O FORMALISMO CIENTÍFICO E O DIREITO NATURAL EM HEGEL
Hegel, no capítulo 2 intitulado ‘O formalismo científico e o direito natural’ do artigo Sobre as maneiras científicas de tratar o direito natural, de 1802-3, realiza uma crítica tanto ao empirismo quanto ao formalismo científico e defende uma ciência especulativa. A ideia jusnaturalista acerca do direito é infundada. Não tem como pensar um conjunto de normas para um aglomerado de indivíduos, ou seja, o direito como algo externo dos indivíduos e esses devendo a ele uma obediência cega. Portanto, Hegel critica a postulação de uma origem pactuada e juridicamente regrada de uma vida coletiva ocorrida a partir da soma de vontades particulares. Os sujeitos individuais formam a sua identidade somente quando são reconhecidos por outro (intersubjetivamente). O indivíduo somente é autônomo, podendo relacionar-se positivamente consigo mesmo, se ele for valorizado pelos demais indivíduos de sua comunidade. Se não há este reconhecimento, o indivíduo não reconhecido parte para a luta, a fim de criar as condições para tal. Quando a falta de reconhecimento não é de um indivíduo isolado, mas de um grupo social, a luta ganha contornos políticos e sociais. Para formular o seu pensamento, Hegel parte da premissa de que os indivíduos não são dados, mas se formam por um processo de socialização. Portanto, o indivíduo desde sempre está inserido num convívio intersubjetivo. Esse convívio é chamado de eticidade. A teoria do contrato social é inválida para a explicação da organização da sociedade. Hegel não justifica os direitos individuais atomizados, mas elabora a teoria da intersubjetividade. Segundo ele, as duas teorias modernas acerca do direito natural – a empirista e a formal – estão equivocadas, pois ambas defendem uma teoria dos indivíduos atomizados, tratando a natureza humana como individual e a comunidade como algo secundário. Hegel critica o método empírico-formal do jusnaturalismo. Seu projeto jurídico é um direito especulativo, ou seja, um direito de natureza ética, que não deve proceder do indivíduo isolado, mas da vida comunitária. Desta forma, Hegel estará destacando uma matriz filosófica da intersubjetividade.
A versão empirista do direito natural é composta por Grotius, Hobbes, Locke, Puffendorf, Rousseau e os juristas ligados à Escola Histórica. Eles partem das coisas observáveis da realidade e acabam descobrindo uma variedade de fatos. Esses fatos podem se substituir um ao outro e eles têm o mesmo valor, sendo que nenhum pode prevalecer sobre o outro. Desta forma, não há como saber qual é o necessário e qual é o acidental. Por isso, o empirismo elege um fato ao azar para que ele possa ser um princípio que fundamente a unidade científica. Por exemplo, quando o empirismo pretende entender o matrimônio, ele se retém apenas em uma determinidade, “põe-se tanto a procriação dos filhos quanto a comunidade dos bens etc.” (HEGEL, 2007, p. 41) e submete a uma dessas determinidades a totalidade orgânica do matrimônio. O mesmo ocorre no instituto jurídico da pena, onde o empirismo aborda apenas uma das determinidades do todo. Isso ocorre também com a noção do estado de natureza. Para alguns teóricos, neste estado o homem é bom, sociável, justo etc.; para outros, o homem é mau, anti-sociável, injusto etc. Portanto, entre os próprios contratualistas há determinações totalmente diversas. Por isso, o empirismo não consegue ter a unidade necessária. A filosofia social moderna define a vida social como sendo uma luta por autoconservação. Esse pensamento é sustentado principalmente pelas figuras de Maquiavel, que desenvolve um realismo político, o qual está ligado a um pessimismo antropológico, e Hobbes, que defende o contrato social como forma de fundamentar o absolutismo. Em suma, Hegel está criticando a forma atomista de tratar o direito natural realizada pelos empiristas e está defendendo a filosofia política como totalidade orgânica.
