RESENHA DA OBRA CRÍTICA DA RAZÃO PURA, DE KANT
Com o idealismo transcendental, Kant se diferencia dos
outros sistemas idealistas da tradição. A sua ideia é que não conhecemos as
coisas tal como elas são nelas mesmas. Portanto, o idealismo transcendental
defende que não é possível conhecer a coisa-em-si. O projeto crítico kantiano
tem como foco a delimitação do conhecimento a objetos conhecidos
espaço-temporalmente. Desta forma, o Absoluto é incognoscível, já que o ser
humano não tem o intelecto intuitivo, que supostamente permitiria o acesso
imediato ao Absoluto. Kant recusa todo o saber dos objetos clássicos da
metafísica, tais como ser, mundo, alma e Deus, pois
para conhecer esses objetos é necessário estender-se para além do mundo
fenomênico.
Em
seu projeto crítico, Kant investiga a questão do conhecimento, ou seja, a
possibilidade, o limite e o âmbito de aplicação do conhecimento, pois em sua
época a filosofia se defrontava com a nova ciência da natureza, que ombreava os
avanços bem anteriores realizados pela lógica e pela matemática. Já a metafísica
não era capaz de oferecer soluções unanimemente aceitas, e tinha sua pretensão
a ser ciência questionada. Por isso, Kant investiga a possibilidade dela como
ciência, pois “lhe parece intolerável que a Primeira Filosofia, chamada
tradicionalmente de Metafísica, permaneça envolvida em uma disputa sem fim em
torno das questões de Deus, da liberdade e da imortalidade” (HÖFFE, 2005, p.
11). Para que a filosofia mantenha seu
lugar entre as ciências, essa controvérsia, acerca dos fundamentos metafísicos,
deve ser superada. Para tal, a investigação kantiana procura pelo critério que
permite delimitar o que pertence e o que não pertence à ciência para verificar
se a metafísica se situa ou não no campo científico, e assim, o porquê da
metafísica não apresentar o mesmo grau de certeza da lógica, da matemática e da
física.
Ao
invés de propor um novo sistema metafísico, que sem dúvida teria sorte idêntica
à dos outros, Kant irá atacar o problema pela raiz, interrogando-se sobre as
próprias possibilidades da razão. Intima-a para conhecer-se a si mesma por meio
de um método reflexivo e para instituir um tribunal que se recuse a seguir
todas as exigências que carecem de fundamento. Esse tribunal, onde juiz e ré
são a razão, é a crítica da razão pura. Trata-se de um exame crítico da razão,
isto é: de um exame que tem por fim de discernir ou distinguir o que a razão
pode fazer e o que é incapaz de fazer. A preocupação crítica consiste
essencialmente em não se dizer mais do que se sabe. E, se essa crítica diz
respeito à razão pura, isso se deve à intenção de Kant de pronunciar-se apenas
sobre o valor dos conhecimentos puramente racionais, como devem ser os da
metafísica. Portanto, é preciso buscar na própria razão as regras e os limites
de sua atividade, a fim de saber até que ponto podemos confiar na razão.
O
fracasso da metafísica em suas pretensões científicas se deve ao fato dela ter
empreendido sua tarefa dogmaticamente, ou seja, ter procedido sem uma crítica
prévia das possibilidades e limites da razão para um projeto tão ambicioso. Ao
investigar os fundamentos do conhecimento, Kant se contrapõe ao dogmatismo –
mas não ao procedimento dogmático. “A crítica não se opõe ao procedimento dogmático da razão
no seu conhecimento puro, enquanto ciência (pois esta é sempre dogmática, isto
é, estritamente demonstrativa, baseando-se em princípios a priori seguros),
mas sim ao dogmatismo, quer dizer, à
presunção de seguir por diante apenas com um conhecimento puro por conceitos
(conhecimento filosófico), apoiado em princípios, como os quais que a razão
desde há muito aplica, sem se informar, como e com que direito os alcançou. O
dogmatismo é, pois, o procedimento dogmático da razão sem uma crítica prévia da sua própria capacidade” (KrV, B, p. 30).
