quarta-feira, 22 de maio de 2013

VIA DA CURA E DA EXPIAÇÃO

Afinal, os crimes devem ser punidos? Há uma base moral para a punição? Se alguém comete um delito, um crime, ele deve sofrer uma punição por aquilo que cometeu? E qual é a justificativa da punição? Moralmente, o castigo é problemático, pois castigar alguém (provocar deliberadamente dor ou sofrimento físico ou mental) necessita de uma boa justificação. Dor e sofrimento através de torturas – na maioria das vezes - são características da pena quando o direito era privado (e não público).  E, a partir do direito público, qual é a justificativa da punição, do castigo?
Há duas teorias na filosofia hegeliana que justificam a punição: a via da expiação e a via da cura. A teoria da expiação (a responsabilidade do crime é do criminoso) parte do agente da punição. A questão central nesta via é o dever, as regras. Punir é condenar através de um sofrimento compensatório. Hegel, nesta via retributivista, difere da filosofia utilitarista e da forma retributivista apresentada por Kant. Já a teoria da cura (a punição é um direito do criminoso) parte do paciente da punição. O castigo é visto como gerador de sofrimento e o dever é apenas um aspecto secundário. O delinquente está doente e precisa ser curado. Nesta via, pode-se verificar a presença do mundo invertido. Considerar o mundo em si como uma inversão do mundo enquanto fenômeno é característica do entendimento. “Em verdade, não se trata da oposição entre dois mundos. Ao contrário, é o ‘mundo verdadeiro, suprassensível’, que possui os dois lados em si, que se divide no oposto e que, com isso, relaciona-se consigo”. (GADAMER, 2012, p. 65). Ambas as vias (expiação e cura) são adotadas por Hegel em sua dialética do crime e castigo na obra Princípios da Filosofia do Direito. Portanto, o castigo tem tanto a função da expiação como a função da cura.
            O direito penal, terceiro momento do direito abstrato, resulta da quebra do contrato entre os proprietários. Quando isso ocorre há as formas da injustiça e da punição. Há três formas de delito: o dano, a fraude e o crime. O dano é uma injustiça não maldosa, não intencional. Ele não atinge o conceito de direito, pois a disputa ocorre entre diferentes vontades em relação a propriedade (objeto) e não em relação ao direito. Por isso, não há punição para esse tipo de injustiça. Se o caso é em torno da disputa de bens, ocorre a restituição da posse e não a punição, pois o autor não desrespeita a lei, mas equivoca-se no caso particular. Na fraude, o delinquente não respeita o direito, mas mantém a aparência do direito; a punição seria apropriada, mas ela só passa a ser introduzida no crime. O crime é o querer ser injusto; tanto o direito quanto a aparência do direito não são respeitados; a punição, neste caso, é apropriada. O direito penal é a transição do direito abstrato para a moralidade. Tomando o direito abstrato isoladamente, característica do entendimento, pode-se cair em erro de precipitação. Entre essas duas esferas há um ponto em comum: a responsabilidade (jurídica e moral). Ao tratar da punição se faz necessário destacar que a efetivação do direito se dá através do conceito de vontade do Espírito Objetivo. Compreender o Espírito Objetivo é necessário para compreender o direito, em Hegel.
            O direito não está fundamentado na prerrogativa da punição. O direito não é um conjunto de normas prescritas externas aos indivíduos tomados isoladamente e esses devendo obedecer a essas normas de forma irrefletida. Essa é a visão contratualista criticada por Hegel. O direito não é apenas uma mera aplicação de normas exteriores. A totalidade ética é fornecida pelo Espírito Objetivo. Somente compreendendo a totalidade ética é possível entender o sentido de pena em Hegel. A ideia jusnaturalista acerca do direito é infundada. Não se pode pensar um conjunto de normas para um aglomerado de indivíduos, considerando, desta forma, o direito como algo externo aos indivíduos. Segundo Hegel,

A pena com que se aflige o criminoso não é apenas justa em si; justa que é, é também o ser em si da vontade do criminoso, uma maneira da sua liberdade existir, o seu direito. E é preciso acrescentar que, em relação ao próprio criminoso, constitui ela um direito, está já implicada na sua vontade existente, no seu ato. Porque vem de um ser da razão, este ato implica a universalidade que por si mesmo o criminoso reconheceu e à qual se deve submeter como ao seu próprio direito. (Rph, § 100).