A versão formal do direito natural é tratada por Kant e Fichte. Esses pensadores partem da pura abstração e não dos fatos da realidade como partiam os empiristas. Eles escolhem uma determinação finita ao acaso e a colocam como fundamento. Essa determinação é sem matéria, é pura forma. A única lei é o imperativo categórico (para Kant). Ocorre no formalismo uma oposição entre a autoconsciência pura e a consciência real do sujeito. Isso só é resolvido mediante a coerção, pois, para Kant, direito é a faculdade de coagir. Hegel ataca o formalismo no direito natural, pois o formalismo reduz o conteúdo do direito ao conteúdo da moral e, assim, o sujeito é um pensador solitário; ataca também a legalização do direito, onde a justiça é apenas a aplicação da lei (justificação do juspositivismo); e, por fim, critica a privatização do direito, que salienta a sobreposição do direito privado sobre o público. Por fim, Kant e Fichte partem do conceito transcendental da razão prática e a consideram o resultado da purificação das inclinações humanas. A natureza do homem, dessa forma, é egocêntrica, pois para agir eticamente deve reprimir seus desejos.
Na obra Princípios da Filosofia do Direito, Hegel retoma esta crítica feita aqui a Kant. Hegel faz a distinção entre moralidade e eticidade, sendo que a eticidade é bem mais abrangente em suas determinações em relação a moralidade. A moralidade trata da fundamentação subjetiva da vontade livre e a eticidade trata da fundamentação objetiva da vontade livre nas instituições sociais. Hegel, na crítica a Kant, ataca o dever pelo dever: isso é um vazio formalismo, uma indeterminação abstrata. Nesta moral não há o conceito de mediação, que é própria de uma perspectiva dialética.
Deduz-se logo que, uma vez que a unidade pura constitui a essência da razão prática, pode-se ter tão pouca consideração de um sistema de vida ética que nem mesmo uma pluralidade de leis é possível – enquanto isso que vai além do conceito puro, ou – porque este, na medida em que ele é posto como negando o múltiplo, isto é como prático, é o dever – o que vai além do conceito puro do dever, e da abstração de uma lei, não pertence a esta razão pura, assim que Kant – este que expôs esta abstração do conceito na sua pureza absoluta – reconhece muito bem que toda a matéria da lei falta à razão prática e que esta não pode erigir em lei suprema nada mais que a forma da aptidão da máxima do livre-arbítrio. A máxima do livre-arbítrio tem um conteúdo e inclui nela uma determinidade; a vontade pura, pelo contrário, é livre de determinidade. (HEGEL, 2007, p. 61).
Na filosofia kantiana não há eticidade. Não há também a possibilidade de uma pluralidade de leis. Toda lei tem uma matéria e uma forma. A matéria não pode entrar na determinação da vontade, pois senão ter-se-ia conteúdo empírico e cair-se-ia numa falácia naturalista. Hegel critica Kant por ele separar matéria e forma. Isso gera um formalismo, pois o que determina a vontade do sujeito é a forma da lei. A forma da lei, em Kant, acaba se convertendo em uma lei suprema, destituída de um conteúdo determinado. A vontade pura está livre de determinidades.
Kant, com sua justificação universalista não diz nada de novo em relação a determinidade. Por exemplo: ‘devemos respeitar a propriedade’. A universalização dessa máxima na forma da lei não diz nada de novo. A forma da lei só diz o que já está dito. Para Hegel, ao aplicar o procedimento do imperativo categórico se está pressupondo um conteúdo moral. Portanto, não é necessário a utilização do imperativo categórico. A proposição kantiana não é um juízo sintético a priori, mas um juízo analítico. Nas palavras de Hegel,
a matéria da máxima permanece o que ela é, uma determinidade ou uma singularidade; e a universalidade que lhe confere a acolhida na forma é assim uma unidade pura e simplesmente analítica; e se a unidade que lhe é conferida é expressa, puramente como isto que ela é, em uma proposição, a proposição é uma proposição analítica e uma tautológica. E é na produção de tautologias que consiste, seguindo a verdade, o poder sublime da autonomia da legislação da razão prática pura; a identidade pura do entendimento, expressa no [domínio] teórico como a proposição da contradição, permanece, se vista na forma prática, precisamente a mesma coisa. (HEGEL, 2007, p. 61-2).
