sexta-feira, 18 de setembro de 2015

RELATO DE VIAJANTES E A ANTROPOFAGIA

Hans Staden publicou na Alemanha, em 1557, um livro intitulado Duas viagens ao Brasil, no qual descreve suas aventuras em território brasileiro, especialmente os nove meses e meio em que esteve prisioneiro dos nativos. Segue um trecho de sua obra:
"Quando trazem para casa um inimigo, batem-lhe as mulheres e as crianças primeiro. A seguir colam-lhe ao corpo penas cinzentas, raspam-lhe as sobrancelhas, dançam em seu redor e amarram-no bem. Dão-lhe então uma mulher para servi-lo. Se tem dele um filho, criam-no até grande e o matam e o comem quando lhes vem à cabeça. Dão de comer bem ao prisioneiro. Conservam-no por algum tempo e então se preparam. Assim que está tudo preparado, determinam o tempo em que ele deve morrer e convidam os selvagens de outras aldeias para que venham assistir. Enchem de bebidas todas as vasilhas. Logo que estão reunidos todos os que vieram de fora, o chefe da choça diz: “Vinde agora e ajudai a comer o vosso inimigo”. Quando principiam a beber, levam consigo o prisioneiro, que bebe com eles. Acabada a bebida, descansam no outro dia e fazem para o inimigo uma pequena cabana para o local em que deve morrer. Aí passa a noite, sendo bem vigiado. O guerreiro que vai matar o prisioneiro diz para o mesmo: “Sim, aqui estou eu, quero te matar, pois tua gente também matou mo comeu muitos dos meus amigos”. Responde-lhe o prisioneiro: “Quando estiver morto, terei ainda muitos amigos que saberão me vingar”. Depois, ele é golpeado na nuca, de modo que lhe saltem os miolos, e de imediato as mulheres arrastam o morto para o fogo, raspam-lhe toda a pele, tornando-o totalmente branco e tapando-lhe o ânus com uma madeira, a fim de que nada dele lhe escape. Depois de esfolado, um homem o pega e lhe corta as pernas acima dos joelhos e os braços junto ao corpo. Vêm então quatro mulheres que apanham quatro pedaços, correndo com eles em torno das cabanas, fazendo grande alarido, em sinal de alegria. Separam depois as costas, junto com as nádegas, da parte dianteira. Repartem isso entre eles. As vísceras são dadas às mulheres. Fervem-nas e com o caldo fazem uma papa rala que se chama mingau, que elas e as crianças sorvem. Comem também a carne da cabeça. As crianças comem os miolos, a língua e tudo o que podem aproveitar. Quando tudo foi partilhado, voltam para casa, levando cada um o seu quintão."
Igualmente centrada no cotidiano a vida indígena, a obra Viagem à terra do Brasil, do calvinista francês Jean de Léry, revela uma percepção histórica acerca dos costumes dos nativos. Movido por um espírito universalista, ele encara com simpatia os índios, relativizando moralmente certos hábitos que na Europa passavam por bárbaros. Essa compreensão revela-se, por exemplo, na análise da nudez feminina:
"Quero responder aos que dizem que a convivência com esses selvagens nus, principalmente entre as mulheres, incita à lascívia e à luxúria. Direi que a nudez grosseira das mulheres é muito menos atraente do que comumente imaginam. Os atavios, cabelos encrespados, golas de rendas, anquinhas, sobressaias e outras bagatelas com que as mulheres de cá [européias] se enfeitam e de que jamais se fartam são causas de males incomparavelmente maiores do que a nudez habitual das índias."
Além de detalhar um significativo conjunto de costumes religiosos, medicinais, sociais (casamento, funerais, educação dos filhos, etc.) e de mostrar certas práticas desconhecidas na época, entre as quais a preparação do cauim e do fumo, o viajante francês descreve com minúcias o ímpeto guerreiro dos homens tropicais, vendo as batalhas entre as tribos de forma quase poética. Obviamente, a antropofagia é um dos temas da obra. Eis um trecho:
"Em seguida, as mulheres, sobretudo as velhas, que são mais gulosas de carne humana e anseiam pela morte dos prisioneiros, chegam com água fervendo, esfregam e escaldam o corpo a fim de arrancar-lhe a epiderme; e o tornam tão branco como na mão dos cozinheiros os leitões que vão para o forno. Logo depois o dono da vítima e alguns ajudantes abrem o corpo e o esquartejam com tal rapidez que não faria melhor um açougueiro ao esquartejar um carneiro. E então, assim como os nossos caçadores jogam a carniça aos cães para torná-los mais ferozes, esses selvagens pegam os filhos, uns após outros, e lhes esfregam o corpo, os braços e as pernas com o sangue inimigo, a fim de torná-los mais selvagens. Em seguida, todas as partes do corpo, inclusive as tripas depois de bem lavadas, são colocadas no maquém, em torno do qual as mulheres, principalmente as velhas gulosas, se reúnem para recolher a gordura que escorre pelas varas dessas grandes e altas grelhas de madeira. Em seguida exortam os homens a procederem de modo que elas tenham sempre tais petiscos e lambem os dedos e dizem iguatu, o que quer dizer “está muito bom”! É útil, entretanto, que ao ler sobre semelhantes barbaridades os leitores não se esqueçam do que se pratica entre nós. Em boa e sã consciência acho que excedem em crueldade aos selvagens os nossos usuários [agiotas] que, sugando o sangue e o tutano, comem vivos órfãos, viúvas e outras criaturas miseráveis, que prefeririam sem dúvida morrer de uma vez a definhar assim, lentalmente."