É dentro dessa perspectiva que se deve entender o
conceito de transcendental:
todo o conhecimento que, em geral, se ocupa não tanto com os objetos, mas com o
modo de conhecê-los, na medida em que esse conhecimento deva ser possível a priori (Cf KrV, B, p.53). Toda a
investigação kantiana é transcendental, no sentido de que a crítica tem, como
objeto, nossa faculdade cognoscitiva. O conceito transcendental, para
Kant, significa o modo de conhecer os objetos, enquanto possível a priori.
Esses modos são a sensibilidade e o entendimento, a que inerem estruturas a
priori próprias do sujeito e não do objeto. Sem elas, é impossível qualquer
experiência de qualquer objeto. Antes de Kant, a metafísica clássica denominava
de transcendental as condições do ser enquanto tal, ou seja, as condições sem
as quais o próprio objeto deixava de existir. Após Kant e a sua revolução
copernicana não é mais possível falar das condições do objeto em si, mas
somente das condições do objeto em relação ao sujeito. Com Kant, o
transcendental não está mais no objeto, mas no sujeito.
Analisando
a faculdade de conhecer, o filósofo afirma que, “se, porém, todo o nosso
conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que todo ele
derive da experiência” (KrV, B, p. 36). Ele distingue dois conhecimentos: o a priori (conhecimento da
razão que é puro, universal, necessário e independente da experiência) e o a
posteriori (conhecimento da experiência que é empírico, particular e
contingente). O que os distingue é a necessidade e a universalidade,
específicos do conhecimento a priori. Feita esta distinção, impõe-se
distinguir os juízos analíticos dos juízos sintéticos. Os analíticos são juízos
de elucidação; a conexão sujeito-predicado é pensada por identidade; são
universais, necessários e verdadeiros, mas não ampliam o conhecimento por serem
tautológicos. Os sintéticos são os juízos de ampliação; a conexão
sujeito-predicado é pensada sem identidade; são particulares, contingentes,
porém ampliam o conhecimento.
Originalmente,
Kant propõe uma nova classe de juízos: os sintéticos a priori. Estes são
o verdadeiro núcleo da Teoria do Conhecimento: são universais, necessários,
verdadeiros, ampliam e fazem prosperar o conhecimento. Conceitualmente, esses
juízos são possíveis. A questão é saber se essa possibilidade conceitual pode
realizar-se, isto é, se são possíveis os juízos sintéticos a priori e,
portanto, a ampliação do conhecimento anterior a toda experiência.
Em
torno dessa questão (de como são possíveis os juízos sintéticos a priori),
Kant estrutura a Crítica da Razão Pura. Na Estética Transcendental
procura responder como são possíveis os juízos sintéticos a priori na
matemática e investiga os princípios apriorísticos da Sensibilidade (Espaço e
Tempo). Na Analítica Transcendental procura responder como são possíveis os
juízos sintéticos a priori na ciência da natureza e investiga os
princípios apriorísticos do Entendimento (Categorias). E, na Dialética
Transcendental, investiga se são possíveis os juízos sintéticos a priori
na metafísica. Convém ratificar que, na metafísica, Kant indaga se são
possíveis os juízos sintéticos a priori e não como são possíveis,
pois esta ainda não havia se constituído como ciência, ao passo que a
matemática e a física, sim.
A
matemática e a física se constituíram ciência graças a uma inversão na maneira
de pensar: ao invés da faculdade de conhecer ser regulada pelos objetos, estes
são regulados por aquela. Isso se denomina revolução copernicana. Ela irá
questionar essa visão metafísica existente. Portanto, “aquele que primeiro
demonstrou o triângulo isósceles (fosse ele Tales ou como quer que se
chamasse) teve uma iluminação; descobriu que não tinha que seguir passo a passo
o que via na figura, nem o simples conceito que dela possuía, para conhecer, de
certa maneira, as suas propriedades; que antes deveria produzi-la, ou
construí-la, mediante o que pensava e o que representava a priori por
conceitos e que para conhecer, com certeza, uma coisa a priori nada
devia atribuir-lhe senão o que fosse consequência necessária do que nela tinha
posto, de acordo com o conceito” (KrV, B, p. 17).
