segunda-feira, 24 de setembro de 2012

RESENHA DA OBRA SOBRE AS MANEIRAS CIENTÍFICAS DE TRATAR O DIREITO NATURAL, DE HEGEL

Segundo Hegel, os sujeitos individuais formam a sua identidade somente quando são reconhecidos por um outro (intersubjetivamente). O indivíduo somente é autônomo, podendo relacionar-se positivamente consigo mesmo, se ele for valorizado pelos demais indivíduos de sua comunidade. Se não há este reconhecimento, o indivíduo não reconhecido parte para a luta, a fim de criar as condições para tal. Quando a falta de reconhecimento não é de um indivíduo isolado, mas de um grupo social, a luta ganha contornos políticos e sociais. Para formular o seu pensamento, Hegel parte da premissa de que os indivíduos não são dados, mas se formam por um processo de socialização. Portanto, o indivíduo desde sempre está inserido num convívio intersubjetivo. Esse convívio é chamado de eticidade. Desta forma, a teoria do contrato social é inválida para a explicação da organização da sociedade.
Na obra Sobre as maneiras cientificas de tratar o direito natural, o autor esboça a sua filosofia prática e política, visando superar a filosofia contratualista.  O filósofo não justifica os direitos individuais atomizados, mas elabora a teoria da intersubjetividade. Segundo Hegel, as duas teorias modernas acerca do direito natural – a empirista e a formal – estão equivocadas, pois ambas defendem uma teoria dos indivíduos atomizados, tratando a natureza humana como individual e a comunidade como algo secundário. Hegel, nesse escrito, critica o método empírico-formal do jusnaturalismo. Seu projeto jurídico é um direito especulativo, ou seja, um direito de natureza ética, que não deve proceder do indivíduo isolado, mas da vida comunitária. Desta forma, Hegel estará destacando uma matriz filosófica da intersubjetividade.
A versão empirista do direito natural é composta por Grotius, Hobbes, Locke, Puffendorf, Rousseau e os juristas ligados à Escola Histórica. Eles partem das coisas observáveis da realidade e acabam descobrindo uma variedade de fatos. Esses fatos podem se substituir um ao outro e eles têm o mesmo valor, sendo que nenhum pode prevalecer sobre o outro. Desta forma, não há como saber qual é o necessário e qual é o acidental. Por isso, o empirismo elege um fato ao azar para que ele possa ser um princípio que fundamente a unidade científica. Por exemplo, quando o empirismo pretende entender o matrimônio, ele retém-se apenas em uma determinidade, “põe-se tanto a procriação dos filhos quanto a comunidade dos bens etc.” (HEGEL, 2007, p. 41) e submete a uma dessas determinidades a totalidade orgânica do matrimônio. O mesmo ocorre no instituto jurídico da pena, onde o empirismo aborda apenas uma das determinidades do todo. Isso ocorre também com a noção do estado de natureza. Para alguns teóricos, nesse estado o homem é bom, sociável, justo etc; para outros, o homem é mau, anti-sociável, injusto etc. Portanto, entre os próprios contratualistas há determinações totalmente diversas. Por isso, o empirismo não consegue ter a unidade necessária. A filosofia social moderna define a vida social como sendo uma luta por autoconservação. Esse pensamento é sustentado principalmente pelas figuras de Maquiavel, que desenvolve um realismo político, o qual está ligado a um pessimismo antropológico, e Hobbes, que defende o contrato social como forma de fundamentar o absolutismo. Em suma, Hegel está criticando a forma atomista de tratar o direito natural realizada pelos empiristas e está defendendo a filosofia política como totalidade orgânica.
A versão formal do direito natural é tratada por Kant e Fichte. Esses pensadores partem da pura abstração e não dos fatos da realidade como partiam os empiristas. Eles escolhem uma determinação finita ao acaso e a colocam como fundamento. Essa determinação é sem matéria, é pura forma. A única lei é o imperativo categórico. Ocorre no formalismo uma oposição entre a autoconsciência pura e a consciência real do sujeito. Isso só é resolvido mediante a coerção, pois para Kant direito é a faculdade de coagir. Hegel ataca o formalismo no direito natural, pois ele reduz o conteúdo do direito ao conteúdo da moral e, assim, o sujeito é um pensador solitário; ataca também a legalização do direito, onde a justiça é apenas a aplicação da lei (e isso justifica o juspositivismo); e, por fim, critica a privatização do direito, que salienta a sobreposição do direito privado sobre o público. Por fim, Kant e Fichte partem do conceito transcendental da razão prática e a consideram o resultado da purificação das inclinações humanas. A natureza do homem, dessa forma, é egocêntrica, pois para agir eticamente deve reprimir seus desejos.