A via da cura ressalta que a punição é um direito do criminoso. Essa via foi apresentado primeiramente por Platão, no Górgias. Atribuir o sentido da cura à punição é considerar o criminoso um infeliz, um doente que tem a possibilidade de curar-se. A punição torna o criminoso mais justo e cura-o do mal. Logo, a punição como cura consiste num tratamento: se passaria de um estado doentio para um estado saudável. O criminoso está passando por um mal espiritual e a punição servirá para libertá-lo dessa infelicidade.  O objetivo do castigo é facilitar a redenção do criminoso, permitindo um despertar espiritual e moral. Um exemplo disso é do remorso de Raskolnikov, na obra Crime e Castigo, de Dostoievski.
O mundo invertido[1], tratado por Hegel na obra Fenomenologia do Espírito, na discussão sobre Força e Entendimento, pode ser entendido também na dialética do crime e castigo, nos Princípios da Filosofia do Direito. O castigo, aparentemente, serve para fazer com que o autor do crime sofra com as consequências de seu ato. Porém, o que ocorre é a inversão do delito, havendo, assim, a reconciliação da lei com o crime. O castigo não aniquila e humilha o criminoso, mas o restaura consigo mesmo. O castigo eleva o mundo abstrato do entendimento (ser em-si) à sua reconciliação. A lei imediata da vingança satisfaz a vontade do sujeito que sofreu um ato injusto. A vingança tem como objetivo recompor a essência perante a ofensa. Contudo, ao se expor, ela acaba sendo um segundo crime, ou seja, a vingança pertence ao mundo invertido, que, ao querer se vingar, acaba realizando um novo crime. Conforme Santos,

no mundo imediato da vingança, a justiça ainda não alcançou a universalidade da lei, por isso se diz que a justiça muda de lado tão logo efetivada, porque ela é sempre um particular que se transforma imediatamente em seu inverso, o crime, numa sucessão infinita de inversões, segundo a fórmula da má infinitude. [...] A lei pune, mas não vinga. A punição da lei reconcilia o criminoso consigo mesmo e tem o poder de restituir-lhe a honra, que se perdera na particularidade do crime. Só o universal traz a justiça e a salvação. (2007, p. 171).

O castigo não é uma mera vingança contra o malfeitor, mas é uma justiça. Castigar significa anular um mal causado e restabelecer a ordem jurídica. Se a lei não visa esse objetivo, ela é injusta. Hegel, nos Princípios, diz que a pena tem como função restabelecer a ordem transgredida do direito (retributivismo) e recuperar a honra do criminoso. Também na obra Filosofia Real, no capítulo Crime e castigo, há essas características para a pena. Segundo Hegel, “o delito é a coerção do direito”. (1984, p. 191). Na efetivação da liberdade, que se inicia no direito abstrato, Hegel deixa claro que i) a responsabilidade pelo crime é do criminoso, ou seja, a vontade criminosa é auto-destrutiva e essa é a função de expiação da punição e ii) a punição é um direito do criminoso e essa é a função da cura da punição. O retributivismo é a imposição da pena pelo mal do crime. Segundo Kant, a pena é uma necessidade ética (imperativo categórico). Para Hegel, a pena é uma necessidade lógica (negaça do crime e afirmação da pena).
Há também a explicação utilitarista acerca da função da pena. Os utilitaristas preocupam-se com a finalidade da pena. Já os retributivistas preocupam-se com a fundamentação do dever da pena. Nietzsche diz que a função da pena é a seguinte:

educar (aperfeiçoamento da memória), inspirar temor nas massas, escarnecer de um inimigo derrotado, exigir compensação pela promessa quebrada, isolar elementos perturbadores da sociedade, eliminar pessoas degeneradas, exercer vingança contra um inimigo, despertar um senso de remorso nos infratores da lei e restabelecer uma equivalência moral. (NIETZSCHE in INGRAM, 2010, p. 139).

