberdade, mas tudo no mundo acontece unicamente segundo leis da natureza”. A quarta e última tese antinômica diz: “no mundo existe algo que, ou como sua parte ou como sua causa é um ser absolutamente necessário”. Sua antítese diz: “em nenhum lugar, nem no mundo, nem fora do mundo, existe um ser absolutamente necessário, causa do próprio mundo”. Essas antinomias são insolúveis, pois quando a razão está além da experiência não há em que se ancorar e acaba oscilando da tese para a antítese e vive-versa. Esses argumentos são inconcludentes, porque partem do falso pressuposto de que se possa afirmar ou negar alguma coisa do mundo em si mesmo. Este é o pressuposto do qual partem os racionalistas e os empiristas. Os argumentos da tese são os dos racionalistas, que, julgando as formas a priori ideias inatas da coisa em si, se consideram capazes de responder a origem e a natureza do mundo. Os argumentos da antítese são dos empiristas, que por meio da experiência dizem que é impossível conhecer a origem e a natureza do mundo (Cf. REALE e ANTISERI, 2005, p.372).
A terceira ideia é a de Deus. Os argumentos que a razão utiliza para provar a existência de Deus são errôneos. Essa ideia foi tratada desde a Antiguidade e dessa discussão surgiram três caminhos que buscam explicar a existência de Deus. Ei-los: i) a prova ontológica, que parte do puro conceito de Deus como perfeição absoluta para daí deduzir a sua existência. Anselmo, Descartes e Leibniz formularam essa prova; ii) a prova cosmológica, que parte da experiência e infere Deus como causa, ou seja, da contingência do mundo demonstra-se a existência do ser necessário; iii) a terceira prova é a teleológica, que partindo da ordem e da harmonia do mundo afirma a existência de Deus como mente ordenadora (Cf. REALE e ANTISERI, 2005, p. 372).
As últimas duas provas, a cosmológica e a teleológica, supõem a primeira prova, a ontológica. Já que a prova ontológica não procede, as duas primeiras provas também não procedem. Também, a existência não é um predicado contido no conceito da essência de nenhum sujeito (nem do ser absoluto); ele deve ser acrescentado sinteticamente. Conforme Hegel, o ser perfeito não pode ser somente uma representação. O perfeito é o que não é simplesmente representado, mas também o que é efetivo. A crítica de Hegel à prova ontológica da existência de Deus, a qual permaneceria presa a filosofia do entendimento só pode ser esclarecida com o auxílio da Doutrina do Conceito, onde é mostrado a relação entre o conceito – que deixa de ter o aspecto formal e vazio da representação – e a Idéia Absoluta.
A filosofia do entendimento não consegue passar do condicionado para o incondicionado. A prova cosmológica também está repleta de erros transcendentais. Kant a nega afirmando que não é possível encontrar o princípio do contingente fora do mundo sensível e uma vez que se chega ao Ser necessário como condição do contingente, fica por provar a sua existência real, que não pode ser extraída analiticamente. A crítica hegeliana da visão de Kant acerca da prova cosmológica diz que Kant se apoiaria numa falsa exterioridade entre o finito e Deus e essas duas determinações formam, uma relativamente à outra, uma relação exterior, finita. Hegel salienta que se não se compreende a verdadeira relação entre o finito e o infinito se permanecerá naquilo que se chama de uma relação de exterioridade, que será desenvolvido pela filosofia do entendimento. Da mesma forma que a prova ontológica, a prova teleológica é desmascarada. Essa crítica de Hegel a Kant fica mais clara na prova teleológica. Hegel não concorda com esta prova, que diz que a harmonia do mundo natural só pode ser explicada pela existência de Deus. Tendo como ponto de partido o mundo natural não dá para extrair disso a existência de Deus. “A intenção hegeliana é mostrar que, da harmonia natural, pode-se chegar a uma atividade vital infinita e eterna (nas palavras de Platão, a um Zoon imortal), mas não a Deus, pois Deus é mais do que a harmonia imanente ao mundo natural” (BORGES, 1998, p. 114).
