Na obra A Genealogia da
moral, Nietzsche desenvolve uma crítica intensa dos valores morais que vêm
desde Sócrates e outros impostos, posteriormente, por ideologias
judaicos-cristãs. No prefácio da obra, o filósofo questiona-se: “qual é
definitivamente a origem das nossas idéias do bem e do mal? Atribui-se ao bem
um valor superior ao valor do mal, ao valor do progresso, da utilidade, do
desenvolvimento humano. E por quê? Não poderia ser verdade o contrário?” Neste
tom de crítica, Nietzsche discorre sua obra. Este escrito visa ressaltar alguns
traços importantes desta relevante obra. Não será trabalhado aqui nenhum motivo
transcendente, nenhum Deus que veio a revelar ao homem princípios para
controlar o modo agir, mas sim investigará como surgiu entre os povos o juízo
bom e mau. O livro se divide em três ensaios, sendo que o primeiro analisa os
conceitos “bom e mau” e “bom e ruim”, o segundo estuda os conceitos de culpa e
de má consciência e o terceiro, aspectos do ideal ascético.
A primeira
parte, intitulada “Bem e mal – Bom e
mau” consiste na psicologia do cristianismo. Nietzsche discute a origem dos
sentimentos morais, a partir do antagonismo metafísico entre duas classes: a
dos senhores e a dos escravos, na tentativa de explicação das condições de
criação desses juízos e nas conseqüências para o desenvolvimento da sociedade.
Tendo a classe senhorial, duas classes rivais: a guerreira e a sacerdotal; a
primeira, dominante, cultua a virtude do corpo, enquanto a outra inventa o
espírito. Desta rivalidade surgem as duas morais: a moral dos senhores (os
fortes, os nobres, os sadios utilizam o termo “bom” tendo como antônimo o termo
“ruim”. Por exemplo, numa luta o ruim é o adversário que não luta bem, porém
isso não significa que ele é mal. Esta é uma avaliação técnica. Assim, é
afirmado e elaborado o conceito bom a partir de si mesmo - eu sou bom, eu sou
belo, eu sou forte -; em oposição cria o conceito ruim para tudo aquilo que é
baixo, vulgar, plebeu) e a moral dos escravos (os fracos, os doentes, os
escravos usam o termo “bom” tendo como antônimo o termo “mal”. Estes não julgam
a técnica de luta, mas a crueldade. Dizem: nós somos bons e nossos adversários
são maus, cruéis. Desta forma, surge uma avaliação moral. Esta é uma moral que
nasce do ressentimento e é sempre uma reação ao que lhe vem de fora; sendo
assim, seu conceito original é mal, para designar todo não-eu e com uma lógica
surpreendente infere: ele é mal, logo eu sou bom). Quando os fortes deixam de
fazer a avaliação técnica e começam a fazer a avaliação moral, acabam
percebendo que são os maus e, desta forma, ficam arrependidos, tendo como
conseqüência a má consciência. Assim, os fortes já não são mais fortes. Deixam
de ser lobo para ser ovelha (animal de rebanho). Em suma, existe uma dupla
origem para nossos juízos de valor, resultante de duas formas distintas de
avaliar a vida: segundo a moral dos senhores ou segundo a moral dos escravos. Durante
longo tempo essa dupla forma de avaliar conviveu na história até a revolta dos
escravos na moral, que começa com o povo judeu e segue adiante com o
cristianismo, que irá consolidar a vitória da moral dos escravos como a única
moral. Nietzsche analisa o surgimento de uma inversão de valores –
transvaloração dos valores. Assim, o bom passa a ser o pobre; o miserável, em
contrapartida, o ruim, o mau, o impuro são aqueles materialmente ricos. Isso
Nietzsche identifica como um “ato da mais espiritual vingança”. Nas palavras de
Nietzsche, “os judeus vingaram-se dos seus dominadores por uma radical mudança
dos valores morais. Com uma lógica formidável, atiraram por terra a
aristocrática equação dos valores ‘bom, nobre, poderoso, formosa, feliz, amado
por Deus’. E, com o encarniçamento do ódio afirmaram: bons são apenas os
miseráveis, os pobres, os impotentes, os humildes, [...] os que sofrem, os
necessitados, os enfermos, os disformes”. Nietzsche vê a história do ocidente à
luz de uma enorme simplificação. O Renascimento parece-lhe um breve despertar
dos juízos de valor da Antiguidade, que, no entanto, salienta o filósofo
“graças a esse movimento de ódio – alemão e inglês – fundamentalmente plebeu,
que se chama a Reforma da qual havia de sair, por natural reação, a restauração
da Igreja e o restabelecimento de um silêncio sepulcral sobre a Roma clássica”.