O último propósito dito por Nietzsche ressalta que a pena resulta em consequências sociais boas. E essa posição é defendida pelo utilitarismo. Segundo o utilitarismo, a punição visa restabelecer o que havia sido violado. Alguém que rouba ou mata, ao ser capturado, deve ser punido pelo que fez. O castigo desempenha um papel central na organização da sociedade. As relações entre os homens se dão por meio de regras. Sem elas, não haveria uma organização saudável. O castigo tem esse papel de organização, pois quem não segue as regras sofre um castigo. O utilitarismo de Jeremy Bentham ressalta que o castigo é útil, pois produz um maior prazer ao maior número de pessoas. “A razão por que devemos infringir esse ‘mal’ aos criminosos condenados não é porque o merecem, mas porque isso evita um mal maior: o crime”. (INGRAM, 2010, p. 140). “A pena é um meio geral, efetivo e indispensável para alcançar certas metas sociais necessárias”. (INGRAM, 2010, p. 139). Hegel é claro ao criticar o utilitarismo quando diz que “justificar a pena desse modo (como condicionamento comportamental) é como erguer uma vareta para um cão; significa tratar o ser humano como um cachorro em vez de respeitar sua honra e sua liberdade”. (INGRAM, 2010, p. 144). Outra função consequencialista da pena é a dissuasão do comportamento do criminoso pelo medo da punição. A prevenção do crime, segundo a teoria da dissuasão, é o principal propósito da pena. É comum o pensamento de que penas dissuade do crime e, se a pena for mais dura, dissuade ainda mais. Porém, essa ideia não é verdadeira. Isso pode ser verificado no Relatório do Painel do Conselho Nacional de Pesquisa dos Estados Unidos da pesquisa sobre efeitos dissuasórios e incapacitantes, de 1978, que

observa que a pena não parece ter um impacto nas taxas de reincidência de antigos condenados, taxas que se presumem estarem inversamente relacionadas às taxas de reabilitação e de dissuasão. Embora os estudos mostram que para alguns crimes, tais como pequenos furtos em lojas, tem algum efeito dissuasivo acusar formalmente seus autores (além de serem apanhados e interrogados), o efeito dissuasivo da pena sobre criminosos potenciais não pode ser definitivamente estabelecido. Alguns estudos mostram que crescimentos significativos na severidade da pena [...] para certos crimes estão correlacionados à diminuição na incidência desses crimes. [...] No entanto, isso não vale para todos os crimes. Por exemplo, as taxas de homicídio parecem não ser afetadas por aumento da pena máxima de prisão perpétua para morte. (INGRAM, 2010, p. 141-2).

