RESENHA
DA OBRA SOBRE AS MANEIRAS CIENTÍFICAS DE
TRATAR O DIREITO NATURAL, DE HEGEL
Segundo
Hegel, os sujeitos individuais formam a sua identidade somente quando são
reconhecidos por um outro (intersubjetivamente). O indivíduo somente é
autônomo, podendo relacionar-se positivamente consigo mesmo, se ele for
valorizado pelos demais indivíduos de sua comunidade. Se não há este
reconhecimento, o indivíduo não reconhecido parte para a luta, a fim de criar
as condições para tal. Quando a falta de reconhecimento não é de um indivíduo
isolado, mas de um grupo social, a luta ganha contornos políticos e sociais.
Para formular o seu pensamento, Hegel parte da premissa de que os indivíduos
não são dados, mas se formam por um processo de socialização. Portanto, o
indivíduo desde sempre está inserido num convívio intersubjetivo. Esse convívio
é chamado de eticidade. Desta forma, a teoria do contrato social é inválida
para a explicação da organização da sociedade.
Na
obra Sobre as maneiras cientificas de tratar o direito
natural, o autor esboça a sua
filosofia prática e política, visando superar a filosofia contratualista. O filósofo não justifica os direitos
individuais atomizados, mas elabora a teoria da intersubjetividade. Segundo
Hegel, as duas teorias modernas acerca do direito natural – a empirista e a
formal – estão equivocadas, pois ambas defendem uma teoria dos indivíduos
atomizados, tratando a natureza humana como individual e a comunidade como algo
secundário. Hegel, nesse escrito, critica o método empírico-formal do
jusnaturalismo. Seu projeto jurídico é um direito especulativo, ou seja, um
direito de natureza ética, que não deve proceder do indivíduo isolado, mas da
vida comunitária. Desta forma, Hegel estará destacando uma matriz filosófica da
intersubjetividade.
A
versão empirista do direito natural é composta por Grotius, Hobbes, Locke,
Puffendorf, Rousseau e os juristas ligados à Escola Histórica. Eles partem das
coisas observáveis da realidade e acabam descobrindo uma variedade de fatos.
Esses fatos podem se substituir um ao outro e eles têm o mesmo valor, sendo que
nenhum pode prevalecer sobre o outro. Desta forma, não há como saber qual é o
necessário e qual é o acidental. Por isso, o empirismo elege um fato ao azar
para que ele possa ser um princípio que fundamente a unidade científica. Por
exemplo, quando o empirismo pretende entender o matrimônio, ele retém-se apenas
em uma determinidade, “põe-se tanto a procriação dos filhos quanto a comunidade
dos bens etc.” (HEGEL, 2007, p. 41) e submete a uma dessas determinidades a
totalidade orgânica do matrimônio. O mesmo ocorre no instituto jurídico da
pena, onde o empirismo aborda apenas uma das determinidades do todo. Isso
ocorre também com a noção do estado de natureza. Para alguns teóricos, nesse estado
o homem é bom, sociável, justo etc; para outros, o homem é mau, anti-sociável,
injusto etc. Portanto, entre os próprios contratualistas há determinações
totalmente diversas. Por isso, o empirismo não consegue ter a unidade
necessária. A filosofia social moderna define a vida social como sendo uma luta
por autoconservação. Esse pensamento é sustentado principalmente pelas figuras
de Maquiavel, que desenvolve um realismo político, o qual está ligado a um
pessimismo antropológico, e Hobbes, que defende o contrato social como forma de
fundamentar o absolutismo. Em suma, Hegel está criticando a forma atomista de
tratar o direito natural realizada pelos empiristas e está defendendo a
filosofia política como totalidade orgânica.
A
versão formal do direito natural é tratada por Kant e Fichte. Esses pensadores
partem da pura abstração e não dos fatos da realidade como partiam os
empiristas. Eles escolhem uma determinação finita ao acaso e a colocam como
fundamento. Essa determinação é sem matéria, é pura forma. A única lei é o
imperativo categórico. Ocorre no formalismo uma oposição entre a
autoconsciência pura e a consciência real do sujeito. Isso só é resolvido
mediante a coerção, pois para Kant direito é a faculdade de coagir. Hegel ataca
o formalismo no direito natural, pois ele reduz o conteúdo do direito ao
conteúdo da moral e, assim, o sujeito é um pensador solitário; ataca também a
legalização do direito, onde a justiça é apenas a aplicação da lei (e isso
justifica o juspositivismo); e, por fim, critica a privatização do direito, que
salienta a sobreposição do direito privado sobre o público. Por fim, Kant e
Fichte partem do conceito transcendental da razão prática e a consideram o
resultado da purificação das inclinações humanas. A natureza do homem, dessa forma,
é egocêntrica, pois para agir eticamente deve reprimir seus desejos.
