quarta-feira, 22 de maio de 2013

O ROMPIMENTO DA DICOTOMIA FORMA-CONTEÚDO NA ETICIDADE HEGELIANA

            A eticidade tem como grande objetivo a libertação da indeterminação, da imediatez e do natural. Isso ocorre instaurando-se a mediação e produzindo, consequentemente, a determinação (nas instituições sociais). Na eticidade há o processo de autodeterminação nas medições sociais, a preservação da autonomia individual e o modo como o sujeito se liberta do imediato e entra na segunda natureza. Ela preenche a insuficiência do direito abstrato e da moralidade. Hegel, neste terceiro momento dos Princípios, mostra a passagem da relação ética imediata à substancialidade ética, assegurada pelo Estado. O Estado tratado por Hegel é o ideal, o conceitual, o pensado, pois os Estados históricos jamais alcançariam o dever-ser (Estado ideal).
Eticidade corresponde à moralidade objetiva. É a mediação social da vontade livre enquanto princípio orientador. A opinião subjetiva é a mais indeterminada. Portanto, ela exige mediação. O ético, destarte, não se situa ao nível do indeterminado. Ninguém é naturalmente ético. Conforme o autor,

o direito da vontade moral subjetiva contém os três seguintes aspectos: a) O direito abstrato ou formal da ação: o seu conteúdo em geral, tal como é realizado na existência imediata, deve ser meu, deve ter sido projetado pela minha vontade subjetiva; b) O particular da ação é o seu conteúdo interior: 1° = trata-se da intenção quando o seu caráter universal é determinado para mim, que é o que constitui o valor da ação e aquilo pelo qual ela vale para mim; 2° - trata-se do bem-estar quando o seu conteúdo se apresenta como fim particular do meu ser particular; c) Este contudo como interior que assume a sua universalidade, a sua objetividade em si e para si, é o fim absoluto da vontade, o bem que é acompanhado, no domínio da reflexão, pela oposição da universalidade objetiva, em parte na forma de mal, em parte na forma de certeza moral. (Phd, § 114).

            “A teoria dos deveres [...] não deve reduzir-se ao princípio vazio da moralidade subjetiva que [...] nada determina”. (Phd, § 148). A superação da teoria do dever kantiana ocorre na passagem para a eticidade. As relações éticas, segundo Hegel, são relações necessárias e não contingentes. Portanto, supõem mediações, pois o necessário somente é possível a partir das mediações, do efetivo e não do real, do imediato. Quanto mais imediato, mais contingente. Hegel supera a imediatez pela mediação. Onde é que a doutrina do dever busca o seu conteúdo? Como elaborar uma doutrina do dever que não seja formal? Hegel diz:

Uma teoria dos deveres que não seja uma ciência filosófica extrai a sua matéria das relações apresentadas pela experiência e mostra as suas relações com concepções próprias, princípios e ideias, fins, institutos e sentimentos correntes, às quais ainda pode acrescentar, como motivos, as repercussões de cada dever noutras relações morais bem como no bem-estar e na opinião. Mas uma teoria coerente e imanente dos deveres só pode ser o desenvolvimento das relações que necessariamente provém da ideia de liberdade e portanto realmente existem no Estado, em toda a sua extensão. (Phd, § 148).

Os cidadãos já nascem inseridos em uma família e em um Estado. Hegel discorda, portanto, da validade apriorística das leis, pois o universal somente existe se ele se concretizar em uma individualidade contingente. Destarte, não há uma dicotomia entre matéria e forma. Como uma doutrina ética do dever faz obrigações? Qual a implicação disso com o conceito de liberdade?

Comprometendo a vontade, pode e deve figurar-se como uma limitação da subjetividade indeterminada ou da liberdade abstrata, limitação dos instintos naturais bem como da vontade moral subjetiva que pretende determinar pelo livre-arbítrio o seu bem indeterminado. (Phd, § 149).

Portanto, o dever é uma obrigação frente a uma subjetividade indeterminada ou a uma vontade não mediada. Segundo Hegel, é necessário a libertação frente a indeterminação, pois a vontade imediata, ao ser mediada, é superada. A libertação da indeterminação ocorre pela mediação.