Kant conclui que as ideias da alma, do mundo e de Deus não tem valor constitutivo, pois são formas que não tem conteúdo. Essas ideias representam um ideal inatingível da razão especulativa. Essas ideias são coisas-em-si; portanto, são incognoscíveis. A metafísica como conhecimento da coisa-em-si é impossível; ela somente é possível como estudo das formas a priori da razão. Portanto, é impossível a metafísica como ciência. Prova disso vem com a dialética que mostra os erros que a razão cai ao tentar fazer metafísica. E as ideias (de alma, de mundo e de Deus), também são erros transcendentais? Kant responde essa pergunta afirmando que as ideias não são ilusões. As ideias não têm uso constitutivo como o têm as categorias, mas têm uso regulativo, unificando o conhecimento. Desta forma, o númeno é indiscutivelmente incognoscível, mas é possível a sua pensabilidade e a sua possibilidade. Portanto, já que através da ciência não é possível atingir o númeno, esse pode ser atingido por meio da ética. Com Kant, surge uma metafísica renovada.
Embora a metafísica efetue a revolução em sua maneira de pensar, ela não consegue ultrapassar os limites da experiência sensível. Seus objetos não são conhecidos, mas apenas pensados, pois se situam acima do espaço e do tempo. Desta maneira, a metafísica não é possível como ciência. Terá de ser enquadrada noutra dimensão que não seja a da razão pura especulativa: na razão pura prática. Ela será o fundamento da moral. Razão pura prática e razão pura especulativa/teórica são uma e mesma razão, porém, com uma dupla aplicação/dimensão. O que possuem em comum é o a priori. O que as difere é a aplicação. Cada uma representa um modo pelo qual o conhecimento da razão se dirige ao objeto: i) para determiná-lo e conceituá-lo: conhecimento da razão especulativa; ii) para torná-lo real: conhecimento da razão prática. A razão especulativa diz o que é; determina a possibilidade do conhecimento; ocupa-se com o campo sensível/fenomênico. A razão prática diz o que deve ser; determina a priori a vontade do sujeito agente, por meio do imperativo categórico, para que seus atos tenham valor em si; ocupa-se com o campo supra-sensível/numênico, que não pode ser conhecido, apenas pensado. Juntas, compõem a Filosofia Transcendental. Conforme Luft, “se a Metafísica tradicional estava ancorada sobretudo em uma teoria do ser considerado como autônomo com relação ao sujeito cognoscente – uma Metafísica Realista, portanto -, a Nova Metafísica tem na subjetividade sua base última e no Idealismo a posição filosófica correspondente” (LUFT, 2001, p. 77).
A sua conclusão é de que a metafísica está inviabilizada como ciência. Ou seja, embora a metafísica efetue a revolução na maneira de pensar, proposta por Kant, tendo assegurado a possibilidade do conhecimento a priori, ela não poderá ultrapassar os limites da experiência sensível. Seus objetos residem acima da experiência sensível, isto é, fora do espaço e do tempo e, por esse motivo, não são possíveis de serem conhecidos – apenas pensados. Consequentemente, os juízos sintéticos a priori não são possíveis na metafísica. Logo, ela não é possível como ciência.



