quarta-feira, 22 de maio de 2013

UMA FUNDAMENTAÇÃO MORAL DO DIREITO: O DIREITO DE EQUIDADE E O DIREITO DE NECESSIDADE

Para Kant, a coação é indispensável para o direito. Porém, ele destaca duas situações que não há uma relação necessária entre coação e direito. Uma delas é a equidade (direito sem coação); a outra é o estado de necessidade (coação sem direito). Portanto, ao buscar definir o direito, Kant não irá se referir ao direito positivo e empírico (esse definido pelo jurista), distinguindo os atos lícitos e ilícitos, mas irá tratar do justo e do injusto, ou seja, irá investigar o valor do direito a partir da ideia da justiça, isto é, a partir da fundamentação do direito empírico. Kant trata de uma

justificação dos principais institutos jurídicos a partir de alguns princípios racionais a priori, ou postulados, de maneira que sua doutrina do direito pode muito bem ser designada como uma dedução transcendental do direito e dos institutos jurídicos fundamentais, a partir dos postulados da razão pura prática. (BOBBIO, 1991, p. 67).

O direito busca, na metafísica, princípios de fundamentação que são dados pela razão (direito natural) e não pelo direito positivo. Assim, o direito positivo busca seus princípios na razão, no direito natural. Ao propor princípios metafísicos para o direito, Kant está almejando uma doutrina moral do direito, uma fundamentação racional da doutrina do direito. Contudo, surgem dois problemas (a partir da fundamentação metafísica): 1. Como explicitar uma fundamentação moral do direito?; 2. Por que Kant não resolve o problema do direito da equidade e do direito da necessidade a partir desta fundamentação? Justamente devido a não resolução do último problema, Kant será criticado nesta tese a partir do pensamento hegeliano.
            Kant faz a distinção entre leis da natureza e leis da liberdade (leis morais). As leis morais abarcam tanto as leis jurídicas como as leis éticas. Portanto, o fundamento dessas últimas leis (jurídicas e éticas) é comum. Assim, pode-se ver que há uma fundamentação moral para o direito. Todavia, por que Kant não considera relevante o direito da equidade e da necessidade? O que distingue as leis éticas das jurídicas é a sua motivação: leis éticas (dever pelo dever): motivação interna; leis jurídicas (coerção externa): motivação externa. Nas palavras de Kant,

Em contraste com as leis da natureza, essas leis da liberdade são denominadas leis morais. Enquanto dirigidas meramente a ações externas e à sua conformidade à lei, são chamadas de leis jurídicas; porém, se adicionalmente requerem que elas próprias (as leis) sejam os fundamentos determinantes das ações, são leis éticas e, então, diz-se que a conformidade com as leis jurídicas é a legalidade de uma ação, e a conformidade com as leis éticas é a sua moralidade. A liberdade à qual as primeiras leis se referem só pode ser liberdade no uso externo da escolha, mas a liberdade à qual as últimas se referem é liberdade tanto no uso externo como no interno da escolha, porquanto é determinada por leis da razão. (MS, 2008, p. 63-4).

A dicotomia, destarte, não está entre as leis jurídicas e as leis morais, mas entre as leis jurídicas e as leis éticas. Kant, apesar de realizar uma fundamentação moral do direito, não valoriza dois direitos fundamentais, a saber, o direito da equidade e da necessidade. Ao responder a pergunta “O que é a Doutrina do Direito?”, Kant diz o seguinte:

Denomina-se doutrina do direito (ius) a soma daquelas leis para as quais é possível uma legislação externa. Se houve realmente uma tal legislação, é a doutrina do direito positivo, e diz-se daquele nesta versado – o jurista (iurisconsultus) – que é experiente na lei (iurisperitus) quando não somente conhece leis externas, como também as conhece externamente, isto é, na sua aplicação a casos que ocorrem na experiência. Pode-se também dar o nome de jurisprudência (iurisprudentia) a tal conhecimento; porém, na falta de ambas essas condições, ele permanece mera ciência jurídica (iurisscientia). Este último título diz respeito ao conhecimento sistemático da doutrina do direito natural (ius naturae), embora alguém versado nesta tenha que suprir os princípios imutáveis a qualquer legislação do direito positivo. (MS, 2008, p. 75).