Mas o que na realidade o indivíduo encontra no dever é uma dupla libertação: libertar-se, por um lado, da dependência resultante dos instintos naturais e assim da opressão em que se encontra como subjetividade particular submetida à reflexão moral do dever-ser e do possível; liberta-se, por outro lado, da subjetividade indefinida que não alcança a existência nem a determinação objetiva da ação e fica encerrada em si como inativa. No dever, o indivíduo liberta-se e alcança a liberdade substancial. (Phd, § 149).

No dever, pela mediação, há a libertação da indeterminação, do abstrato, do vazio. O trajeto da eticidade é partir do indeterminado para o substancial. O percurso da mediação é o percurso do indeterminado para a substancialidade ética que se concretiza, em última instância, no Estado. Esse é o percurso das instituições sociais, que se dá na objetividade, por meio de uma interpretação objetiva da moralidade. Hegel não aceita a concepção de liberdade abstrata. Isso não existe. Pode-se sim falar em corporações, em Estado e é nas mediações sociais que se pode falar de liberdade mediada e reconhecida e, portanto, restringida. A lei não pode ser vista unicamente no ponto de vista negativo (liberdade negativa), mas ela é resultado de mediações (liberdade positiva). A lei não é apenas regulativa, mas também constitutiva.

Numa vida coletiva moral, é fácil dizer o que ao homem cumpre, quais os deveres a que tem de obedecer para ser virtuoso. Nada mais tem a fazer além do que lhe é indicado, enunciado e sabido pela condição em que está. A proibidade é o aspecto universal do que lhe pode ser exigido pelo direito de um lado, pela sociedade de outro. (Phd, § 150).

            Assim, a honestidade pode ser um princípio de uma comunidade ética que se dá por meio da mediação das vontades. Portanto, o sujeito sabe como se comportar em uma comunidade ética, pois isso é estabelecido e assinalado pelas circunstâncias. “Na simples identidade com a realidade dos indivíduos, a moralidade objetiva aparece como o seu comportamento geral, como costume”. (Phd, § 151). Quando se atua eticamente não se está atuando imediatamente, mas de modo universal. “O hábito que se adquire é como que uma segunda natureza colocada no lugar da vontade primitiva puramente natural, e que é a alma, a significação e a realidade da sua existência”. (Phd, § 151). A primeira natureza é a vontade meramente natural; já segunda natureza equivale as instâncias mediadoras (instituições sociais), ou seja, é aquilo que é criado pela mediação das vontades livres. Hegel abandona a primeira natureza por ela não ser mediada e reconhecida. A segunda natureza sim é reconhecida. “O direito que os indivíduos têm de estar subjetivamente destinados à liberdade satisfaz-se quando eles pertencem a uma realidade moral objetiva”. (Phd, § 153). O indivíduo não se realiza fora de uma realidade ética; ele deve ser membro de instituições e não tomado abstratamente. “O direito dos indivíduos à sua particularidade está também contido na substancialidade moral, pois a particularidade é o modo exterior fenomênico em que existe a realidade moral”. (Phd, § 154).
A substancialidade ética é a particularidade individual mediada e reconhecida. “Nesta identidade da vontade universal e da particular, coincidem o dever e o direito e, no plano moral objetivo, tem o homem deveres na medida em que têm direitos e direitos na medida em que tem deveres”. (Phd, § 155). Na eticidade, portanto, há uma identidade entre a vontade universal e a particular, ou seja, há uma coincidência entre direito e dever. Por meio do ético, o cidadão tem direitos na medida em que têm deveres e deveres na medida em que têm direitos. Segundo Hegel, há uma mutua restrição entre direitos e deveres.

No direito abstrato tenho eu um direito e um outro tem o dever correspondente. Na moralidade subjetiva, o direito da minha consciência e da minha vontade, bem como o da minha felicidade, são idênticos ao dever e só como dever-ser são objetivos. (Phd, § 155).

Na eticidade, o direito somente se afirma como direito quando é também um dever. Portanto, segundo Hegel, o escravo, por não ter direitos, não pode ter também deveres. O direito contém em si o dever. Isso torna possível a eticidade, a convivência nas instituições sociais. A eticidade fundamenta o espírito do povo. Ela ocorre quando a vontade particular do indivíduo se identifica com a vontade de todos os indivíduos.


Referências e texto completo ver em: http://repositorio.pucrs.br/dspace/handle/10923/6830

Nenhum comentário:

Postar um comentário