Desse modo, a
ciência moderna torna-se, para Kant, uma espécie de ponto de partida para a
abordagem epistemológica, embora suas preocupações e interesses maiores sejam
metafísicos. Isso porque ele percebe que, desde as bases postas para a ciência,
por Copérnico, Galileu e Newton, na aurora da modernidade, o conhecimento
científico alcançou um tal progresso e riqueza de resultados que se tornou um
fato inegável. Por esse motivo, ele investiga o que caracteriza e o que
fundamenta a ciência. Para Kant, a ciência é constituída por leis, por juízos
sintéticos a priori, que, como foi visto, são universais e necessários e
propiciam um avanço no conhecimento.
Kant discorda tanto dos empiristas como
dos racionalistas acerca de sua concepção sobre ciência e conhecimento. Os
racionalistas sustentam que a ciência é constituída por juízos analíticos a
priori e os empiristas, por juízos sintéticos a posteriori. Kant conclui
que eles não estão certos devido à errônea concepção do conhecimento que eles
têm. A ciência, desta forma, é impossível, segundo Kant, pois o objeto fornece
somente a novidade e o sujeito fornece somente a universalidade. O conhecimento
não surge somente com o sujeito ou somente com o objeto, mas surge da junção
dos dois, ou seja, o conhecimento é o resultado de um elemento a priori
– sujeito -, e de um elemento a posteriori – objeto. Kant irá descobrir
os juízos sintéticos a priori. Portanto, em sua filosofia especulativa,
ele afirma que o conhecimento humano não é reprodução passiva de um objeto por
parte do sujeito, mas construção ativa do objeto por parte do sujeito. Isso o
leva a negar a possibilidade da metafísica como ciência.
Posto que o conhecimento
constitui-se da correlação sujeito-objeto e o objeto não fornece os elementos
essenciais para que se alcance o estágio científico, será necessário buscar o
elemento a priori (universalidade e necessidade), indispensável para que
haja lei e, portanto, ciência, no sujeito. “Se é o Sujeito quem determina as
possibilidades, sujeitos diferentes, nas mesmas circunstâncias, deverão chegar
aos mesmos resultados. Essa é a condição
para que haja juízo sintético a priori
- e Ciência” (WEBER, 1999, p.15). Desse modo,
constata-se que o fundamento dos juízos sintéticos a priori é o próprio
sujeito. Daí que se compreende a afirmação kantiana de que “só conhecemos a
priori das coisas o que nós mesmos nelas pomos” (KrV, B, p. 21).
Para que um estudo
se constitua como ciência é preciso que haja unanimidade entre os colaboradores
e que, por um caminho, se chegue a conclusões verdadeiras, isto é, que se
proceda conforme um plano, seguindo metas. Quando, constantemente, é preciso
voltar ao ponto de partida e tomar outro caminho ou quando se torna igualmente
impossível aos diversos colaboradores porem-se de acordo sobre a maneira como o
objetivo comum deve ser perseguido, então pode-se estar sempre convicto de que
um tal estudo acha-se, ainda, bem longe de ser tomado como caminho seguro de
uma ciência, constituindo-se antes num simples tatear. E é nesse estágio que a
metafísica – um conhecimento da razão inteiramente isolado e especulativo que
através de simples conceitos se eleva completamente acima do ensinamento da experiência
-, se encontra. “O destino não foi até hoje tão favorável, que permitisse
trilhar o caminho seguro da ciência à metafísica” (KrV, B, p.18). A razão
emperra continuamente na metafísica mesmo quando quer discernir a priori
aquelas leis que a experiência mais comum a confirma.
