quarta-feira, 22 de maio de 2013

O PRINCÍPIO DA UNIVERSALIZAÇÃO DA ÉTICA KANTIANA


O tribunal da Crítica da Razão Pura sentencia que a metafísica não é possível como ciência, visto que, nela, os juízos sintéticos a priori não são possíveis, pois seus objetos residem acima do espaço e do tempo. Há uma restrição do uso da razão. Mas essa utilidade se torna positiva ao possibilitar e assegurar o uso prático da razão: a moral, isto é, “assegura à razão o caminho seguro da ciência e mostra que há um uso prático da razão – o moral – que ultrapassa os limites da sensibilidade”. (WEBER, 1999, p.20). Com isso, Kant não está negando ou eliminando a metafísica. Segundo ele, algum tipo de metafísica sempre existiu e continuará existindo. A crítica serve não para a ampliação, mas para a purificação da razão. Embora não seja possível conhecer os objetos metafísicos é possível pensá-los[1].
A primeira grande proposta da universalização da moralidade é de Kant. Querendo propor um procedimento universal, ele ressalta que o ponto de partida não pode ser algo empírico, pois isso atrapalharia a busca pela universalidade. Por isso, a busca pelo princípio da moralidade deve seguir a via formal (filosofia pura). Tanto na razão teórica quanto na razão prática, Kant visa elaborar uma teoria distante do conteúdo empírico. A elaboração do seu princípio da universalidade parte de elementos a priori oriundos da razão pura. “A [...] formulação nada mais é, porém, do que a busca e a fixação do princípio supremo da moralidade, o que constitui só por si no seu propósito uma tarefa completa e bem distinta de qualquer outra investigação moral”. (GMS, 2002, p. 19).
A compreensão da moralidade exige que se explique o que Kant entende por dever moral. A tradição filosófica (Aristóteles, por exemplo) definia o dever moral a partir da via teleológica, ou seja, a partir dos fins previamente postos. Por exemplo, se o fim fosse a felicidade, o dever moral buscaria meios para almejar tal fim. Para Kant, a definição de dever moral é outra. “Sua preocupação não é mais com o que se deve fazer para alcançar os fins previamente postos, mas apenas com o como se deve proceder para agir com mérito moral”. (RAUBER, 1999, p. 15). Portanto, Kant rejeita toda ética empírica, transcendente, eudemônica, ou seja, toda ética heterônoma, buscando assim uma ética universal. Essa, para ser alcançada, deve ser a priori, ou seja, os princípios devem estar no próprio sujeito (razão). Conforme Höffe,

Antes de Kant, a origem da moralidade foi buscada na ordem da natureza ou da comunidade, na aspiração à felicidade, na vontade de Deus ou no sentimento moral. Kant mostra que desse modo a pretensão da moralidade à validade objetiva não pode ser pensada. Assim como no campo teórico, também no campo prático a objetividade somente é possível através do próprio sujeito; a origem da moral encontra-se na autonomia, na autolegislação da vontade. (2005, p. 183-4).

A vontade é o que distingue o homem de entes naturais (animais). Claro que os animais também possuem vontade, mas é uma vontade da natureza. Não é sobre essa vontade que Kant trata, mas da vontade que age de acordo com leis dadas pelo próprio sujeito. Um conceito importante para a ética kantiana é o da boa vontade (guter Wille). “Neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitações a não ser uma só coisa: uma boa vontade”. (GMS, 2002, p. 21). Ela é a única coisa que pode ser considerada como boa em si mesma, sem limites. Segundo Kant, os talentos e qualidades de espírito, se não forem guiados pela boa vontade, podem deixar de ser bons e desejáveis e tornarem-se maus e prejudiciais. A boa vontade é boa pelo simples querer e não por promover o alcance de determinados fins, por inclinações e móbeis. Ela, “[...] considerada em si mesma, deve ser avaliada em grau muito mais alto do que tudo o que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer inclinação, ou mesmo, se se quiser, da soma de todas as inclinações”. (GMS, 2002, p. 23). Portanto, a vontade, para ser boa em si mesma, não deve depender de inclinações, de finalidades. A vontade constitui a própria ética kantiana no sentido em que ela é a própria razão pura prática. Conforme Höffe:

A Fundamentação efetua desde o início uma limitação da Sittlichkeit ao lado pessoal da práxis. Como simplesmente bom ela vê unicamente a vontade boa, e como possíveis concorrentes ela considera apenas dados pessoais como talentos do espírito, propriedades do temperamento, dons da sorte e propriedades de caráter. Todos os [momentos] concorrentes, mostra Kant, não são simplesmente bons, muito antes são de dois gumes; eles permitem tanto um uso bom e desejável quanto um uso prejudicial e mau. (2005, p. 192).