BORGES, Maria de Lourdes Alves. História e Metafísica em Hegel. Porto Alegre: Edipucrs, 1998.

HARTNACK, Justus. La teoria del conocimiento de Kant. Madrid: Ediciones Cátedra, 1984.

HÖFFE, O. Immanuel Kant. Trad. Christian Viktor Hamm, Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2005.


 KANT, I. Crítica da razão pura. Trad. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985.

LUFT, Eduardo. As sementes da dúvida: investigação crítica dos fundamentos da filosofia hegeliana. São Paulo: Mandarim, 2001.

REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario. História da Filosofia. Vol. 5. São Paulo: Paulus, 2005.

WEBER, Thadeu. Ética e filosofia política: Hegel e o formalismo kantiano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.
RESENHA DA OBRA DISCURSO DO MÉTODO, DE DESCARTES

      Na obra Discurso do Método anunciam-se, claramente, os quatro delineamentos característicos da Filosofia Moderna: autonomia da filosofia em relação à teologia; orientação gnosiológica antes que metafísica; antropocentrismo; interesse pelo método. Descartes advertiu a necessidade de renovar o estudo e o ensino da filosofia através do método matemático. Assim, o pai da filosofia moderna propõe-se a elaborar uma ciência universal provida daquela rigorosidade, certeza e exatidão típicas da matemática. Tudo o que há devia ser traduzido em ideias claras e distintas, como se tudo se tratassem de quantidades matemáticas. Descartes aplica primeiramente o método matemático às ciências experimentais e, após, à filosofia.
      Descartes destaca que os métodos utilizados não eram bons. Por isso, os resultados obtidos eram pobres. Ele critica severamente o ensino da época, afirmando que a única vantagem que teve foi a de perceber a sua ignorância. Por esta razão, abandona o estudo das letras e põe-se a viajar. Resolveu não mais procurar outra ciência, além daquela que se poderia achar em si próprio, ou então no grande “livro do mundo”. Após estudar o “livro do mundo”, a fim de adquirir mais experiência, resolveu estudar a si mesmo.
O filósofo decide, então, buscar um novo método, baseado em quatro regras. Ei-las: 1) regra da evidência: só aceitar algo como verdadeiro desde que seja absolutamente evidente por sua clareza e distinção; 2) regra da análise: dividir cada uma das dificuldades surgidas em tantas partes quantas forem necessárias para resolvê-las melhor; 3) regra da síntese: ordenar o raciocínio, indo dos problemas mais simples para os mais complexos; 4) regra da enumeração: realizar verificações completas e gerais para ter absoluta segurança de que nenhum aspecto do problema foi omitido. Com este método, salienta o filósofo, todas as coisas podem ser conhecidas. Aplica-o primeiramente à matemática, pois era preciso partir das verdades mais simples e mais fáceis e, também, pelo fato de que entre todos os cientistas, somente os matemáticos haviam tentado encontrar demonstrações certas e evidentes. Descartes pressupõe agora a aplicar o método também às outras ciências.
      Não obstante, o filósofo deve buscar uma “moral provisória” (a moral definitiva encontra-se no livro As paixões da alma e é, em substância, idêntica à moral provisória) até a descoberta da verdadeira. De fato, não é possível conduzir-se nas ações do mesmo modo como se comporta com as opiniões. As opiniões podem ser suspensas, mas não se pode ser indeciso nas ações. Há três princípios da moral provisória. São eles: 1) obedecer as leis e os costumes do próprio país praticando a religião na qual se foi instruído desde a infância e regular-se, em todas as coisas, conforme as opiniões mais moderadas e sensatas; 2) ser firme e resoluto nas ações e opiniões a que se tivesse determinado; 3) sempre se esforçar por vencer a si mesmo antes que o destino o faça; mudar os próprios desejos antes que a ordem do mundo; e, geralmente, habituar-se a acreditar que não há nada que seja completamente nosso, exceto nossos pensamentos e, por isso, não é preciso preocupar-se demais com as coisas externas. Descartes pensa que a melhor coisa é empregar toda a vida a cultivar a razão e a progredir o mais possível no conhecimento da verdade, pois a vida intelectual é plena de satisfação e também, porque, progredindo no conhecimento se progride na virtude. Após todo este ensinamento, Descartes acredita que podia começar a desfazer o restante de suas opiniões. Esperando poder realizar isso conversando, põe-se a viajar. O método é guiado por duas normas: 1) não destruir por destruir – como os céticos -, mas para atingir a verdade; 2) não destruir tudo, mas conservar aquilo que pode servir para chegar a cognições certas.
