quarta-feira, 22 de maio de 2013

DEVER PELO DEVER EM KANT

            Para Kant, há uma fundamentação comum entre o conceito da vontade normativa (dever ser) e a vontade particular. Nas palavras de Hegel,

O Bem é a Ideia como unidade do conceito da vontade e da vontade particular – nela o direito abstrato assim com o bem-estar, a subjetividade do saber e a contingência da existência exterior são ultrapassados como independentes para si mas mantendo-se e continuando, ao mesmo tempo, em sua essência -, é a liberdade realizada, o fim final absoluto do mundo. (Rph, § 129).

Hegel reconhece o mérito do conceito de autonomia kantiano. “Para com o sujeito particular, oferece o Bem a relação de constituir o essencial da sua vontade, que nele encontra uma pura e simples obrigação”. (Rph, § 133). Ou seja, a ideia do Bem representa a ideia do dever (uma obrigação para o sujeito). “Na medida em que a singularidade é diferente do bem e permanece na vontade subjetiva, o Bem apenas possui o caráter de essência abstrata universal do dever e, por força de tal determinação, o dever tem de ser cumprido pelo dever”. (Rph, § 133). O dever é a própria ideia do Bem (o dever ser). Deve-se, segundo Kant, cumprir aprioristicamente o dever pelo dever. Isso é autonomia (autodeterminação) para Kant e é nisso que há mérito moral. Não há, assim, nenhuma determinação empírica que move o sujeito para agir. Deve-se cumprir o dever pelo dever. Essa é a tese kantiana que Hegel reproduz nos Princípios para criticá-la.
“Como a ação exige para si um conteúdo particular e um fim definido, e como a abstração nada de semelhante comporta, surge a questão: o que é o dever?” (Rph, § 134). Para Hegel, toda ação exige um conteúdo particular. É preciso ter um conteúdo determinado a partir do qual se age. Hegel responde a pergunta ‘o que é o dever?’ da seguinte maneira: “dispomos apenas de dois princípios: agirmos em conformidade com o direito e preocupar-nos com o Bem-estar que é, simultaneamente, bem-estar individual e bem-estar na sua determinação universal, a utilidade de todos. (Rph, § 134). Hegel, portanto, está preocupado com o conteúdo. O dever pelo dever não contém determinações particulares.
O princípio universal kantiano independe do espaço e do tempo. Não depende de conteúdo empírico. O resultado (imperativo categórico) é uma proposição prática sintética a priori. Hegel reconhece o avanço realizado por Kant. Segundo Hegel, “é sem dúvida essencial pôr em destaque que a autodeterminação da vontade é a raiz do dever”. (Phd, §135). Agir segundo determinações empíricas (felicidade, por exemplo) não tem mérito moral. Porém, Hegel supera Kant, pois a proposta kantiana é insuficiente por não apresentar conteúdos empíricos. Em Hegel, o dever consiste em agir conforme o direito e na busca do bem-estar, tanto o próprio quanto o dos demais. (cf. Phd, §134).
Em cada instituição social (família, sociedade civil e Estado), o dever é determinado de forma diferente. Por isso, Hegel realiza a crítica a Kant, pois “permanecer no mero ponto de vista moral sem passar ao conceito da eticidade, converte aquele mérito em um vazio formalismo e a consciência moral em uma retórica acerca do dever pelo dever mesmo”. (Phd, §135). Ou seja, para Hegel falta a Kant a eticidade, pois sem determinar o conteúdo do dever não tem como agir seguindo ou não a moral. Kant permanece num puro formalismo, pois em sua teoria não há a explicação do justo ou injusto, do moral e imoral. “A não contradição no processo da universalização da vontade subjetiva, conforme a exigência do imperativo categórico, é critério insuficiente para a determinação objetiva desses valores morais”. (RAUBER, 1999, p. 36). Não há como saber de forma a priori se tal ato é moral ou imoral. O dever somente pode ser sabido dentro de um contexto, de uma instituição social. Na moralidade só se sabe de deveres subjetivos. “Enquanto que, no nível da moralidade, o dever constitui um universal abstrato por ser carente de realidade, na eticidade ele se afirma como universal concreto, pois se situa dentro de um contexto de mediação social”. (RAUBER, 1999, p. 36). Segundo Hegel,

[...] se se parte da determinação do dever como falta de contradição ou concordância formal consigo mesmo, que não é outra coisa que o estabelecimento da indeterminação abstrata, não se pode passar à determinação de deveres particulares. Tampouco há nesse princípio algum critério que permita decidir se um conteúdo particular que se apresenta ao agente é ou não um dever. (Phd, §135).