Para desenvolver o conceito de boa vontade, Kant passa a desenvolve o conceito de dever (pfticht), pois o dever contém em si o de boa vontade. “O dever é a Sttlichkeit [moralidade] na forma do mandamento, do desafio, do imperativo”. (HÖFFE, 2005, p. 193). Por exemplo, o comerciante, ao atender lealmente seus fregueses, age conforme ao dever (dever por inclinação), pois é um dever atender lealmente seus fregueses, mas não age por dever quando age motivado por interesses próprios. Agir por dever é agir pela boa vontade sem ser movido por inclinação alguma. O comerciante honesto é moral se é honesto por dever e carece de valor moral se é honesto por interesse. O valor moral das ações consiste em agir pelo puro dever, em agir sem ser motivado por inclinações. A pureza da intenção é o que constitui o valor moral da ação.
            Kant pensa que, para a ética poder ser universal, o sujeito não pode deliberar e agir a partir de suas emoções, sentimentos ou desejos porque eles são subjetivos, pessoais. Há a possibilidade ainda de encontrar valores que sejam partilhados comunitariamente, mas não podem ser aceitos universalmente. Diante disso, Kant procura uma fórmula universal capaz de ser o padrão de medida de nosso agir. Ele apenas quer evidenciar e fundamentar o princípio básico da ética que já está no nosso agir comum. O filósofo denomina o padrão de avaliação da ação certa ou errada de imperativo categórico[2]. O imperativo é o critério objetivo da moralidade. Ei-lo: “devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal”. (GMS, 2002, p. 33). Tal lei tem de determinar a vontade para que esta possa ser chamada absolutamente boa e sem restrições. O imperativo categórico é o critério de validade do ético, do direito e da moral.
            É a razão que deve ordenar como o homem deve agir. O dever é anterior a qualquer experiência e reside na razão, sendo, desta forma, a priori. Kant apresenta outras três formulações do imperativo categórico. Ei-las: “Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza”. (GMS, 2002, p. 68-9). “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”. (GMS, 2002, p. 69). “Nunca praticar uma ação senão em acordo com uma máxima que se saiba poder ser uma lei universal, quer dizer, só de tal maneira que a vontade pela sua máxima se possa considerar a si mesma ao mesmo tempo como legisladora universal”. (GMS, 2002, p. 76). Com essas formulações fica explícita a proposta kantiana: o homem não é submetido a leis externas a si mesmo, mas a leis internas, que surgem a partir de sua autonomia. O imperativo não se refere a regras, mas a máximas.

Por máxima Kant entende proposições fundamentais subjetivas do agir [...], que contêm uma determinação universal da vontade e dependem de diversas regras práticas [...]. (1) Como proposições fundamentais subjetivas, elas são diversas de indivíduo a indivíduo. (2) Como determinações da vontade, elas não designam esquemas de ordem, que um observador objetivo atribui ao agente; trata-se de princípios que o ator mesmo reconhece como seus. (3) Como proposições fundamentais de que dependem diversas regras, as máximas contêm a maneira pela qual as pessoas conduzem o todo de sua vida em relação a determinados aspectos fundamentais da vida e da convivência, como, por exemplo, a indigência, o tédio da vida ou as ofensas. (HÖFFE, 2005, p. 203).

            A partir dos diversos princípios subjetivos (máximas), Kant separa as máximas morais das não-morais e a partir do critério da universalização indica que se devem seguir apenas as máximas morais. Na Fundamentação, Kant trata de exemplos a fim de apresentar o procedimento da universalização. Eis alguns: 1) o ato de mentir e de fazer falsas promessas constituem ações imorais, pois suas máximas não podem ser queridas como leis universais. A pureza da intenção, no cumprimento do dever, é a condição de uma vontade boa em si, cujo valor é superior a tudo aquilo que a inclinação louva. O valor moral de uma ação consiste no respeito a lei prática pelo puro dever de cumpri-la, sem ser movido por inclinação alguma. Assim, o dever contém em si a boa vontade; 2) um homem talentoso prefere ficar no ócio, entregando-se ao prazer e não esforçar-se a fim de ampliar o seu talento. É justificável não desenvolver os próprios talentos para dedicar-se apenas ao ócio? O imperativo categórico impõe a todos os indivíduos não pecar por omissão, ou seja, deve-se sim desenvolver da melhor forma possível seus talentos. Sem isso, a civilização acabaria retrocedendo; 3) um homem, bem sucedido, vendo que outros homens estão em dificuldade prefere não ajudá-los nas suas necessidades. Isso seria justificável segundo Kant? É eticamente lícita uma atitude de indiferença em relação aos outros? A generalização do comportamento egoísta pode tornar-se prejuízo para o próprio egoísta. Portanto, esse comportamento não pode ser universalizado. Para Höffe,