      Pode-se dizer que os dois princípios fundamentais da metafísica cartesiana, ou seja, as certezas metafísicas, são o cogito e a existência de Deus. Segundo Descartes, para se conhecer a verdade, é preciso, de início, colocar todos os conhecimentos em dúvida (dúvida metódica), questionando tudo para criteriosamente analisar se existe algo na realidade de que se possa ter plena certeza. Fazendo uma aplicação metódica da dúvida, o filósofo foi considerando como incertas todas as percepções sensoriais (dado que os nossos sentidos algumas vezes nos enganam), todo o conhecimento racional (pois há homens que se enganam raciocinando) e, enfim, todo o conhecimento humano, pois todos os pensamentos que tomamos por despertos podem vir também quando dormimos. E prosseguiu assim, cada vez mais colocando em dúvida a existência de tudo aquilo que constitui a realidade e o próprio conteúdo dos pensamentos. Enquanto tratava de duvidar de tudo, Descartes percebe uma verdade: “enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa”. Observando que “penso, logo existo” era de tal modo firme e seguro, Descartes acolheu esta máxima como o princípio de sua filosofia. Assim, a essência do homem está no pensamento – o filósofo passa a considerar, pelo Cogito, a natureza do sum (a existência). Observa que podia fingir não ter nenhum corpo, mas nem por isso podia fingir que não existia e que, pelo contrário, pelo próprio fato que pensava em duvidar da verdade das outras coisas decorria de modo evidente e certo, que ele existia. Se apenas houvesse parado de pensar, ainda que tudo o mais que ele tinha imaginado fosse verdadeiro, não teria havido jamais nenhuma razão para crer que existia. Soube, por isso, que era uma substância cuja essência ou natureza não é senão para pensar e que, para ser, não precisa de nenhum lugar, não depende de nenhuma coisa material. Achado o princípio fundamental da metafísica e o supremo critério de verdade – clareza e distinção –, Descartes passa a demonstrar a existência e Deus. Prova-a através dos seguintes argumentos: 1) pelo fato de que temos a ideia do perfeito e não podemos ser nós a causa dessa ideia; 2) pelo fato de que eu não dou a mim mesmo a minha existência; 3) pela ideia do perfeito (é certo que Deus existe como são certas as demonstrações geométricas); 4) pelas consequências desastrosas que a negação da existência de Deus implica, ou seja, pelo fato de que neste caso qualquer certeza torna-se impossível. A terceira prova é a mais conhecida prova e é denominada de ontológica, pois parte do conceito de Deus para provar a sua existência. A primeira e a segunda são cosmológicas, isto é, partem dos fatos que nós experimentamos. Depois que o conhecimento de Deus e da alma restitui-lhe a certeza da regra clareza e distinção, Descartes afirma poder aceitar com indubitável certeza todas as outras ideias que se apresentam com o caráter de clareza e distinção, pois não é possível que Deus, que é sumamente perfeito e veraz, tenha colocado na mente para nos enganar.
      Após deduzir as verdades metafísicas (cogito, ergo sum e a existência de Deus), Descartes não deixa de deduzir também algumas verdades sobre o mundo, adotando sempre o critério de verdade da clareza e distinção e o método geométrico. De maneira sucinta, é pertinente relatar apenas alguns tópicos mais relevantes: 1) doutrina da natureza do corpo animal e humano – aqui o filósofo diz que, acerca do corpo, não há nenhuma diferença entre homens e animais. O que os distingue, não obstante, é a alma que os animais não a possuem e os homens a possuem (criada por Deus). Porém, a alma é invisível, assim, o homem diferencia-se dos animais através da linguagem e da liberdade; 2) natureza da alma – ela é espiritual e, como tal, não pode ser tirada da potência da matéria, como as outras coisas deste mundo, mas é criada diretamente por Deus.
      Concluindo, a obra Discurso do Método é o manifesto da nova filosofia. Desde as primeiras páginas do Discurso, Descartes sublinha a importância capital do método para a aquisição da ciência. Com o método construiu todo o seu edifício filosófico, embasado no cogito. Com isso, o filósofo abalou profundamente o edifício do conhecimento estabelecido. Sua tentativa, porém, de reconstruir esse edifício não foi uma obra tão notável e fecunda, se comparada com o efeito demolidor que provocou. 
RESENHA DO LIVRO V DA ÉTICA A NICÔMACOS, DE ARISTÓTELES