Na metafísica é
preciso retomar o caminho inúmeras vezes, porque se descobre que não leva aonde
se quer, e quanto à unanimidade de seus colaboradores isso está longe de
acontecer, pois não existe um consenso sobre o método. Por isso, não há dúvida
de que o procedimento da metafísica foi “um tateio apenas entre simples
conceitos” (KrV, B, p.19). Esse seu procedimento deve-se, talvez, ao fato dela
não ter deixado vir à mente essa questão (de como são possíveis os juízos
sintéticos a priori); ou, talvez, por nem ter feito a distinção entre
juízos analíticos e sintéticos. Só que a resposta a essa questão é de capital
importância, pois decide sobre a sua possibilidade como ciência. Desta forma, o
objetivo de Kant, a exemplo dos geômetras e os investigadores da natureza, é
tentar transformar o procedimento tradicional da metafísica no modo de encarar
suas relações com os objetos, comparável à de Copérnico. Ele afirma que, até
agora, se supôs que todo o nosso conhecimento tinha de ser regulado pelos
objetos. Porém, “tentemos, pois, uma vez, experimentar se não se resolverão
melhor as tarefas da metafísica, admitindo que os objetos se deveriam regular
pelo nosso conhecimento, o que assim já concorda melhor com o que desejamos, a
saber, a possibilidade de um conhecimento a priori desses objetos, que
estabeleça algo sobre eles antes de nos serem dados” (KrV, B, p. 20). Esse a
priori possibilita que emitamos juízos universais e necessários, exigência
para que um conjunto de conhecimento se torne ciência. Porém, como será visto, não poderá
ultrapassar os limites da experiência sensível, que é justamente a sua
ocupação.
A
filosofia deveria investigar a possível vigência de certos princípios a priori, que seriam responsáveis pela
síntese dos dados empíricos, ou seja, ela deveria investigar a sensibilidade e o entendimento. A sensibilidade é a faculdade das
intuições; por ela, os objetos nos são dados;
é formada pelo espaço (forma do sentido externo que fornece, por meio dos cinco
sentidos, as impressões acústicas, óticas, gustativas...) e pelo tempo
(pertence ao sentido interno com suas representações, inclinações e
sentimentos), que são as intuições puras, os princípios apriorísticos (Cf.
HÖFFE, 2005, p.71). Eles são, como assevera Weber, “a condição de possibilidade
de todo conhecimento humano” (WEBER, 1999, p.21). O
entendimento é a faculdade dos
conceitos; por ele os objetos são pensados;
é formado pelas categorias (leis/regras) pelas quais as intuições são
sintetizadas.
A
sensibilidade dá a matéria do conhecimento e o entendimento dá a forma. Assim,
conhecer é dar forma a uma matéria dada. É ligar representações em conceitos. O
resultado disso é que nosso conhecimento só se refere a fenômenos, pois só
conhecemos as coisas no espaço e no tempo. Todo objeto, para ser conhecido,
deve estar condicionado ao espaço e ao tempo, isto é, precisa afetar a
sensibilidade causando uma impressão sensível.
O entendimento age
sobre a sensibilidade e sintetiza as múltiplas intuições sensíveis.
Sensibilidade e entendimento são mutuamente independentes: “sem a
sensibilidade, nenhum objeto nos seria dado; sem o entendimento, nenhum seria
pensado. Pensamentos sem conteúdos são vazios; intuições sem conceitos são cegas”
(KrV, B, p. 89). O conhecimento pode surgir da reunião dos dois. O entendimento
e a sensibilidade, com suas formas a priori, são as condições de
possibilidade dos juízos sintéticos a priori, específicos da ciência. E
só podemos conhecer fenômenos (múltiplo) que adentram a sensibilidade em suas
formas puras de espaço e tempo; sobre esse conteúdo fenomênico é que o
entendimento aplica as suas categorias, obtendo a cada aplicação uma síntese.