O conceito do justo e do injusto não pode ser tirado do direito positivo; esse diz apenas acerca do lícito ou do ilícito. Para saber sobre a justiça se faz necessário buscar os princípios imutáveis não na legislação positiva, mas na razão, no direito natural. O direito, com isso, indica as leis de um determinado local num determinado tempo. O justo e injusto permanecem ocultos para o direito, ou seja, não se conhece o critério universal para se delimitar o justo do injusto. O direito positivo deve abandonar as leis empíricas se quiser se autofundamentar, buscando os seus princípios na razão. Porém, o problema retorna: como fundamentar princípios na razão nas leis morais? “Como a cabeça de madeira da fábula de Fedro, uma doutrina do direito meramente empírica é uma cabeça possivelmente bela, mas infelizmente falta-lhe cérebro”. (MS, 2008, p. 76). O “cérebro” do direito positivo é o direito natural. O conceito do justo e do injusto é dado pela razão e não pelo direito positivo. O conceito do direito, na visão kantiana, diferentemente da visão hegeliana (para Kant o conceito do direito é descritivo e para Hegel é normativo),

enquanto vinculado a uma obrigação a este correspondente (isto é, o conceito moral de direito) tem a ver, em primeiro lugar, somente com a relação externa e, na verdade, prática de uma pessoa com outra, na medida em que suas ações, como fatos, possa ter influência (direta e indireta entre si). Mas, em segundo lugar, não significa a relação da escolha de alguém com a mera aspiração (daí, por conseguinte, com a mera necessidade) de outrem, como nas ações de beneficência ou crueldade, mas somente uma relação com a escolha do outro. Em terceiro lugar, nessa relação recíproca de escolha, não se leva de modo algum em conta a matéria da escolha, isto é, o fim que cada um tem em mente com o objeto de seu desejo; não é indagado, por exemplo, se alguém que compra mercadorias de mim para seu próprio uso comercial ganhará com a transação ou não. Tudo que está em questão é a forma na relação de escolha por parte de ambos, porquanto a escolha é considerada meramente como livre e se a ação de alguém pode ser unida com a liberdade de outrem em conformidade com uma lei universal. O direito é, portanto, a soma das condições sob as quais a escolha de alguém pode ser unida a escolha de outrem de acordo com uma lei universal de liberdade. (MS, 2008, p. 76).

Ou seja, segundo o primeiro ponto descrito acima, o direito não trata de relações externas na pergunta acerca da intenção do sujeito agente; já o segundo ponto destaca que a relação jurídica não é uma relação entre arbítrios e desejos (mera expressão da vontade) ou entre dois desejos, mas entre dois arbítrios (consciência da capacidade de atingir o desejo ou o fim proposto); o terceiro e último ponto ressalta que a relação jurídica ocorre através do arbítrio e não do desejo e nesta relação com o arbítrio não é levado em consideração a matéria do arbítrio, isto é, o fim que cada um se propõe com o objeto que quer, mas somente a forma é levada em consideração. Por exemplo, não se pergunta se alguém leva vantagens ou não com a mercadoria que está comprando, mas pergunta-se apenas sobre a forma da relação do arbítrio recíproco; num contrato de compra e venda, não importam as relações subjetivas dos contratantes, mas importam apenas as condições externas, isto é, as condições formais que legitimam um contrato. Hegel, neste ponto, destaca que se deve fazer uma distinção entre arbítrio e liberdade (vontade livre), pois para ele, o arbítrio é uma expressão imediata da vontade, portanto, não reconhecida, sendo assim uma indeterminação.
Conforme Bobbio (1991), o conceito do direito, segundo Kant, pode ser explicado através de três elementos constitutivos: i) a partir das relações intersubjetivas: diz respeito a uma relação externa de um sujeito com outros sujeitos. Claro que há relações externas intersubjetivas que não se referem ao conceito de direito, pois as relações intersubjetivas são mais amplas que as relações do direito racional; ii) a partir das relações intersubjetivas relacionadas com dois arbítrios e não com um arbítrio e um desejo. Com esta definição, Kant busca distinguir a intersubjetividade jurídica com as demais intersubjetividades. O desejo indica uma finalidade que o sujeito quer alcançar; já o arbítrio é a consciência acerca da possibilidade de alcançar o fim. Para a possibilidade de um contrato de compra e venda “não é suficiente que o arbítrio do comprador se encontre com o desejo do vendedor, mas é preciso que também por parte do vendedor o desejo se resolva em arbítrio”. (BOBBIO, 1991, p. 69). Por isso, em relação a um mendigo, pode-se dizer que ele tem desejo de receber esmola, mas jamais arbítrio para tal. Destarte, para que haja uma relação jurídica é necessário reciprocidade (de arbítrio); iii) a partir da forma da relação recíproca entre dois arbítrios e não a partir da matéria do arbítrio (télos almejado por um sujeito). Por exemplo, as vantagens ou desvantagens em um contrato de compra e venda não é considerado pelo direito; somente é relevante as condições formais do contrato.