Este escrito é fundamentado sobre o Livro V da obra Ética a Nicômacos, de Aristóteles, que trata acerca da justiça. O tema central a ser elaborado aqui é a respeito da justiça e de suas formas.
De acordo com Aristóteles, todos estão em perfeito acordo em chamar justiça à disposição da alma graças à qual as pessoas se dispõem a fazer o que é justo, a agir justamente e a desejar o que é justo. O mesmo deve ser dito da injustiça, que nos faz cometer e querer atos injustos. A justiça, segundo o filósofo, é considerada a maior das virtudes. Ela é perfeita porque as pessoas que possuem o sentimento de justiça podem praticá-la não somente em relação a si mesmas como também em relação ao próximo. Somente a justiça é o bem do outro. A única diferença entre excelência moral e justiça está em suas essências: a justiça, praticada em relação ao próximo, quando é irrestrita é a excelência moral. Porém, quando a justiça é uma parte da excelência moral, denomina-se justiça no sentido restrito.
Há duas espécies, segundo o filósofo, de justiça restrita (particular): distributiva e corretiva. A justiça distributiva ocupa-se da distribuição dos bens entre as pessoas, proporcionalmente ao seu mérito. A justiça corretiva visa a correção das transações entre os indivíduos, que pode ocorrer de modo voluntário, como nos delitos em geral. Nesta forma de justiça surge a necessidade da intervenção de uma terceira pessoa: o juiz. Ela se divide em: i) comutativa: que preside os contratos em geral: compra e venda, locação, empréstimo etc. Esse tipo de justiça é essencialmente preventiva, uma vez que a justiça prévia iguala as prestações recíprocas antes mesmo de uma eventual transação; ii) reparativa: visa reprimir a injustiça, a reparar ou indenizar o dano, estabelecendo, se for o caso, a punição.
Aristóteles escreve também acerca da justiça política, que é encontrada entre os homens que vivem em comum, em vista à liberdade e igualdade entre eles. Suas relações são regidas pela lei. Salienta o filósofo que a justiça do senhor para com o escravo e a do pai para com o filho não são iguais à justiça política, embora se lhe assemelhem. Os escravos de um homem, e seus filhos até certa uma idade em que se tornam independentes, são por assim dizer partes deste homem, e ninguém faz mal a si mesmo. Logo, não há justiça ou injustiça no sentido político em tais relações. A justiça e a injustiça existem entre pessoas que participam do governo e são governadas. Por isto, a justiça pode manifestar-se com maior autenticidade nas relações entre marido e mulher do que nas relações entre pai e filho e entre senhor e escravo, pois a justiça entre marido e mulher é a justiça doméstica; mesmo esta, porém, é diferente da justiça política. Ela divide-se em natural e legal. A natural tem a mesma força em qualquer parte, independente de a aceitarmos ou não ou desta ou daquela opinião. A legal (positiva) é aquela que passa a viger depois de ser estabelecida a lei, ou seja, é legal aquilo que o princípio pode ser determinado indiferentemente de uma maneira ou de outra, mas depois de determinado já não é indiferente, mas obrigatório. É aquela que se pratica neste ou naquele país. Os sofistas afirmaram que a justiça natural não existe, porque o natural é imutável e a justiça é essencialmente relativa e variável. Ambas as justiças são mutáveis.
Um outro importante ponto a ser ressaltado na filosofia aristotélica é sobre a ação voluntária e a involuntária. Um homem é justo ou injusto sempre que age voluntariamente - com conhecimento de causa e após deliberação. Como diz Aristóteles, se uma pessoa ofende outra deliberadamente, ela age injustamente, e estes são os atos de injustiça dos quais resulta que o agente é uma pessoa injusta, desde que o ato viole a proporcionalidade ou a igualdade.
Tanto sofrer como praticar uma injustiça, observa Aristóteles, são males. Mas, agir injustamente é o mal maior, pois este procedimento é reprovável, já que pressupõe deficiência moral no agente. Então, sofrer injustiça é em si um mal menor, embora acidentalmente ele possa ser maior.
Por fim, Aristóteles deixa claro que a justiça e a eqüidade são a mesma coisa, embora a eqüidade seja melhor. O que cria este problema é o fato de o eqüitativo ser justo, mas não o justo segundo a lei, e sim um corretivo da justiça legal. A razão é que toda lei é de ordem geral, mas não é possível fazer uma afirmação universal que seja correta em relação a certos casos particulares. Por isso, o eqüitativo é justo e melhor que uma simples espécie de justiça, pois o eqüitativo é por natureza uma correção da lei onde esta é omissa devido à sua generalidade. Quem escolhe e pratica atos eqüitativos e não se atém aos seus direitos, mas se contenta com receber menos do que lhe caberia, embora a lei esteja ao seu lado, é uma pessoa eqüitativa, e esta disposição é a eqüidade, que é uma espécie de justiça e não uma disposição da alma diferente.
Em última análise, Aristóteles ressalta, no Livro V, que a justiça é uma das formas fundamentais de excelência moral. A justiça é um meio-termo e a injustiça relaciona-se com os extremos - o excesso ou a falta.
RESENHA DA OBRA SOBRE AS MANEIRAS CIENTÍFICAS DE TRATAR O DIREITO NATURAL, DE HEGEL