Retributivismo e justiça estão fortemente relacionados na cultura ocidental. Segundo Ferraz Júnior, o “estudo dos modelos retributivos, a começar pela famosa regra de Talião, está na base da discussão da própria justiça”. (1998, p. 369). O retributivismo denota a preservação e a afirmação de um poder constituído e a reparação equitativa do dano visando uma compensação justa. (cf. MARQUES in TRAVESSONI et al., 2011, p. 367). A balança e a espada, na simbologia jurídica, demonstram a relação entre essas duas vertentes retributivistas. Busca-se, através da balança, a justa compensação, a proporcionalidade. A função da proporcionalidade é afastar o ímpeto da vingança. O que se quer, com ela, é uma equivalência à lesão. E, através da espada, se almeja o poder de uma ordem hierárquica, seja ela dada através de uma religião, de um rei, de uma divindade ou de um Estado secular. Conforme Ferraz Júnior, “no Prólogo do Código de Hamurabi está dito que o rei está ali para que o forte não esmague o fraco”. (1998, p. 374). Em Aristóteles[2] percebem-se as duas funções do retributivismo (preservação do poder e reparação equitativa do dano).
Segundo Merle, a lei de talião foi importantíssima para a Idade Antiga e Medieval. Já na Idade Moderna predominou a pena como exemplo, ou seja, o criminoso é punido para servir de exemplo aos demais cidadãos não praticarem crimes. (cf. MERLE in TRAVESSONI, 2011, p. 305-6). A famosa Lei de Talião (olho por olho, dente por dente) é apresentada hoje como sendo uma forma cruel de vingança não caracterizada por uma punição justa. Todavia, essa Lei, além de ser caracterizada por esse viés de vingança, é caracterizada também pelo equilíbrio entre crime e punição. A punição, entendida como sendo a negação do crime, em sua justa medida é a tese retributivista hegeliana. “Olho por olho...” denota a busca pela medida justa, pelo equilíbrio. A teoria utilitarista afirma que a punição visa uma teleologia em busca de um bem maior.
No crime, nem o direito em si e nem a maneira como ele aparece são respeitadas, ou seja, tanto o aspecto subjetivo como o aspecto objetivo são desrespeitados. Portanto, o crime constitui uma coação. O crime é uma coação de algo que o direito protege e garante. A vontade dessa relação é submetida a uma coação através do sacrifício, do sofrimento, da perda ou do dano. A vontade livre não pode ser coagida. A vontade externalizada e inviolável é violável. Essas afirmações devem ser entendidas sabendo que Hegel está falando de duas formas de vontade: em relação ao direito de propriedade e em relação ao Espírito Objetivo. Somente assim é possível compreender o que o autor quer dizer com a afirmação de que a coação, tomada em seu conceito, é nula em si mesma e isso é possível porque a nulidade determina uma segunda coação. Em suma, o criminoso coage a vítima, mas o aparato jurídico que protege a vítima é inviolável; a vontade do criminoso é nula e a coação da vontade do criminoso é necessária. Essa descrição do crime é problemática. Como compreender que a vontade do criminoso é nula e que a coação constitui uma necessidade jurídica? Hegel compreende a coação como sendo uma subjugação (bezwungen). Conforme Wood,

o intento retributivista da teoria hegeliana é claro o bastante, mas seu ponto central é ocultado em metáforas obscuras. O que significa dizer que o crime ‘é nulo em si mesmo’? Como essa ‘nulidade’ exige a punição como sua própria manifestação? [...] O central da teoria hegeliana da pena é a exigência desconcertante de que o ato criminoso é ‘nulo em si mesmo’. (1990, p. 109 e 112).

A nulidade do crime somente é compreendida entendendo a outra forma de coação, a saber, a subjugação. Com ela, a vontade criminosa tem um caráter nulo e autodestrutivo. Essa ideia é apresentada por Hegel da seguinte forma:

Violar um contrato não cumprindo o que se estipulou, ou faltar aos deveres jurídicos para com a família e o Estado, por meio de uma ação ou de uma omissão, constitui uma primeira violência ou pelo menos um abuso de força, pois desvio ou retiro de alguém uma propriedade que é sua ou que lhe devo. A coação pedagógica ou coação exercida contra a selvageria e a ferocidade aparece sem dúvida como a primeira e não é precedida de nenhuma outra. Mas a pura vontade natural é em si mesma violência contra a ideia da liberdade que é em si existente e deve ser defendida de uma tal vontade sem cultura: ou o ser moral já possui uma existência na família e no Estado, e esta pura natureza constitui então uma atividade violenta contra ele, ou só o Estado de natureza existe, estado de violência absoluta perante o qual a ideia ergue um direito heróico. (Rph, § 93).