Para Nietzsche, a moral dos escravos obteve na Europa uma vitória ainda mais
decisiva com a Revolução Francesa, com o triunfo da mediocridade, com o
nascimento das idéias modernas. É somente em Napoleão que revive ainda uma vez
mais, em pleno auge da revolta plebéia, durante um breve instante histórico, o
grande homem nobre, “síntese de inumano e de sobre-humano”. O filósofo destaca
que quando os oprimidos, os servos, cheios de vingança e de impotência se põe a
dizer: ‘sejamos o contrário dos maus, sejamos bons. O bom é o que não injúria a
ninguém, nem ofende, nem ataca, nem usa de represálias, senão que deixa a Deus
o cuidado da vingança [...] e espera pouco da vida como os humildes e os
justos. Tudo isto quer dizer em suma: ‘nós, os fracos não podemos sair de
fracos, não façamos, pois, nada que não possamos fazer’. Esta amarga prudência,
que até o inseto possui (o qual, em caso de grande perigo, se finge de morto)
tomou o pomposo título de virtude, como se a fraqueza do fraco fosse um ato
livre, voluntário, meritório.
A segunda
parte, chamada de “A falta, a má
consciência e o que se nos afigura” encerra uma psicologia da consciência
moral. Na visão de Nietzsche, a antiga e remota história do homem nos ensina
que observar alguém sofrer, ser castigado era uma alegria, pois a crueldade
fazia e faz parte da natureza humana, sendo um instinto fundamental. Neste
tempo em que a humanidade não se envergonhava ainda de sua crueldade, observa o
filósofo, a vida sobre a terra era mais serena e feliz do que nesta época de
pessimismo. Um doentio moralismo ensinou o homem a envergonhar-se de todos os
seus instintos. A interioridade é o resultado de uma perversão dos instintos.
Todos os instintos que não se chegam a exteriorizar interiorizam-se. Todo o
mundo interior, primitivamente embrionário, se desenvolveu, adquiriu
profundidade, largura e altura, quando a expansão do indivíduo para o exterior
foi entravada. Por conseguinte, a tese nietzscheana sobre a origem da
consciência moral é do seguinte teor: a consciência não é mais do que um
instinto de crueldade impedido de se exteriorizar e que, por isso, se interioriza.
Deste modo, a origem da má consciência é colocada como instintos reprimidos que
não podem se exteriorizar e, então, se voltam para dentro, contra o homem mesmo
que possui esses instintos. Aquele pequeno mundo interior vai se desenvolvendo
a medida que a exteriorização do homem acha obstáculos. Parafraseando o autor,
“as barreiras que a organização social construía para se desenvolver contra os
antigos instintos de liberdade, e, em primeiro lugar, a barreira do castigo,
conseguiram que todos os instintos dos homens selvagens se voltassem contra o
homem interior. A ira, a crueldade, a necessidade de perseguir, tudo isso se
dirigia contra o possuidor de tais instintos; eis a origem da má consciência”.
Então, veio ao mundo a maior e mais perigosa de todas as doenças: o homem
doente de si mesmo que declarou guerra contra os antigos instintos. O homem é
sempre um animal feroz, quer para o exterior, quer no seu íntimo.
Nesta terceira
parte, denominada “Qual é o fim de todo
o ideal ascético?”, que trata da psicologia do sacerdote, o filósofo interpreta
a relação de várias figuras humanas, tais como: dos filósofos, dos sacerdotes e
dos doutores da ciência, com os ideais ascéticos, procurando apontar o que
significam estes ideais. Pode-se dizer que procura por uma contrapartida aos
ideais ascéticos (contrapartida que ele não desenvolve na obra A Genealogia
da Moral). Nietzsche salienta que os ideais ascéticos não significam a
busca do vazio e do nada. Ao contrário, correspondem a uma característica
fundamental da vontade humana: seu horror ao vazio, e a necessidade de um
objetivo. Há várias formas de ideais ascéticos. Para os filósofos, o ideal
ascético é apenas uma forma de autodisciplina, da economia de suas forças. Por
isso, para a filosofia, os ideais ascéticos não são um envenenamento da fonte
da vida. Diferente e de caráter problemático, é o ideal ascético do sacerdote,
em que esse ideal nasce do instinto profilático e de defesa de uma vida que
degenera. O domínio e o adoecimento do animal homem garante o seu poder.