Segundo Hegel, os sujeitos individuais formam a sua identidade somente quando são reconhecidos por um outro (intersubjetivamente). O indivíduo somente é autônomo, podendo relacionar-se positivamente consigo mesmo, se ele for valorizado pelos demais indivíduos de sua comunidade. Se não há este reconhecimento, o indivíduo não reconhecido parte para a luta, a fim de criar as condições para tal. Quando a falta de reconhecimento não é de um indivíduo isolado, mas de um grupo social, a luta ganha contornos políticos e sociais. Para formular o seu pensamento, Hegel parte da premissa de que os indivíduos não são dados, mas se formam por um processo de socialização. Portanto, o indivíduo desde sempre está inserido num convívio intersubjetivo. Esse convívio é chamado de eticidade. Desta forma, a teoria do contrato social é inválida para a explicação da organização da sociedade.
Na obra Sobre as maneiras cientificas de tratar o direito natural, o autor esboça a sua filosofia prática e política, visando superar a filosofia contratualista.  O filósofo não justifica os direitos individuais atomizados, mas elabora a teoria da intersubjetividade. Segundo Hegel, as duas teorias modernas acerca do direito natural – a empirista e a formal – estão equivocadas, pois ambas defendem uma teoria dos indivíduos atomizados, tratando a natureza humana como individual e a comunidade como algo secundário. Hegel, nesse escrito, critica o método empírico-formal do jusnaturalismo. Seu projeto jurídico é um direito especulativo, ou seja, um direito de natureza ética, que não deve proceder do indivíduo isolado, mas da vida comunitária. Desta forma, Hegel estará destacando uma matriz filosófica da intersubjetividade.
A versão empirista do direito natural é composta por Grotius, Hobbes, Locke, Puffendorf, Rousseau e os juristas ligados à Escola Histórica. Eles partem das coisas observáveis da realidade e acabam descobrindo uma variedade de fatos. Esses fatos podem se substituir um ao outro e eles têm o mesmo valor, sendo que nenhum pode prevalecer sobre o outro. Desta forma, não há como saber qual é o necessário e qual é o acidental. Por isso, o empirismo elege um fato ao azar para que ele possa ser um princípio que fundamente a unidade científica. Por exemplo, quando o empirismo pretende entender o matrimônio, ele retém-se apenas em uma determinidade, “põe-se tanto a procriação dos filhos quanto a comunidade dos bens etc.” (HEGEL, 2007, p. 41) e submete a uma dessas determinidades a totalidade orgânica do matrimônio. O mesmo ocorre no instituto jurídico da pena, onde o empirismo aborda apenas uma das determinidades do todo. Isso ocorre também com a noção do estado de natureza. Para alguns teóricos, nesse estado o homem é bom, sociável, justo etc; para outros, o homem é mau, anti-sociável, injusto etc. Portanto, entre os próprios contratualistas há determinações totalmente diversas. Por isso, o empirismo não consegue ter a unidade necessária. A filosofia social moderna define a vida social como sendo uma luta por autoconservação. Esse pensamento é sustentado principalmente pelas figuras de Maquiavel, que desenvolve um realismo político, o qual está ligado a um pessimismo antropológico, e Hobbes, que defende o contrato social como forma de fundamentar o absolutismo. Em suma, Hegel está criticando a forma atomista de tratar o direito natural realizada pelos empiristas e está defendendo a filosofia política como totalidade orgânica.
A versão formal do direito natural é tratada por Kant e Fichte. Esses pensadores partem da pura abstração e não dos fatos da realidade como partiam os empiristas. Eles escolhem uma determinação finita ao acaso e a colocam como fundamento. Essa determinação é sem matéria, é pura forma. A única lei é o imperativo categórico. Ocorre no formalismo uma oposição entre a autoconsciência pura e a consciência real do sujeito. Isso só é resolvido mediante a coerção, pois para Kant direito é a faculdade de coagir. Hegel ataca o formalismo no direito natural, pois ele reduz o conteúdo do direito ao conteúdo da moral e, assim, o sujeito é um pensador solitário; ataca também a legalização do direito, onde a justiça é apenas a aplicação da lei (e isso justifica o juspositivismo); e, por fim, critica a privatização do direito, que salienta a sobreposição do direito privado sobre o público. Por fim, Kant e Fichte partem do conceito transcendental da razão prática e a consideram o resultado da purificação das inclinações humanas. A natureza do homem, dessa forma, é egocêntrica, pois para agir eticamente deve reprimir seus desejos.