Com esse trecho da obra de Hegel fica tácita a via retributivista da punição. O homem visto empiricamente pode ser subjugado. A vontade livre somente é coagida se ela não se retirar da exterioridade. Só há a primeira coação se há a exterioridade da vontade livre. No crime há a violação do direito enquanto direito. Assim, o direito é externo e antecedente a vontade particular. A segunda coerção é a afirmação da subjugação do direito abstrato. Mesmo havendo um direito abstrato, positivo e autorizado continua existindo a vontade particular através dos homens tomados empiricamente, que continuam desejando. A punição é a nulidade da vontade. Isso não significa que a violência é irreal, mas que ela é nula. Rosenfield destaca que

no momento de julgar um crime, que se tome em consideração a complexidade de sua estrutura. A pena infligida ao criminoso revela o interesse que tem uma sociedade, não tanto na existência empírica do crime, como na sua razão de ser. Portanto, o julgamento deve ao mesmo tempo mostrar o caráter vão de qualquer ação criminosa e, por meio da pena (Hegel, 1967ª, § 96 e Obs.), trazer esse ato às suas justas proporções. Pode-se, então, perguntar se a totalidade da pessoa foi prejudicada (a escravidão, a coerção religiosa, moral, etc.) ou somente uma das suas partes, isto é, torna-se necessário saber se a indenização mediante o valor pode ter lugar no caso em questão. A universalidade quantitativa do valor utilizado por Hegel (1967ª, § 98, Obs.) num sentido próximo ao da consideração aristotélica da ‘justiça distributiva’ (Aristote, 1970, 1, 119b 26) é uma determinação da universalidade do direito à medida que o prejuízo pode ser indenizado por uma universalidade característica da relação entre as coisas. (1995, p. 101).

Ao ressaltar que o crime é responsabilidade do criminoso, Hegel não está preocupado com a prevenção do crime (conforme o utilitarismo) e também não o considera um mal. O objetivo da punição é da própria justeza do direito positivo vigente. Essa é a posição retributivista hegeliana.

A violação é, para a vontade particular da vítima e dos outros, algo de negativo. A violação só tem existência positiva como vontade particular do criminoso. Lesar esta vontade como vontade existente é suprimir o crime, que, de outro modo, continuaria a apresentar-se como válido, e é também a restauração do direito. (Rph, § 99).

Hegel, ao criticar “a legislação draconiana que pune todos os crimes com a morte e a ferocidade da honra formal” (Rph, § 96) quer ressaltar que a punição via a expiação não é um mal, mas apenas uma prerrogativa normativa para a realização da justiça. Hegel não aceita como justificativa da punição apenas o argumento retributivista kantiano, que diz que mesmo se a sociedade se dissolvesse, o último criminoso sobre a terra deveria ser condenado. Segundo Hegel, essa seria mais uma das consequências medonhas do formalismo kantiano. Hegel, também, não aceita a pena de morte devido o criminoso ser portador do direito de personalidade, que é um direito inalienável. Isso somente é possível em estado de guerra.
Kant, na Doutrina do Direito, rejeita finalidades para a pena. Com isso, ele critica o utilitarismo. Segundo o filósofo, a pena deve valer como fim em si mesmo (imperativo categórico). Kant e Hegel fundam o retributivismo na razão. Para eles, a função retributivista da pena é a própria realização da justiça, que restabelece a ordem jurídica danificada pelo crime. Conforme Hegel,

Os seres humanos satisfazem o seu destino moral único enquanto agentes livres e responsáveis apenas na medida em que pautam seus comportamentos por leis universais da razão, que impõe obrigações absolutas a cada um de respeitar os direitos básicos de todos os demais. Quando criminosos rompem com a lei, estão agindo irracionalmente, excluindo-se das próprias condições que sabem ser necessárias para sua liberdade e seu respeito próprio. O criminoso que rouba outra pessoa não pode consistentemente que outros venham a roubar dele, porque isso violaria sua própria liberdade e sua dignidade, portanto, ao romper com a lei, ele está agindo contra o seu interesse racional próprio. Nesse sentido, o criminoso quer a sua própria punição, não como um parasita social, mas como um membro racional da sociedade humana. (INGRAM, 2010, p. 148).

