A NATUREZA DA JUSTIÇA EM BOBBIO: A IGUALDADE
O
primeiro texto clássico acerca da noção de justiça foi o livre V da Ética a Nicômaco, de Aristóteles. Neste
texto, a justiça é analisada a partir da ideia de legalidade e de igualdade.
Aristóteles analisa as diversas formas de justiça, destacando principalmente a
corretiva (comutativa) e a distributiva e diferencia a justiça no sentido
estrito e a equidade.
Esse estudo [...]
foi assumido como se tivesse de uma vez para sempre tudo o que se poderia dizer
sobre o assunto. [...] Disso decorre uma desanimadora monotonia das análises
sobre a justiça nos clássicos da filosofia medieval e, em parte, moderna, que
dão a impressão de ser uma série de variações sobre um mesmo tema ou sobre uns
quantos temas fixos, de valor analítico limitado. Na época moderna, a maioria
dos clássicos em filosofia política e jurídica, cuja referência é obrigatória
no debate atual não dedicou grande atenção ao estudo do conceito de justiça,
com exceção de Hobbes (BOBBIO, 2003, p. 09).
A
vinculação entre justiça e lei está presente em Aristóteles. “O sentido
predominante de ação justa é o de ação realizada com apego a uma lei” (BOBBIO,
2003, p. 09). Atribuir o significado de justo ao homem: segundo Bobbio, um
homem “justo pode ser tanto um indivíduo respeitoso a lei como um homem
equânime, que afirma imparcialmente o que é correto e incorreto” (2003, p. 09).
Em relação a equidade, a justiça relaciona-se com a igualdade. Por exemplo,
“‘sentença justa’ pode ser tanto aquela proferida por um juiz que tenha estrito
apego à lei como a decisão equitativa que respeitou a regra geral do tratamento
igual aos iguais” (BOBBIO, 2003, p. 09).
Portanto, em Aristóteles,
além da justiça estar vinculada a questão da legalidade, ela está vinculada
também a questão da igualdade. Definir a ação justa como a ação conforme a lei,
surgem inevitavelmente as seguintes perguntas: o que são leis justas? E leis
injustas? Devemos cumprir as leis consideradas injustas? “Pode ser chamada
justa tanto uma lei (inferior) conforme a uma norma (superior) [...] como uma
lei igualitária que elimina uma discriminação, suprime um privilégio ou, por
simetria, um tratamento odioso” (BOBBIO, 2003, p. 09).
Da redução do
assunto da justiça a um problema de legalidade (ou legitimidade) decorre a
concepção legalista da justiça, segundo a qual é justo o que se manda pelo
simples fato de ser mandado (é claro que por uma autoridade superior, detentora
do poder legítimo de promulgar leis) e é injusto o que está proibido pelo
simples fato de estar proibido. Neste sentido pode ser interpretada a teoria
hobbesiana, segundo a qual, no estado de natureza, precisamente pela falta de
leis válidas e eficazes, nenhum critério permite distinguir uma ação justa de
uma injusta. Apenas no estado civil teria sentido falar de justiça e injustiça
(BOBBIO, 2003, p. 10).
O problema do legalismo é
conhecido também como o problema do formalismo jurídico (que foi investigado na
crítica que Hegel fez a concepção abstrata do imperativo categórico kantiano).
A
concepção da justiça a partir da igualdade destaca que “qualquer lei assegura
uma primeira forma de igualdade, a formal, entendida como tratamento equitativo
dos que integram um mesmo grupo” (BOBBIO, 2003, p. 11). A regra de justiça diz
que a lei deve oferecer tratamento igual para os iguais e desigual para os
desiguais. Quando não há uma lei para um determinado caso, o juiz deve julgar
caso a caso. Porém, ao julgar caso a caso há os seguintes problemas: ele pode
julgar casos semelhantes de diferentes maneiras ou ainda casos diferentes do
mesmo modo.
Mesmo a chamada
justiça de cádi não é arbitrária, pois leva em conta as normas
preestabelecidas, sejam elas de caráter religioso ou moral, transmitidas por
costume ou sugeridas por decisões precedentes de outros juízes ou por
jurisprudências. Até mesmo quando o juiz se encontra diante de um caso novo,
antes de romper totalmente com a tradição, ele usa om raciocínio por analogia,
cujo pressuposto é o de que até o limite do razoável o caso novo deve ser
resolvido da mesma forma como forma tratados casos similares pela lei, e cujo
propósito é, mais uma vez, a não-divergência no tratamento de assuntos que
podem ser incluídos em uma única categoria geral. (BOBBIO, 2003, p. 12).
A concepção que relaciona
lei e igualdade (equidade) é a concepção que origina o Estado de Direito, ou
seja, o governo das leis é superior ao governo dos homens. A lei, destarte,
assegura tratamento igual a todos, deferentemente do governo dos homens, que
podem realizar julgamentos arbitrários. Na obra As suplicantes, Eurípedes faz Teseu afirmar o seguinte:
Em uma cidade não
há pior inimigo que um tirano quando não há leis gerais, e um só homem tem om
poder, ao fazer ele mesmo a lei; e não há nenhuma igualdade. Quando, ao
contrário, há leis escritas, o pobre e o rico têm direitos iguais, sendo
possível que os mais fracos contestem o poderoso, quando este os insulta, e om
pequeno, quando tem razão, possa vencer o grande (v. 429 – 437) (in BOBBIO,
2003, p. 12).
O
princípio da igualdade está presente em todas as Constituições dos Estados
contemporâneos. A primeira Constituição a destacar esse princípio foi a
Constituição Francesa de 1791. O princípio da igualdade não significa que todos
os cidadãos sejam iguais.
Pode-se entendê-lo
de duas diferentes maneiras, conforme esse preceito seja dirigido aos juízes ou
ao legislador. Orientado para os juízes, pode ser traduzido da seguinte
maneira: ‘A lei deve ser igual para todos’, o que significa que a lei deve ser
aplicada imparcialmente, e deve sê-lo porque só dessa maneira assegura
tratamento igual para os iguais. [...] Dirigido ao legislador, o princípio é
uma verdadeira e própria norma constitucional e pode ser reformulado do seguinte
modo: ‘Todos devem contar com uma lei igual’. [...] Como a discriminação
conforme a condição social é uma das muitas e diversas discriminações que
existem nas diversas sociedades e também em uma mesma sociedade (o sexo, a
raça, a etnia, a classe social, a religião etc. são motivos de discriminação),
o princípio da igualdade diante da lei não tem um sentido unívoco. É preenchido
de distintos conteúdos, de acordo com a maior ou menor amplitude das
discriminações conservadas ou eliminadas (BOBBIO, 2003, p. 13-4).
Obra consultada: BOBBIO, N. Em torno da noção de justiça.