A proposta de Hegel é o método especulativo. Para ele, o direito natural não deve conceber o indivíduo isolado, mas inserido numa comunidade. Hegel busca, com o método especulativo, ficar com as vantagens e eliminar as desvantagens das teorias formal e empirista. Não há como criar um sistema científico da realidade jurídica colocando uma forma pura a priori, desligada das determinações empíricas e nem tomando ao acaso uma determinação empírica e a colocando como princípio dos demais fatos jurídicos. Inspirado nos filósofos gregos, Hegel nega o atomismo do direito natural. Sua pretensão é construir um estado de totalidade ética. Ou seja, “[...] primeiro, estabelecer o que é o princípio básico, ou formal, do direito natural ou da justiça. Segundo, mostrar como este princípio pode ser relacionado a um sistema objetivo de direito e deveres. Terceiro, apresentar como são condicionados estes direitos e deveres, historicamente, pelos costumes e tradições peculiares à vida ética particular de um povo ou nação (BAVARESCO, A; CHRISTINO, S. B. Um direito de natureza ética e o método especulativo hegeliano. In.: Hegel. Sobre as maneiras cientificas de tratar o direito natural. São Paulo: Loyola, 2007, p. 22).
Portanto, para explicar a vida social, Hegel rompe com a filosofia contratualista moderna, que via o conflito social como uma luta por autoconservação. Assim, o homem é egoísta e calculista. Essa visão considera o homem de maneira atomística. Opondo-se a essa teoria moderna, Hegel destaca a ideia de uma vida social de reconciliação, inspirada na visão romântica da pólis grega e das primeiras comunidades cristãs, em que haveria uma harmonia entre a liberdade individual e os costumes coletivos. Hegel buscou inspiração na filosofia de Platão e Aristóteles e destaca as antigas pólis gregas como exemplo de reconhecimento e intersubjetividade. Naquela época havia uma plenitude da natureza humana, tendendo à coletividade para resolver qualquer comportamento anti-ético. A vida em sociedade era garantida pela virtuosidade – do cumprimento das leis - de seus indivíduos e os homens eram considerados, segundo Aristóteles, animais políticos. Essa visão política existiu na Idade Antigo e Medieval. Todavia, essa ordem normativa deixou de existir na Idade Moderna, com as filosofias atomísticas de Maquiavel e Hobbes. Contudo, após a leitura da economia política clássica e com a compreensão da ruptura que a modernidade produz, Hegel, percebendo que sua concepção do reconhecimento não pode mais apelar a esses ideais, desenvolve uma teoria da intersubjetividade que não desconsidere a realidade da sociedade moderna, ligada à produção industrial.
O conflito social não se trata de um confronto por autoconservação, como diziam Maquiavel e Hobbes, mas por reconhecimento. É por meio da luta por reconhecimento que surgem instituições garantidoras da liberdade. Os indivíduos sempre estão em convívio intersubjetivo. Portanto, os indivíduos não são dados, mas se formam por meio da socialização. Esse convívio é a eticidade (vida ética), estando sempre permeado por costumes e valores, ou seja, por vínculos éticos. Portanto, o direito real de um povo é a junção da moralidade e do direito natural, que na obra Princípios da Filosofia do Direito, de 1821, será chamado de direito abstrato. Hegel não está preocupado com a origem da sociedade, mas com a sua transformação, de modo que possa haver o reconhecimento intersubjetivo entre os seus membros.