A linha utilitarista preocupa-se principalmente com a finalidade da aplicação da punição. Assim, o sofrimento é mais importante que o dever. A linha retributivista preocupa-se com a fundamentação do dever de punir. Desta forma, o dever é mais importante que o sofrimento. Destarte, a punição pode ser explicada a partir do objetivo da cura ou da expiação. A punição caracterizada pela cura visa uma melhora do criminoso. Já a punição caracterizada pela expiação visa gerar um sofrimento compensatório no criminoso. Hegel ressalta que a punição tem tanto o objetivo de curar como o de expiar.
            Para Hegel, a dialética do crime e do castigo não é uma questão de bem e de mal (ou seja, o crime considerado como um mal e a punição como um bem). O mal não se caracteriza apenas pelo crime, sendo apenas uma forma do mesmo. Portanto, não pode se generalizar que o mal é o crime. O debate em torno da justiça é objetivo. Levar em conta o bem e o mal é deixar como primeiro plano na discussão a subjetividade do criminoso. A objetivação do bem e do mal, nesse caso, se dá através do direito. Assim, o crime é a negação do direito e o castigo é a negação da negação do direito.
A pena, no pensamento hegeliano, sendo a negação da negação do Direito, simboliza que a base para a aplicação da pena é jurídica, pois ela visa restabelecer a ordem jurídica e a vontade geral que foi negada pela vontade do delinquente. A vontade geral foi negada pela vontade particular (do delinquente). Logo, deve-se negar esta negação por meio da punição. Assim, surge uma nova afirmação da vontade geral. “A pena vem, assim, retribuir ao delinquente pelo fato praticado, e de acordo com o quantum ou intensidade da nova negação que é a pena”. (BITENCOURT, 2007, p. 86). O Direito é a expressão da vontade geral (vontade racional). O delito é a negação do direito, ou seja, o delito é a manifestação de uma vontade irracional (vontade particular). A dialética é tácita aqui: a tese é a vontade geral; a antítese é o delito da vontade particular; a síntese é a negação da negação que ocorre através da pena, restabelecendo o direito e a vontade geral. A função da pena é restabelecer a ordem transgredida pelo criminoso. Porém, isso não significa que a pena é um mal que surgiu para sanar outro mal anterior praticado pelo delinquente. A pena é o restabelecimento da ordem do direito. Além disso, com a pena o criminoso é tratado como um ser racional e livre. Ou seja, através dela ele pode recuperar a sua honra (via da cura).
Na obra Princípios da Filosofia do Direito, Hegel responde acerca das dificuldades tanto na via da cura como na via da expiação. Para atingir esses objetivos, é necessária a compreensão da vida social, do direito e do Estado em Hegel. Faz-se importante entender a crítica de Hegel ao contratualismo atomista. Na efetivação da liberdade, que se inicia no Direito Abstrato, Hegel trata do crime e castigo e deixa claro que i) a responsabilidade pelo crime é do criminoso e que ii) a punição é um direito dele. Explicitando melhor esses dois pontos: i) a vontade criminosa é autodestrutiva. Para entender isso deve-se saber que o caráter moralmente efetivo do direito positivo. Sendo auto-contraditório, a punição deve ter a função de expiação; ii) a punição é um direito do criminoso ressalta a função da cura da punição. A punição tem duas funções, segundo Hegel: de expiação (a responsabilidade do crime é do criminoso) e de cura (a punição é um direito do criminoso). O retributivismo é a imposição da pena pelo mal do crime. Segundo Kant, a pena é uma necessidade ética (imperativo categórico) e, para Hegel, uma necessidade lógica (negaça do crime e afirmação da pena).