A
proposta de Hegel é o método especulativo. Para ele, o direito natural não deve
conceber o indivíduo isolado, mas inserido numa comunidade. Hegel busca, com o
método especulativo, ficar com as vantagens e eliminar as desvantagens das
teorias formal e empirista. Não há como criar um sistema científico da
realidade jurídica colocando uma forma pura a priori, desligada das determinações empíricas e nem tomando ao acaso uma
determinação empírica e a colocando como princípio dos demais fatos jurídicos.
Inspirado nos filósofos gregos, Hegel nega o atomismo do direito natural. Sua
pretensão é construir um estado de totalidade ética. Ou seja, “[...] primeiro,
estabelecer o que é o princípio básico, ou formal, do direito natural ou da
justiça. Segundo, mostrar como este princípio pode ser relacionado a um sistema
objetivo de direito e deveres. Terceiro, apresentar como são condicionados
estes direitos e deveres, historicamente, pelos costumes e tradições peculiares
à vida ética particular de um povo ou nação (BAVARESCO, A; CHRISTINO, S.
B. Um direito de natureza ética e o método especulativo hegeliano. In.:
Hegel. Sobre as maneiras cientificas de tratar o direito natural. São Paulo:
Loyola, 2007, p. 22).
Portanto,
para explicar a vida social, Hegel rompe com a filosofia contratualista
moderna, que via o conflito social como uma luta por autoconservação. Assim, o
homem é egoísta e calculista. Essa visão considera o homem de maneira
atomística. Opondo-se a essa teoria moderna, Hegel destaca a ideia de uma vida
social de reconciliação, inspirada na visão romântica da pólis grega
e das primeiras comunidades cristãs, em que haveria uma harmonia entre a
liberdade individual e os costumes coletivos. Hegel buscou inspiração na
filosofia de Platão e Aristóteles e destaca as antigas pólis
gregas como exemplo de reconhecimento e intersubjetividade. Naquela época havia
uma plenitude da natureza humana, tendendo à coletividade para resolver
qualquer comportamento anti-ético. A vida em sociedade era garantida pela
virtuosidade – do cumprimento das leis - de seus indivíduos e os homens eram
considerados, segundo Aristóteles, animais políticos. Essa visão política
existiu na Idade Antigo e Medieval. Todavia, essa ordem normativa deixou de
existir na Idade Moderna, com as filosofias atomísticas de Maquiavel e Hobbes.
Contudo, após a leitura da economia política clássica e com a compreensão da
ruptura que a modernidade produz, Hegel, percebendo que sua concepção do
reconhecimento não pode mais apelar a esses ideais, desenvolve uma teoria da
intersubjetividade que não desconsidere a realidade da sociedade moderna,
ligada à produção industrial.
O
conflito social não se trata de um confronto por autoconservação, como diziam
Maquiavel e Hobbes, mas por reconhecimento. É por meio da luta por
reconhecimento que surgem instituições garantidoras da liberdade. Os indivíduos
sempre estão em convívio intersubjetivo. Portanto, os indivíduos não são dados,
mas se formam por meio da socialização. Esse convívio é a eticidade (vida
ética), estando sempre permeado por costumes e valores, ou seja, por vínculos éticos.
Portanto, o direito real de um povo é a junção da moralidade e do direito
natural, que na obra Princípios
da Filosofia do Direito, de 1821, será
chamado de direito abstrato. Hegel não está preocupado com a origem da
sociedade, mas com a sua transformação, de modo que possa haver o
reconhecimento intersubjetivo entre os seus membros.
HEGEL. Sobre as maneiras científicas de
tratar o direito natural. Trad. de Agemir Bavaresco e Sérgio B. Christino. São Paulo: Loyola, 2007.
Nenhum comentário:
Postar um comentário