Somente com conteúdo se alcança deveres particulares. Sem conteúdo, deveres particulares são impossíveis. Se o princípio tivesse matéria, como, por exemplo, “conservar a vida [...], facilmente poder-se-ia derivar dali deveres particulares, como não matar, não se suicidar e assim por diante. Entretanto, diz Hegel, de um princípio puramente formal não se pode deduzir dever algum”. (RAUBER, 1999, p.37). Para Kant, o ato imoral provém da contradição. Hegel destaca que isso é impossível, pois princípios com conteúdo é impossível surgir contradição.

Que não haja nenhuma propriedade não contém por si nenhuma contradição, como tampouco o encerra o fato de que este povo singular ou esta família não exista, ou que em geral não viva nenhum homem. Se, por outro lado, se admite e supõe que a propriedade e a vida humana devem existir e ser respeitadas, então cometer um roubo ou assassinato é uma contradição; uma contradição só pode surgir como algo que é, com um conteúdo que subjaz previamente como princípio firme. Somente com referência a um princípio semelhante, uma ação é concordante ou contraditória. (Phd, § 135).

Sem o princípio material do ‘respeito a propriedade alheia’ ou o ‘respeito a vida dos semelhantes’ não seria possível caracterizar atos que desrespeitam esses princípios como atos imorais. Hegel, ao criticar o formalismo kantiano, quer ressaltar que sem a pressuposição de conteúdo e de comunidades instituídas é possível justificar atos como o roubo, a mentira, a morte, ou seja, ações imorais e injustas poderiam ser justificadas. Ou seja, essas práticas não estariam em contradição com nenhum princípio. Hegel ressalta que o princípio anunciado pelo imperativo categórico “[...] seria muito bom se já dispuséssemos de princípios determinados sobre o que se deve fazer”. (Phd, § 135).
Até que ponto as críticas de Hegel a Kant são sustentáveis? Kant parte do fato da razão de que os homens sabem discernir entre o certo e o errado, ou seja, eles sabem classificar os atos em morais e imorais. A partir disso, do fato da razão, Kant estabelece o princípio da moralidade, a saber, o imperativo categórico. Hegel acerta ao dizer que o imperativo é puramente formal. Por isso, Hegel destaca a necessidade da historicidade do conteúdo dos deveres. O imperativo não nos diz o que se deve fazer, mas como se deve agir para alcançar a moralidade.

A proposta moral de Kant não se esgota no imperativo categórico. As máximas desempenham um papel fundamental dentro dessa proposta, pois são elas as responsáveis pelo conteúdo do dever. As máximas são determinações subjetivas do querer, são princípios práticos cuja matéria (objeto) põe e persegue fins da vontade subjetiva. Enquanto válidas apenas para o sujeito, não passam de regras subjetivas do querer e, por conseguinte, não valem como regras morais. Mas, quando então em conformidade com o imperativo categórico, passam à validade objetiva, ou seja, valem como leis morais. É certo que o conteúdo da máxima não pode ser o princípio de determinação da vontade, pois, se fosse, não poderia representar-se sob a forma universalmente legisladora, não poderia converter-se em lei. O conteúdo da máxima deve adequar-se à forma, isto é, deve estar em conformidade com o princípio da moralidade, de modo a enunciar o dever. (RAUBER, 1999, p. 40).

Hegel critica Kant acusando-o de fazer uma mera fundamentação subjetiva da vontade livre, ultrapassando-o ao sair da fundamentação subjetiva e entrando nas mediações sociais da liberdade. Hegel está interessado pelos deveres particulares (‘eu preciso saber o que eu devo fazer’). O critério formal kantiano não diz nada de novo do que já está dito na máxima ou corre-se o risco de colocar qualquer conteúdo justificando-o.


Referências e texto completo ver em: http://repositorio.pucrs.br/dspace/handle/10923/6830

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