[1] Um exemplo dessa crítica é encontrada no capítulo Força e entendimento, na obra Fenomenologia do Espírito. Aquilo que a percepção não conseguia captar, a saber, a unidade da coisa e na diversidade de suas propriedades, a passagem do uno ao múltiplo, do interior ao exterior é explicado a partir da noção de força. A força somente tem realidade através do seu outro. Assim, o entendimento descobre o interior das coisas - a coisa-em-si em oposição ao fenômeno (dualismo kantiano). Para Hegel, não há este dualismo. Se a explicação do fenômeno é concebida através do entendimento (primeiro momento do lógico) ocorre o surgimento da tautologia e, consequentemente, do mundo invertido. A forma como o entendimento explica o fenômeno é passando do fenômeno para a lei e, de abstração em abstração, pode-se concentrar a diversidade de leis em uma única lei. Essa é a verdade para o entendimento. Porém, a lei se torna abstrata e superficial. O terreno das leis é o supra-sensível, ou seja, acaba ocorrendo uma duplicação do mundo sensível. A tautologia (explicar o objeto pelo objeto) é perturbante para o entendimento, pois isso demonstra que ele não é capaz de entender o movimento (constituinte da força). As oposições que o entendimento pensava dominar através das leis (supra-sensível) acabam ressurgindo. Surge, assim, o mundo invertido (segundo mundo supra-sensível), oposto ao mundo contemplado. O primeiro mundo supra-sensível é o mundo das leis. O segundo mundo supra-sensível é o mundo invertido e nele tudo fica oposto do que é. Exemplos do mundo invertido podem ser encontrados nos fenômenos físicos - pólos iguais se repelem e pólos contrários se atraem – e nas relações ética - o delinquente, ao ofender alguém, tendo como objetivo afirmar o seu próprio arbítrio, acaba por perder o arbítrio devido a pena que lhe é cabível; não obstante, é a própria pena que permite ao delinquente reconquistar a honra que ele havia perdido. A coisa é igual em si na absoluta desigualdade. Estes mundos (mundo contemplado e mundo invertido), na verdade, são o mesmo mundo. O mundo invertido não passa de um caso extremo da unilateralidade do entendimento. A verdadeira explicação do fenômeno se dá através da razão e ela não gera dualismos. Gadamer ressalta que é impossível compreender o início da Fenomenologia do Espírito sem compreender a filosofia kantiana (cf. 2012, p. 47). A crítica realizada ao idealismo subjetivo na Fenomenologia do Espírito é a crítica de Hegel a filosofia transcendental de Kant.

[2] De acordo com Aristóteles, todos estão em perfeito acordo em chamar justiça à disposição da alma graças à qual as pessoas se dispõem a fazer o que é justo, a agir justamente e a desejar o que é justo. O mesmo deve ser dito da injustiça, que nos faz cometer e querer atos injustos. A justiça, segundo o filósofo, é considerada a maior das virtudes. Ela é perfeita porque as pessoas que possuem o sentimento de justiça podem praticá-la não somente em relação a si mesmas como também em relação ao próximo. Somente a justiça é o bem do outro. A única diferença entre excelência moral e justiça está em suas essências: a justiça, praticada em relação ao próximo, quando é irrestrita é a excelência moral. Porém, quando a justiça é uma parte da excelência moral, denomina-se justiça no sentido restrito. Há duas espécies, segundo o filósofo, de justiça restrita (particular): distributiva e corretiva. A justiça distributiva ocupa-se da distribuição dos bens entre as pessoas, proporcionalmente ao seu mérito. A justiça corretiva visa a correção das transações entre os indivíduos, que pode ocorrer de modo voluntário, como nos delitos em geral. Nesta forma de justiça surge a necessidade da intervenção de uma terceira pessoa: o juiz. Ela se divide em: i) comutativa: que preside os contratos em geral: compra e venda, locação, empréstimo etc. Esse tipo de justiça é essencialmente preventiva, uma vez que a justiça prévia iguala as prestações recíprocas antes mesmo de uma eventual transação; ii) reparativa: visa reprimir a injustiça, a reparar ou indenizar o dano, estabelecendo, se for o caso, a punição.

Referências e texto completo ver em: http://repositorio.pucrs.br/dspace/handle/10923/6830

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