O conhecimento, para Kant, é um todo unitário. Além da
formas apriorísticas da sensibilidade e do entendimento, deve haver uma outra
condição transcendental necessária, que é o eu transcendental – suprema
condição unificadora de toda a nossa experiência. A apercepção transcendental é
a consciência da identidade contínua do eu. No eu penso, o ser humano conhece a
si mesmo somente como ele lhe aparece e jamais como ele realmente é. E, desta
mesma forma, conhece todos os objetos – somente como fenômeno. Portanto,
conhecemos somente os fenômenos - objetos exteriores no uso empírico - e não os
númenos – objetos exteriores no sentido transcendental.
Kant irá distinguir os fenômenos (as coisas tais como
aparecem ao sujeito) e os númenos ou coisa-em-si (as coisas tais como são nelas
mesmas) afirmando que a coisa-em-si é inacessível à razão humana, ou seja, não
se pode conhecer e nem dizer a coisa-em-si. Só conhecemos as coisas que nos
aparecem, enquanto aplicamos nela as categorias a priori de nossa mente.
Conforme Hartnack, não podemos entender nada, não podemos formar conceito ou
pensamento senão através das categorias (Cf. HATTNACK, 1984, p.
100). É na Analítica Transcendental que o
filósofo irá mostrar a distinção entre o fenômeno e o númeno, tão relevantes
para a compreensão deste tema. O fenômeno é o objeto da intuição sensível. Ele
tem uma matéria e uma forma. A matéria nos é dada pelas sensações singulares e
pode existir apenas somente a posteriori. Já a forma vem do sujeito e é a
priori. É impossível captar o objeto como ele é em si, mas somente como ele
aparece para nós. O númeno é pensado pelo intelecto, não sendo objeto do
sentido. O conceito númeno é problemático, pois ele pode ser pensado, mas não
conhecido. Contudo, é um conceito necessário, a fim de que a intuição sensível
não se estenda até as coisas em si, e seja assim limitada a validade objetiva
do conhecimento sensível.
A razão, caracterizada como a
busca do incondicionado, ou seja, que tende a ir além do âmbito fenomênico, não
se contenta com as sínteses do entendimento, pois esse, de certo modo, é
formado por uma multiplicidade de sínteses. Ela exige a síntese suprema, a
máxima unidade que ponha termo à série das condições. As sínteses do
entendimento são o objeto da razão. Esta age sobre o entendimento, o que
resulta nas ideias transcendentais: Deus, liberdade e imortalidade – objetos da
metafísica. Essas ideias estão fora do espaço e do tempo: não existe um objeto
a elas correspondente no mundo sensível. Por isso, elas não afetam a
sensibilidade e, portanto, não podem ser conhecidas. Contudo, podem – e a razão
o exige -, ser pensadas.
A Analítica Transcendental apresenta as categorias e
os princípios sem os quais não pode haver conhecimento. A Dialética
Transcendental apresenta a ilusão da razão que pretende fazer um uso indevido
desse conhecimento a priori. Por isso, a Dialética põe fim na metafísica
tradicional. Hegel restitui a ideia de um ser supremo da posição que o projeto
crítico lhe havia retirado. Kant afirma que nos é vedado o conhecimento do
supra-sensível e essa é a tese do idealismo transcendental. O objeto de estudo no conflito da razão (paralogismos
e antinomias) restringe-se à Dialética Transcendental. Aqui Kant irá mostrar
que os argumentos que a razão utiliza para comprovar o valor objetivo,
transcendente e numênico das ideias, quando dizem respeito à alma e a Deus são
paralogismos e, portanto, errôneos; e quando dizem respeito aos argumentos que
se referem ao mundo são antinomias e, portanto, são inconcludentes.
Na Analítica, Kant ensina que o conhecimento
científico é fenomênico. A matemática e a física são ciências porque permanecem
no horizonte do fenômeno, isto é, do condicionado. Quando o intelecto se lança
para além dos fenômenos, ou seja, quando ele passa a tratar do númeno e não
mais do fenômeno, ele é razão. Ao tratar
da coisa-em-si, do incondicionado – entidade apenas pensável e não cognoscível
-, o intelecto cai em ilusões estruturais. Os erros que a razão cai quando ela
vai além da experiência não são voluntárias, mas involuntárias. A dialética
funciona como crítica dessas ilusões. Os conceitos puros da razão são as
ideias, assim como os conceitos puros do intelecto são as categorias.