HEGEL. Sobre as maneiras científicas de tratar o direito natural. Trad. de Agemir Bavaresco e Sérgio B. Christino. São Paulo: Loyola, 2007.
SE...

Se eu tivesse o poder de Deus
metafísico e inefável por excelência
desataria os nós do início e do fim
inverteria a lógica da existência.
Se não fosse a humanidade
com seus crimes, sua insalubridade.
Talvez, assim, seriamos perdoados
e não mais precisaríamos ser coroados.
Morrer! Pra que tanto mistério!
Tudo seria mais fácil
se não levássemos nada a sério.
Doravante os insanos serão imortais
e no casulo de sua existência
preconizarão o futuro, por excelência!

O ETERNO HOJE

Pra que pensar
No amanhã
Ele não existe
E nem o ontem existe mais
Pra que ficar
Hora e horas lembrando do ontem e querendo o amanhã
Se só temos o hoje
Esse sim não vai embora
Fica contigo pra sempre
Chega a ser chato, não desgruda de ti
E mesmo lembrando do ontem e querendo o amanhã
Só te resta... o hoje
O chato hoje, o grudento hoje, o eterno hoje.

MOMENTOS DE LUCIDEZ

Ideias cruzadas tomam conta de minha mente
Busco um lugar seguro, mas não o encontro
Estou com medo de não voltar mais, de não mais me encontrar
Há um novo mundo dentro de mim
A realidade é outra, os seres são outros
Nada é concreto, nem real
Nem imaginário, nem fantasioso
Não sei se estou com medo ou feliz
Os sentimentos são esquisitos
Como tudo o que há aqui
Normalmente, este mundo toma conta de mim
A princípio fico com medo
Depois, perdido
Mas é meu mundo
Só meu e de mais ninguém
Por isso tenho que cuidá-lo
É pura sinestesia o que sinto
Deve ser um meio-termo entre ser e não-ser
Estou e não estou no mundo
Pertenço e não pertenço a ele
Não sei se quero voltar ou ficar aqui
Só sei que há um mundo novo em minha mente
As palavras não existem mais.

ALMAS DE PEDRA

Os sentimentos escondidos
Nas pedras de nossa vida
São os mesmos
Das pedras desta rua
São duros
Mas também possuem alma.
E quem disse que pedras não têm alma
Você? E você a tem?
Há mais filosofias nestas pedras e neste chão
Do que em você
Que julga o que é certo e o que é errado
E por não ter sentimentos ao ver as pedras
Por não chorar e não rir
Torna-se um simples nada
Que ser é este?
Que não faz o que tem que fazer
E esquece de viver
Que vive somente o que está planejado
Que segue a risca a sua agenda
Dizendo: Não perca tempo!
Queime sua vida e joga-a ao mar do sem fim
Transforma-se em uma pedra
Talvez assim
Alguém com alma
Veja-lhe e sinta algo por você
Tristeza ou alegria, não importa
Assim, você que tornou-se pedra
Se tornará novamente gente
Para depois, na eternidade
Tornar-se outra vez
Pedra.