visto que o imperativo categórico contém a forma estrita da universalização, recriminou-se Kant de rigorismo moral, de acordo com o qual máximas como não mentir devem ser seguidas em todas as situações. Na verdade, Kant, na famosa disputa com o escritor e político francês Benjamin Constant, afirmou que não se tem o direito de mentir mesmo contra aqueles que perseguem injustamente alguém [...]. Apesar disso, kant não defende aqui nenhum rigorismo problemático. [...] Constant afirma que este caso mostra que uma validade incondicionada do dever de veracidade torna toda sociedade impossível. De acordo com Kant, é certo o exato oposto: é a pretensão do direito à mentira que torna toda sociedade impossível. Pois a veracidade é o fundamento de todos os contratos; contratos tornam-se sem sentido se estão sob a ressalva de que os parceiros de contrato fazem uso de seu ‘direito de mentir’. (2005, p. 213-4).

            O certo e o bem são definidos a partir do imperativo categórico; não é mais Deus ou um código qualquer que indica como agir. Portanto, a ética kantiana é autônoma, preocupada com a intenção do agir e não com as suas consequências, isto é, uma ética deontológica (ética do dever) e não teleológica (conforme a ética de Aristóteles e do Utilitarismo, que defendem que o fim determina o modo de agir). A preocupação primordial de Kant é com a intenção do agir, ou seja, com o início, com o que motiva o agir, e não com o fim (teleologia). Por isso, pode-se dizer, então, que a ética kantiana é uma ética das intenções.
            Isso significa que o nosso agir precisa ter validade universal para ter caráter moral, ou seja, antes de qualquer ação devo, comigo mesmo, fazer a pergunta: todos aceitariam a escolha que faço? Seria possível um mundo no qual todos agissem como eu ajo nesta situação? Assim, a ação ganha caráter universal, justamente por estar fundamentada na razão. O imperativo categórico é um mandamento da razão. A razão manda categoricamente, ou seja, não há espaço para abrir exceções. Por exemplo, dizer a verdade é uma ação que vale universalmente e eu não posso abrir para mim uma exceção para mentir com a finalidade de tirar vantagens sobre os outros.

Uma ação praticada por dever tem o seu valor moral, não no propósito que com ela se quer atingir, mas na máxima que a determina; não depende, portanto, da realidade do objeto da ação, mas somente do princípio do querer segundo o qual a ação, abstraindo de todos os objetos da faculdade de desejar, foi praticada. (GMS, 2002, p. 30).

            Enfim, a ética kantiana, por constituir-se através de princípios a priori e universal, é uma ética formal. Esse formalismo é decorrência de uma ética universalista. É justamente sobre esse formalismo que Hegel realiza a sua critica.


[1] “[...] a alma, o mundo e Deus são outras tantas ideias e, como tais, são incognoscíveis. Dado que em todo conhecimento se exige que as intuições sejam subsumidas sob um conceito, segue-se que onde não há intuição, ali também não pode haver conhecimento. Nesse sentido a metafísica, tomada como ciência das coisas em si, é impossível. Mas não é embalde que a razão forma as ideias. Pois, se não se pode atribuir-lhes um papel constitutivo, elas têm, pelo menos, um outro papel, nada desdenhável, a saber, um papel regulador”. (PASCAL, 1996, p. 104-5).
[2] Além do imperativo categórico, Kant trata também do imperativo hipotético. “Kant divide os imperativos hipotéticos em duas classes: eles podem ser regras da destreza, ou conselhos da prudência. As regras da destreza prescrevem-nos os melhores meios para se obter um determinado resultado; dados os fins, fica fácil calcular os meios. Já os conselhos da prudência prescrevem os meios mais seguros para alcançar-se a felicidade. Contudo, não é tão fácil calcular os meios para se alcançar tal fim, pois os elementos ligados ao conceito de felicidade são, na sua totalidade, empíricos. Não se pode calcular de forma exata os meios, pois a definição do conceito de felicidade pode variar de pessoa para pessoa. Além disso, a realização de ações como meios para o alcance da felicidade depende completamente da contingência, o que pode frustrar as expectativas ligadas à definição daquele conceito. Daí que os imperativos da prudência não passam de conselhos de prudência”. (RAUBER, 1999, p. 23).

HÖFFE, O. Immanuel Kant. Trad. Christian Viktor Hamm, Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
KANT. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2009.
PASCAL, Georges. O pensamento de Kant. Trad. Raimundo Vier. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
RAUBER, J. O problema da universalização em ética. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.
WEBER, Thadeu. Ética e filosofia política: Hegel e o formalismo kantiano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.

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