Diferentemente de Platão, que afirmava que as ideias eram transcendentes em
relação à razão subjetiva, para Kant as ideias são os conceitos supremos da
razão. Há três ideias correspondendo aos três tipos de silogismos: silogismo
categórico corresponde à ideia psicológica – alma; silogismo hipotético
corresponde à ideia cosmológica – mundo como unidade metafísica; silogismo
disjuntivo corresponde à ideia teológica – Deus. O uso das ideias não é
constitutivo, como o têm as categorias, mas o uso regulativo, não alargando o
conhecimento dos fenômenos, mas o unificando.
Apesar de já ser denunciada, essa ilusão não
desaparece, pois é uma ilusão natural. O pensamento humano, na questão do conhecimento,
limita-se ao horizonte da experiência. Porém, a própria natureza do homem o faz
ir além da experiência. Mas ao fazer isso, o espírito humano cai em erro. Por
dialética, Kant entende o estudo crítico desses erros. A razão, sendo a
faculdade que faz com que o homem busque os fundamentos últimos e supremos, é a
faculdade da metafísica. A Dialética Transcendental estuda o funcionamento da
razão para determinar a possibilidade da metafísica. A atividade da razão
consiste em unificar, mediante o raciocínio, toda a experiência sob algumas
ideias fundamentais. Para provar o valor objetivo, transcendente e numênico das
ideias, a razão elaborou numerosos argumentos. Mas estes argumentos são todos
errôneos e inconcludentes. São errôneos os argumentos que dizem respeito à alma
e a Deus (paralogismos). São inconcludentes os argumentos que dizem respeito ao
mundo (antinomias).
A primeira ideia é a da alma. A psicologia racional
visa demonstrar a imortalidade da alma. Os erros transcendentais que a razão
cai ao tentar construir tal ciência são denominados de paralogismos. O ser
humano tem consciência de si como ser pensante, como fenômeno, mas não conhece
o substrato numênico de si mesmo, ou seja, o seu substrato ontológico.
A segunda ideia é a do cosmo. A razão,
ao querer passar de considerações fenomênicas do mundo para considerações
numênicas, acaba caindo em certas antinomias, em que teses e antíteses acabam
se anulando. Porém, tanto a tese como a antítese são defensáveis em nível de
pura razão e nenhuma pode ser confirmada ou desmentida pela experiência. Os
argumentos que a razão utiliza para determinar a origem do mundo e a sua
natureza são inconcludentes. Existem bons argumentos tanto a favor como contra
acerca da tese da origem do mundo no tempo.
Existem quatro antinomias que correspondem aos
seguintes quatro modos: quantidade, qualidade, relação e medida. Nas
antinomias, a tese é afirmativa e a antítese nega a tese. A tese da primeira
antinomia diz: “o mundo tem um início e, além disso, no que se refere ao
espaço, é fechado dentro de limites”. A sua antítese diz: “o mundo não tem
início nem limites espaciais, mas tanto em relação ao tempo como em relação ao
espaço, é infinito”. A tese da segunda antinomia diz: “toda substância composta
que se encontra no mundo consta de partes simples, e não existe em nenhum lugar
a não ser o simples, ou aquilo que dele é composto”. Sua antítese afirma:
“nenhuma coisa composta que se encontra no mundo consta de partes simples; e
nele não existe, em nenhum lugar, nada de simples”. A tese da terceira
antinomia diz: “a causalidade segundo as leis da natureza não é a única da qual
possam ter derivado todos os fenômenos do mundo; é necessário admitir, para a
explicação deles, também uma causalidade livre”. Sua antítese diz: “não existe
nenhuma liberdade, mas tudo no mundo acontece unicamente segundo leis da
natureza”. A quarta e última tese antinômica diz: “no mundo existe algo que, ou
como sua parte ou como sua causa é um ser absolutamente necessário”. Sua
antítese diz: “em nenhum lugar, nem no mundo, nem fora do mundo, existe um ser
absolutamente necessário, causa do próprio mundo”. Essas antinomias são
insolúveis, pois quando a razão está além da experiência não há em que se
ancorar e acaba oscilando da tese para a antítese e vive-versa. Esses
argumentos são inconcludentes, porque partem do falso pressuposto de que se
possa afirmar ou negar alguma coisa do mundo em si mesmo. Este é o pressuposto
do qual partem os racionalistas e os empiristas. Os argumentos da tese são os
dos racionalistas, que, julgando as formas a priori ideias inatas da
coisa em si, se consideram capazes de responder a origem e a natureza do mundo.
