O DIREITO DE USO, DE TROCA E DE CONTRATO EM HEGEL
O direito abstrato divide-se em direito de propriedade, direito contratual e direito penal. O direito abstrato, por ser a primeira etapa dos Princípios, apresenta as formas mais imediatas e indeterminadas da realização da liberdade. “Nenhuma instituição social (nem Estado, nem sociedade civil) serve como intermediária nas formas do direito abstrato. Trata-se de um direito que se efetua na esfera das relações interpessoais e é, assim, privado”. (WEBER, 1993, p. 64). Um problema enfrentado pelo direito abstrato é a possibilidade do erro de precipitação ao tomar as normas do direito positivo como externas, alheias às consciências individuais. A questão da responsabilidade só é tratada na moralidade. O direito nascente é formal. Conforme Hegel, “sê uma pessoa e respeite os outros como pessoas”. (Rph, § 36).
O direito abstrato é, realmente, um direito privado que se efetua na esfera das relações interindividuais. Contudo, as determinações naturais da pessoa não são postas de lado; pelo contrário conferem a esse estado de direito seu acordo empírico e abstrato. Empírico porque a ‘pessoa’ age de acordo com seus desejos e pulsões na procura de uma satisfação que pode realizar-se graças às relações do direito vigente numa comunidade determinada. Abstrato porque a ‘pessoa’ encontra-se em uma relação de exterioridade no que se refere às suas próprias determinações naturais. (ROSENFIELD, 1995, p. 75).
O direito de propriedade, primeiro momento do direito abstrato, trata da posse e da propriedade. A primeira forma imediata pela qual a pessoa se dirige ao mundo é através da posse. A pessoa deve exteriorizar a sua interioridade livre através da posse. O indivíduo somente se torna pessoa a partir da posse. Toda pessoa tem o direito de se apossar das coisas, desde que não seja um direito do outro e, através da posse, há a possibilidade do uso (mas não da troca). Somente há a possibilidade da troca quando a posse se torna propriedade e isso ocorre quando a posse é reconhecida por outras vontades. “A propriedade é uma categoria que dá a Hegel a possibilidade de pensar, numa etapa primeira do movimento da concreção da pessoa na exterioridade das coisas, o processo graças ao qual a vontade abandona os labirintos de sua subjetividade”. (ROSENFIELD, 1995, p. 77).
No direito contratual, segundo momento do direito abstrato, ressalta-se que a garantia da propriedade e a possível transferência para outrem dela exigem um contrato. O reconhecimento e a vontade livre dos contratantes, como pessoas e proprietários, é pressuposto e também resultado para o contrato. Dessa forma, o contrato é o reconhecimento formal da propriedade de outro. A posse, a propriedade e o contrato, nessa ordem, representam o aumento da intensidade na concretização da liberdade. Na posse, o que está em jogo é a coisa; na propriedade, o que está em jogo é a coisa em relação com as duas vontades; no contrato, a coisa não está mais em jogo, pois o que importa são apenas as duas vontades. Porém, neste ponto surge um problema: não há nada que impõe limites sobre as vontades e uma delas pode exercer a sua vontade sobre a outra. Se isso ocorrer, tem-se a injustiça e a necessidade da moralidade.
Hegel introduz o direito de propriedade como expressão da vontade livre. O direito de posse é a expressão objetiva da capacidade jurídica e legal. É a forma exterior de expressão da personalidade. A posse é a primeira instância da objetivação da vontade livre. Ela requer reconhecimento, ou seja, mediação. O racional se estabelece na mediação e não na imediatez. Ao dizer: ‘isto é meu’ mostra-se a expressão de minha racionalidade. O imediato não reconhecido não passa da imediatez, ou seja, a posse não reconhecida não se constitui propriedade. Portanto, a racionalidade é estabelecida na mediação e não na imediatez. O natural é o imediato. Por isso, Hegel critica o jusnaturalismo. Hegel, no direito abstrato, apresenta as formas mais imediatas da expressão da vontade livre.
No direito abstrato, Hegel trata do conteúdo mais imediato como expressão da vontade livre. Se não houvesse conteúdo no começo do movimento de determinação não há mais como tratar de conteúdo posteriormente. O direito de posse se reporta ao direito de troca. O direito de troca só se confirma com o direito de contrato, pois ele é o reconhecimento formal da posse. Na mediação da vontade livre, quem se afirma e se determina é exatamente a vontade livre. “Deve a pessoa dar-se um domínio exterior para a sua liberdade a fim de existir como ideia”. (Rph, § 41). A ideia é o conceito realizado. Portanto, a pessoa, sendo a noção mais abstrata e indeterminada, para considerar-se como ideia tem que passar pelo processo de mediação do conceito.
Como conceito imediato essencialmente individual, tem a pessoa uma existência natural que, por um lado, lhe está ligada mas para com a qual, por outro lado, ela se comporta como para com um mundo exterior. A propósito da pessoa em sua primeira imediateidade, apenas se trata aqui de coisas em seu caráter ele mesmo imediato e não de determinações suscetíveis de se tornarem coisas por intermédio da vontade. (Rph, § 43).
Segundo Hegel, “há alguma coisa que o Eu tem submetida ao seu poder exterior. Isso constitui a posse”. (Rph, § 45). A posse é o mais imediato; não há mediação social da vontade livre.
O que há de racional na relação com as coisas exteriores é que eu possuo uma propriedade; o aspecto particular abrange os fins subjetivos, as carências, a fantasia, o talento, as circunstâncias exteriores [...]. Só disso depende a posse. Mas neste aspecto particular ainda não é, neste domínio da personalidade abstrata, idêntica à liberdade. É, pois, contingente, do ponto de vista jurídico, a natureza e a quantidade do que possuo. (Rph, § 49).
O exercício da capacidade legal é contingente a quantidade da propriedade. A igualdade deve ser tratada na condição de personalidade, de capacidade legal, mas não em termos de quantidade. Todos os homens são iguais como pessoas (enquanto capacidade e personalidade jurídica). A forma mais imediata é a posse e ela só se constitui em propriedade quando reconhecida. Portanto, o contrato é o reconhecimento formal da posse. A propriedade contém em si dois direitos fundamentais: uso e troca. No entanto, os dois não se realizam simultaneamente, pois quem usa não pode trocar e quem troca não pode usar. Esse é o antagonismo inerente a ideia de propriedade privada. O direito do contrato é o reconhecimento. Daqui decorre o justo e o injusto. O contrato é celebrado por vontades imediatas e contingentes e, por isso, podem resultar nele atos injustos. Ferir o pacto é praticar um ato injusto. Hegel está preservando o aspecto contingente desde o ponto de partida da efetivação da vontade livre. Se é possível o injusto, ou seja, se vontades arbitrárias são possíveis, isso mostra a insuficiência do direito abstrato.
O direito abstrato é incapaz de assegurar os direitos imediatos mais importantes, a saber, o direito de uso, de troca e de contrato. O injusto é possível por que há vontades imediatas. Isso mostra que o direito positivo formal é incapaz de garantir a plena efetivação do princípio pressuposto da vontade livre. Contudo, o que legitima um contrato é a vontade livre. Hegel não dá ênfase à coisa que está em jogo, mas à vontade livre das partes, dos agentes que delegam o contrato.
Referências e texto completo ver em: http://repositorio.pucrs.br/dspace/handle/10923/6830
Referências e texto completo ver em: http://repositorio.pucrs.br/dspace/handle/10923/6830
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