Como pode ser pensado o que foi exposto por Staden e Léry a partir do relativismo cultural? Qual é a importância desses relatos sobre o novo mundo para o Renascimento Europeu?

terça-feira, 15 de setembro de 2015

RESUMO DO LIVRO "O QUE O DINHEIRO NÃO COMPRA", DE SANDEL

O que o dinheiro compra?

- Upgrade na cela carcerária: US$ 82 por noite. Em algumas cidades, os infratores não violentos podem pagar por acomodações melhores – uma cela limpa e tranquila na prisão, longe das celas dos prisioneiros não pagantes.
- Acesso às pistas de transporte solidário: US$ 8 nas horas do rush. Para tentar diminuir o congestionamento do trânsito, algumas cidades estão permitindo que motoristas usem pistas reservadas.
- Barriga de aluguel indiana: US$ 6.250. Os casais ocidentais em busca de uma mãe de aluguel recorrem cada vez mais à terceirização na Índia, onde a prática é legal e o preço corresponde a menos de um terço das taxas em vigor nos EUA.
- Direito de ser imigrante nos EUA: US$ 500.000. Os estrangeiros que investem esse valor e geram pelo menos 10 empregos numa região de alto nível de desemprego recebem o direito de residência permanente.
- Direito de abater um rinoceronte negro ameaçado de extinção: US$ 150.000. A África do Sul passou a autorizar fazendeiros a vender a caçadores o direito de matar uma quantidade limitada de rinocerontes.
- O celular de seu médico: US$ 1.500 a US$ 25.000 por ano. Um número cada vez maior de médicos ‘de butique’ oferece acesso ao seu telefone e consultas para o mesmo dia.
- O direito de lançar uma tonelada métrica de gás carbônico na atmosfera: US$ 18. A União Européia mantém um mercado de emissões de gás carbônico que permite às empresas comprar e vender o direito de poluir.
- Matrícula do seu filho numa universidade de prestígio. Embora o preço não seja divulgado, funcionários de certas universidades de primeira linha aceitam alunos não propriamente brilhantes cujos pais sejam ricos e suscetíveis de fazer doações financeiras substanciais.

Como ganhar dinheiro?

- Alugar espaço na testa (ou em outras partes do corpo) para publicidade comercial (US$ 777).
- Servir de cobaia humana em testes de laboratório farmacêutico para novas medicações: US$ 7.500. A remuneração pode ser maior ou menor; depende da agressividade do procedimento usado para testar o efeito da nova droga, assim como do desconforto envolvido.
- Combater na Somália ou no Afeganistão num contingente militar privado: US$ 250 por mês a US$ 1000 por dia. O pagamento varia de acordo com a qualificação, a experiência e a nacionalidade.
- Guardar fila (US$ 15 a 20 por hora).
- Ler um livro, no caso de um aluno do 2° ano do ensino fundamental numa escola de Dallas com baixo desempenho: US$ 2. Para estimular a leitura, as escolas pagam às crianças por cada livro que lêem.
- Perder seis quilos em quatro meses, no caso de um obeso: US$ 378. Empresas e seguradoras oferecem incentivos financeiros à perda de peso e a outros tipos de comportamento saudável.
- Comprar a apólice de seguro de uma pessoa idosa ou doente, pagar os prêmios anuais enquanto ela está viva e receber a indenização quando morrer: potencialmente, milhões de dólares (dependendo da apólice). Esse tipo de aposta na vida de estranhos transformou-se numa indústria de US$ 30 bilhões. Fonte: O que o dinheiro não compra. Os limites morais do mercado, de M. Sandel (Civilização Brasileira, 2012).