Os argumentos da antítese são dos empiristas, que por meio da experiência dizem
que é impossível conhecer a origem e a natureza do mundo (Cf. REALE e ANTISERI,
2005, p.372).
A terceira ideia é a de Deus. Os argumentos que a
razão utiliza para provar a existência de Deus são errôneos. Essa ideia foi
tratada desde a Antiguidade e dessa discussão surgiram três caminhos que buscam
explicar a existência de Deus. Ei-los: i) a prova ontológica, que parte do puro
conceito de Deus como perfeição absoluta para daí deduzir a sua existência.
Anselmo, Descartes e Leibniz formularam essa prova; ii) a prova cosmológica,
que parte da experiência e infere Deus como causa, ou seja, da contingência do
mundo demonstra-se a existência do ser necessário; iii) a terceira prova é a
teleológica, que partindo da ordem e da harmonia do mundo afirma a existência
de Deus como mente ordenadora (Cf. REALE e ANTISERI, 2005, p. 372).
As últimas duas provas, a cosmológica e a teleológica,
supõem a primeira prova, a ontológica. Já que a prova ontológica não procede,
as duas primeiras provas também não procedem. Também, a existência não é um
predicado contido no conceito da essência de nenhum sujeito (nem do ser
absoluto); ele deve ser acrescentado sinteticamente. Conforme Hegel, o ser perfeito
não pode ser somente uma representação. O perfeito é o que não é simplesmente
representado, mas também o que é efetivo. A crítica de Hegel à prova ontológica
da existência de Deus, a qual permaneceria presa a filosofia do entendimento só
pode ser esclarecida com o auxílio da Doutrina do Conceito, onde é mostrado a
relação entre o conceito – que deixa de ter o aspecto formal e vazio da
representação – e a Idéia Absoluta.
A filosofia do
entendimento não consegue passar do condicionado para o incondicionado. A prova cosmológica também está repleta de erros
transcendentais. Kant a nega afirmando que não é possível encontrar o princípio
do contingente fora do mundo sensível e uma vez que se chega ao Ser necessário
como condição do contingente, fica por provar a sua existência real, que não
pode ser extraída analiticamente. A crítica hegeliana da visão de Kant acerca
da prova cosmológica diz que Kant se apoiaria numa falsa exterioridade entre o
finito e Deus e essas duas determinações formam, uma relativamente à outra, uma
relação exterior, finita. Hegel salienta que se não se compreende a verdadeira
relação entre o finito e o infinito se permanecerá naquilo que se chama de uma
relação de exterioridade, que será desenvolvido pela filosofia do entendimento.
Da mesma forma que a prova ontológica, a prova teleológica é desmascarada. Essa
crítica de Hegel a Kant fica mais clara na prova teleológica. Hegel não
concorda com esta prova, que diz que a harmonia do mundo natural só pode ser
explicada pela existência de Deus. Tendo como ponto de partido o mundo natural
não dá para extrair disso a existência de Deus. “A intenção hegeliana é mostrar
que, da harmonia natural, pode-se chegar a uma atividade vital infinita e
eterna (nas palavras de Platão, a um Zoon imortal), mas não a Deus, pois
Deus é mais do que a harmonia imanente ao mundo natural” (BORGES, 1998, p. 114).