Segundo Nietzsche, “o sacerdote ascético deve ser o salvador predestinado, o
pastor e o defensor do rebanho doente; tal é a sua prodigiosa missão histórica.
A dominação sobre os doentes: eis o seu papel, a sua arte, a sua maestria, a
sua felicidade. Tem que defender o seu rebanho, contra quem? Contra aos sãos,
seguramente, mas também contra a inveja que inspiram os sãos”. O sacerdote é a
este respeito o falso médico e salvador que mantém no seu sofrimento a vida que
sofre, a vida miserável e medíocre. Ele cura a ferida de uma tal vida sofredora
e envenena-a ao mesmo tempo, pelo que a ferida precisa constantemente de ser
tratada. Para Nietzsche, o sacerdote é o homem que muda a direção do
ressentimento. Ele persuade o doente de que está enfermo por sua culpa,
consola-o e esforça-se por lhe fazer aceitar o ideal ascético. “Os fortes,
segundo o autor, aspiram a separar-se e os fracos a unir-se. Assim, todos os
doentes aspiram instintivamente a organizar-se em rebanhos, o sacerdote
ascético adivinha este instinto e alenta-os onde quer que haja rebanhos, o
instinto de fraqueza forma-os, a habilidade dos sacerdotes organiza-os”. O
sacerdote faz o seu rebanho entender que a dor é um castigo. Assim, houve uma
nova doença no mundo: o pecado. Quanto ao poder do ideal ascético sobre nós a
resposta é que esse poder não tem antagonistas. É a única explicação, a única
fonte de sentido para o homem até hoje. E esse sentido é dado como se a vida
fosse um erro o qual devemos evitar. Toda a idealidade dos ideais da história,
diz Nietzsche, era ascética. Quando o homem se eleva acima da mera sujeição
animal aos seus instintos, quando ele é vontade, ele opõe a sua vontade ao
instinto, ele “quer” contrariando o instinto. Contudo, o homem deverá exercer o
seu arbítrio. Ele não pode limitar-se a vegetar; precisa cultivar ideais acima
de si próprio; mas, até esse momento todos os ideais eram invenções dos
sacerdotes (ideais contrários à natureza). Deste modo, Nietzsche estabelece uma
relação íntima entre a vontade e o ideal ascético. Em certa medida existe
ascetismo em cada vontade. Qual era o objetivo da vontade ao entregar-se aos
ideais ascéticos? Nietzsche responde: o nada. A vontade era uma vontade de
nada, uma tendência niilista da vida. A vontade na tensão do ascetismo quer o nada,
quer o nada do Além, do ultramundano, dos ideais morais, ao mesmo tempo que
nega o mundo terreno, a vida que vive. O filósofo diz que não havia até então
na terra outro ideal senão o ideal contrário à Natureza, o ideal ascético; não
havia ainda um ideal que fosse conforme a Natureza. O ideal ascético trata a
vida como uma ponte para outra vida. Por ser o único sentido até hoje, e o
homem ser um animal carente de sentido, o homem preferirá querer o nada a nada
querer. O ideal ascético, contudo, tem importância positiva, pois ele cria o
abismo e o precipício sobre os quais a vontade procura lançar uma ponte. O
homem torna-se, assim, ponte entre ele próprio e o super-homem. Importa
repensar a idealidade a partir da estrutura da vida que se supera a si própria,
a partir da marcha gradual da vontade de domínio. O ideal ascético fora, até
então, o único ideal; porém, a partir da Zaratustra existe um contra-ideal.
Nietzsche nutre uma inimizade absoluta, encarniçada e ardente contra tudo
quanto antes encerrava um “valor”. Ao repensar a natureza de valor, acaba
abençoando o que até então era maldito e amaldiçoa o que até então era
abençoado.
Em última análise, A genealogia da moral é o estudo da origem e da história dos
valores morais. Nietzsche identifica a inversão de valores que levou ao
surgimento da má consciência interiorizada pelo homem (ressentido) que não pode
exercer suas vontades. Foi o ressentimento que destruiu valores vitais e
promoveu a moral ascética dos fracos. A conclusão de Nietzsche foi de que não
existem as noções absolutas de bem e de mal. Para ele as concepções morais
surgem com os homens, a partir das necessidades dos homens. Ou seja, são
produtos da história humana. Os homens são os verdadeiros criadores dos valores
morais, sobretudo as religiões. Para o filósofo, grande parte das pessoas adota
uma moral de rebanho. Para Nietzsche, todos os problemas da filosofia são
problemas de valor.
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