A proposta de Hegel é o método especulativo. Para ele, o direito natural não deve conceber o indivíduo isolado, mas inserido numa comunidade. Hegel busca, com o método especulativo, ficar com as vantagens e eliminar as desvantagens das teorias formal e empirista. Não há como criar um sistema científico da realidade jurídica colocando uma forma pura a priori, desligada das determinações empíricas e nem tomando ao acaso uma determinação empírica e a colocando como princípio dos demais fatos jurídicos. Inspirado nos filósofos gregos, Hegel nega o atomismo do direito natural. Sua pretensão é construir um estado de totalidade ética. Ou seja, “[...] primeiro, estabelecer o que é o princípio básico, ou formal, do direito natural ou da justiça. Segundo, mostrar como este princípio pode ser relacionado a um sistema objetivo de direito e deveres. Terceiro, apresentar como são condicionados estes direitos e deveres, historicamente, pelos costumes e tradições peculiares à vida ética particular de um povo ou nação (BAVARESCO, A; CHRISTINO, S. B. Um direito de natureza ética e o método especulativo hegeliano. In.: Hegel. Sobre as maneiras cientificas de tratar o direito natural. São Paulo: Loyola, 2007, p. 22).
Portanto, para explicar a vida social, Hegel rompe com a filosofia contratualista moderna, que via o conflito social como uma luta por autoconservação. Assim, o homem é egoísta e calculista. Essa visão considera o homem de maneira atomística. Opondo-se a essa teoria moderna, Hegel destaca a ideia de uma vida social de reconciliação, inspirada na visão romântica da pólis grega e das primeiras comunidades cristãs, em que haveria uma harmonia entre a liberdade individual e os costumes coletivos. Hegel buscou inspiração na filosofia de Platão e Aristóteles e destaca as antigas pólis gregas como exemplo de reconhecimento e intersubjetividade. Naquela época havia uma plenitude da natureza humana, tendendo à coletividade para resolver qualquer comportamento anti-ético. A vida em sociedade era garantida pela virtuosidade – do cumprimento das leis - de seus indivíduos e os homens eram considerados, segundo Aristóteles, animais políticos. Essa visão política existiu na Idade Antigo e Medieval. Todavia, essa ordem normativa deixou de existir na Idade Moderna, com as filosofias atomísticas de Maquiavel e Hobbes. Contudo, após a leitura da economia política clássica e com a compreensão da ruptura que a modernidade produz, Hegel, percebendo que sua concepção do reconhecimento não pode mais apelar a esses ideais, desenvolve uma teoria da intersubjetividade que não desconsidere a realidade da sociedade moderna, ligada à produção industrial.
O conflito social não se trata de um confronto por autoconservação, como diziam Maquiavel e Hobbes, mas por reconhecimento. É por meio da luta por reconhecimento que surgem instituições garantidoras da liberdade. Os indivíduos sempre estão em convívio intersubjetivo. Portanto, os indivíduos não são dados, mas se formam por meio da socialização. Esse convívio é a eticidade (vida ética), estando sempre permeado por costumes e valores, ou seja, por vínculos éticos. Portanto, o direito real de um povo é a junção da moralidade e do direito natural, que na obra Princípios da Filosofia do Direito, de 1821, será chamado de direito abstrato. Hegel não está preocupado com a origem da sociedade, mas com a sua transformação, de modo que possa haver o reconhecimento intersubjetivo entre os seus membros.

HEGEL. Sobre as maneiras científicas de tratar o direito natural. Trad. de Agemir Bavaresco e Sérgio B. Christino. São Paulo: Loyola, 2007.

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