Quando o direito regula a instituição do casamento, não estabelece nem com quem eu devo casar nem quais são os fins individuais que eu possa propor-me a alcançar por meio do casamento; limita-se a fixar as modalidades por meio das quais torna-se a atuação das minhas intenções. (BOBBIO, 1991, p. 69-70).

Desta concepção formal acerca do conceito do direito, surge o positivismo jurídico, representado por pensadores como Kelsen, Del Vecchio, Stammler e outros. O juspositivismo não trata o direito em um sentido prescritivo, do dever ser, mas apenas descritivo, do ser.

O direito é a forma universal de coexistência dos arbítrios dos simples. Enquanto tal é a condição ou o conjunto das condições segundo as quais os homens podem conviver entre si, ou o limite da liberdade de cada um, de maneira de que todas as liberdades externas possam coexistir segundo uma lei universal. Finalmente, o direito é o que possibilitar a livre coexistência dos homens, a coexistência em nome da liberdade, porque somente onde a liberdade é limitada, a liberdade de um não se transforma numa não-liberdade para os outros, e cada um pode usufruir da liberdade que lhe é concedida pelo direito de todos os outros de usufruir de uma liberdade igual à dele. (BOBBIO, 1991, p. 71).

Kant, ao explicar que o direito tem somente como objeto apenas o que é externo as ações, destaca que há um direito estrito e um direito lato. O direito estrito é aquele que não se mescla a nada de ético (Kelsen, a partir disso, vai construir uma doutrina pura do direito) e está ligado apenas com a coação do agir. Já o direito lato trata daquilo que a autorização para coagir não pode ser determinada por uma lei. Kant exemplifica o direito lato a partir de dois exemplos: direito de equidade e direito de necessidade. Equidade assume um “direito sem coerção”. (MS, 2008, p. 80), ou seja, há um direito, mas não há mecanismos para exigir a efetivação do direito; direito de necessidade há uma “coerção sem um direito”. (MS, 2008, p. 80). Esses são dois direitos não podem se efetivar, pois o juiz não pode atendê-los, segundo Kant.
Pelo direito estrito, o juiz não possui elementos para saber, por exemplo, quanto pertence a cada sujeito envolvido num contrato. Esse é o formalismo. O juiz não tem como atender o direito de equidade, pois nada está previsto sobre isso no contrato (não prevê reajuste devido algo que ocorreu fora da normalidade). O direito, assim, não tem nada a ver com a justiça, mas somente com a lei e com os contratos que deverão ser cumpridos.  O direito de necessidade é uma autorização (violência lícita) para no caso do perigo e perda da própria vida tirar a vida do outro que não lhe fez mal.
A equidade é a justiça que vai além do formalismo jurídico. É “aquela justiça que nasce não da adequação rígida a uma lei geral e abstrata, mas da adequação à natureza mesma do caso particular, que apresenta algumas peculiaridades com relação a circunstâncias de tempo, de lugar [...]”. (BOBBIO, 1991, p. 79). Em alguns casos, a lei aplicada não é equânime. Kant prioriza a lei aplicada e não a equidade. “Kant não admite um tribunal de equidade, ou seja, um tribunal que julgue não com base nas leis gerais e abstratas, mas caso por caso”. (BOBBIO, 1991, p. 80). O estado de necessidade é quando o sujeito pode escolher tirar a vida de outrem para salvar a sua própria vida. Por exemplo,

considera-se um náufrago que para poder sobreviver impede um outro náufrago de apanhar uma tábua ou um salva-vidas; ou para dar um exemplo mais atual, ao alpinista que corta a corda por meio da qual o companheiro está dependurado, no caso em que a corda, gasta, não possa mais agüentar os dois. (BOBBIO, 1991, p. 80-1).

Para Kant, o estado de necessidade é um caso de não-punibilidade. Hoje, no Direito Brasileiro, no estado de necessidade não há culpa nem punição, ou seja, o estado de necessidade não é classificado como um caso de não-punibilidade, mas de não-culpabilidade; para Kant, existe culpa, mas não existe punição.