Kant
conclui que as ideias da alma, do mundo e de Deus não tem valor constitutivo,
pois são formas que não tem conteúdo. Essas ideias representam um ideal
inatingível da razão especulativa. Essas ideias são coisas-em-si; portanto, são
incognoscíveis. A metafísica como conhecimento da coisa-em-si é impossível; ela
somente é possível como estudo das formas a priori da razão. Portanto, é
impossível a metafísica como ciência. Prova disso vem com a dialética que
mostra os erros que a razão cai ao tentar fazer metafísica. E as ideias (de
alma, de mundo e de Deus), também são erros transcendentais? Kant responde essa
pergunta afirmando que as ideias não são ilusões. As ideias não têm uso
constitutivo como o têm as categorias, mas têm uso regulativo, unificando o
conhecimento. Desta forma, o númeno é indiscutivelmente incognoscível, mas é
possível a sua pensabilidade e a sua possibilidade. Portanto, já que através da
ciência não é possível atingir o númeno, esse pode ser atingido por meio da
ética. Com Kant, surge uma metafísica renovada.
Embora
a metafísica efetue a revolução em sua maneira de pensar, ela não consegue
ultrapassar os limites da experiência sensível. Seus objetos não são
conhecidos, mas apenas pensados, pois se situam acima do espaço e do tempo.
Desta maneira, a metafísica não é possível como ciência. Terá de ser enquadrada
noutra dimensão que não seja a da razão pura especulativa: na razão pura
prática. Ela será o fundamento da moral. Razão pura prática e razão pura
especulativa/teórica são uma e mesma razão, porém, com uma dupla
aplicação/dimensão. O que possuem em comum é o a priori. O que as difere
é a aplicação. Cada uma representa um modo pelo qual o conhecimento da razão se
dirige ao objeto: i) para determiná-lo e conceituá-lo: conhecimento da razão
especulativa; ii) para torná-lo real: conhecimento da razão prática. A razão
especulativa diz o que é; determina a possibilidade do conhecimento; ocupa-se
com o campo sensível/fenomênico. A razão prática diz o que deve ser; determina a
priori a vontade do sujeito agente, por meio do imperativo categórico, para
que seus atos tenham valor em si; ocupa-se com o campo supra-sensível/numênico,
que não pode ser conhecido, apenas pensado. Juntas, compõem a Filosofia
Transcendental. Conforme Luft, “se a Metafísica tradicional estava ancorada
sobretudo em uma teoria do ser considerado como autônomo com relação ao sujeito
cognoscente – uma Metafísica Realista, portanto -, a Nova Metafísica tem na
subjetividade sua base última e no Idealismo a posição filosófica
correspondente” (LUFT, 2001, p. 77).
A
sua conclusão é de que a metafísica está inviabilizada como ciência. Ou seja,
embora a metafísica efetue a revolução na maneira de pensar, proposta por Kant,
tendo assegurado a possibilidade do conhecimento a priori, ela não
poderá ultrapassar os limites da experiência sensível. Seus objetos residem
acima da experiência sensível, isto é, fora do espaço e do tempo e, por esse
motivo, não são possíveis de serem conhecidos – apenas pensados.
Consequentemente, os juízos sintéticos a priori não são possíveis
na metafísica. Logo, ela não é possível como ciência.
BORGES, Maria de Lourdes Alves. História
e Metafísica em Hegel. Porto Alegre: Edipucrs, 1998.
HARTNACK, Justus. La teoria
del conocimiento de Kant. Madrid: Ediciones Cátedra, 1984.
HÖFFE, O. Immanuel Kant. Trad. Christian
Viktor Hamm, Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
KANT, I. Crítica da razão pura. Trad. de Manuela Pinto dos Santos e
Alexandre Fradique Morujão. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1985.
LUFT, Eduardo. As sementes da
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Paulo: Mandarim, 2001.
REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario. História
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WEBER, Thadeu. Ética e filosofia política: Hegel e o
formalismo kantiano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.