Resumindo, eis como o próprio Kant identifica a diferença entre os casos de equidade e estado de necessidade: no primeiro caso, ‘o que cada um por si mesmo, com bons motivos, reconhece como justo, pode não encontrar confirmação frente a um tribunal’; no segundo caso, ‘o que ele mesmo deve julgar como injusto pode obter indulgência e absolvição deste’. A anomalia desses dois casos está portanto no fato de que, enquanto a normalidade da relação entre direito e coação exige que o direito seja satisfeito e o erro remediado, aqui existe de um lado um direito não satisfeito, do outro um erro não remediado. Em outras palavras, seria possível dizer assim: a natureza da justiça implica em que seja dada razão a quem tem razão e negada a quem não a tem. Nos dois casos anômalos, porém, existe esta alteração: no primeiro caso, uma pessoa tem razão e não lhe é dada, no segundo caso, uma pessoa não a tem e lhe é dada. (BOBBIO, 1991, p. 81).

Kant, ao tratar desses dois direitos, não considera as leis morais e acaba caindo no formalismo. Por que aplicar leis injustas? Justamente são os hard cases que precisam que se aplique a equidade. Kant não resolve o problema da equidade e da necessidade; ele oferece uma resposta puramente formal. Não se podem minimizar estes dois direitos (como fez Kant), pois são direitos fundamentais. Kant joga estes direitos para o âmbito do direito lato, pois os considera duvidosos. Esses direitos não são tratados pelo direito estrito. As soluções apontadas por Kant acerca da equidade e do direito de necessidade não consideram a fundamentação moral do direito. O conceito do justo não pode ser tirado da lei positiva, mas somente das leis naturais, nos princípios.
As regras devem ser justificadas demonstrando quais são os princípios que as fundamentam. Se, como diz Kant, o justo não pode ser tirado das leis positivas e sim da razão, então, ao tratar de equidade e de necessidade, pode-se apelar para as leis morais. Porém, Kant não faz isso e esse é o seu grande problema, pois assim ele acaba caindo no formalismo. Quando o contrato for injusto, para que aplicá-lo? Kant prende-se ao direito estrito. Hegel critica esta postura de Kant, pois não dá para separar forma e matéria, senão se cai em uma abstração indeterminada. Nos direitos de equidade e de necessidade deve-se apelar aos princípios e não às leis. A proposta inicial de Kant era fazer uma metafísica do direito. Isso significa dizer que o direito se sustenta na moral, na razão. Por isso, Kant não soluciona o problema desses dois direitos. Neste ponto, Kant é ambíguo, pois inicialmente ele trata dos princípios metafísicos do direito e após diz que o justo não pode ser dado no direito estrito. Assim, ele está sendo incoerente, pois admitindo-se princípios, em casos em que o direito não consegue solucionar certos casos, deveria se buscar esta solução nos princípios. Assim, deve-se acabar com a validade apriorística do imperativo categórico.
No artigo Sobre o suposto direito de mentir por amor à humanidade, de 1797, Kant, ao tratar da história de um homem que é levado a entregar o seu amigo inocente a um assassino por não poder mentir, ressalta que dizer a verdade é um dever, um princípio. Mas este dever vale aprioristicamente ou dentro de determinadas circunstâncias? Se ele vale de forma a priori, acaba caindo no formalismo; se ele não vale de forma a priori, deve-se investigar quais são as circunstancias. Kant diz que ele vale aprioristicamente. Portanto, a veracidade é um dever formal e não material. A matéria é irrelevante. Abrir uma exceção significa inutilizar o princípio e é nisto que o formalismo está pautado.

A veracidade nas declarações, que não se pode evitar, é o dever formal do homem em relação a quem quer que seja, por maior que seja a desvantagem que daí decorre para ele ou para outrem; e se não cometo uma injustiça contra quem me / força injustamente a uma declaração, se a falsifico, cometo, pois, mediante tal falsificação, a qual também se pode chamar mentira (embora não no sentido do dos juristas), em geral uma injustiça na parte mais essencial do Direito: isto é, faço tanto quanto de mim depende que as declarações em geral não tenham critério algum, por conseguinte, também que todos os direitos fundados em contratos sejam abolidos e percam a sua força; o que é uma injustiça causada à humanidade em geral”. (KANT, 1988, p. 174-5).

Referências e texto completo ver em: file:///C:/Users/cliente/Downloads/5.pdf

Nenhum comentário:

Postar um comentário