Hegel não admite uma contradição apenas formal. A contradição só existe se há conteúdo e se há uma contradição a esse conteúdo. Hegel, ao questionar o que é o direito e o que é o dever, diz que Kant responde que se deve cumprir o dever pelo dever, pois esse é o ordenamento da vontade pura. A razão, que determina a vontade, o faz de forma imediata, sem mediações, sem conteúdo. Portanto, aquilo que motiva a vontade é a pura forma da lei. A razão, enquanto pura, não pode determinar o conteúdo, mas somente a forma. Segundo Kant, se for utilizado conteúdo, necessita-se de tantas leis quanto a existência do conteúdo. Hegel defende que é necessário ter determinações; não adianta ter o critério formal; é necessário ter leis. Por isso, há a necessidade da passagem da moralidade para a eticidade. É na eticidade, através, por exemplo, das corporações, que são instâncias mediadoras, que resultam as leis. Contrapondo-se a essas leis que se cai em contradição. Não há liberdade natural; há liberdade mediada e reconhecida. O livre arbítrio, enquanto não determinado, reconhecido e mediado, é vazio. Por isso, Hegel valoriza as determinações objetivas ou mediações sociais da liberdade.
Tendo um critério apenas formal, pode-se ora justificar a propriedade, ora justificar a não propriedade. Esse é o problema que Hegel ressalta quando se tem um critério apenas formal. “Para que, assim, este formalismo possa expressar uma lei, é necessário que seja posta uma matéria qualquer, uma determinidade, que constitua o conteúdo da lei; e a forma que vem a se juntar a esta determinidade é a unidade [...]”. (HEGEL, 2007, p. 62-3). Hegel, a fim de superar o universalismo abstrato kantiano, trata da universalidade concreta: o universal que se concretiza no conteúdo. O universal concreto é uma vontade livre, mas em si vazia e indeterminada; ela só é vazia ao se determinar. O universal, ao se concretizar, se individualiza. Por exemplo, o sujeito é um universal concreto quando ele se determina no seu trabalho, na sua corporação, na sua família e em todas as demais instâncias mediadoras nas quais ele faz parte. Em cada um desses momentos há mediações distintas e, portanto, leis e normas distintas.
Cada uma de suas determinidades é, igualmente, suscetível de ser pensada; entre as duas, qual é que deve ser acolhida na unidade, ou pensada, de qual é que deve ser acolhida na unidade, ou pensada, de qual é que deve ser feita abstração, isso aí é algo que é completamente indeterminado e livre; se uma é fixada, como subsistente em si e por si, a outra não pode, certamente, ser posta; mas esta outra pode, também, ser pensada e, uma vez que esta forma do pensamento é a essência, [pode] ser expressa como uma lei moral absoluta. (HEGEL, 2007, p. 63).
Só há determinidade quando se coloca outra determinidade oposta. Por exemplo, ‘só se é livre se há um reconhecimento’ ou ‘só há propriedade privada se houver uma cerca dizendo que isto é meu e isto só pode ser meu quando existir o outro’. Nas palavras de Hegel,
Que o entendimento mais comum, sem instrução, possa empreender esta operação fácil da qual se tem tratado, e possa distinguir qual forma na máxima se presta ou não à legislação universal, Kant o mostra no exemplo da questão se a máxima de aumentar minha fortuna por todos os meios seguros – no caso, em que meio deste gênero se mostraria num depósito, pode valer como uma lei prática universal, aquela máxima teria assim por conteúdo que cada um tem o direito de negar um depósito do qual ninguém lhe pode provar que a ele foi confiado; esta questão se resolveria por si, na medida em que tal princípio, como lei, se anularia a si próprio, porque isto faria com que não tivesse absolutamente nenhum depósito; - mas, que não houvesse nenhum depósito, que contradição haveria nisto? [...] não são os fins e razões materiais que devem ser convocados, mas é a forma imediata do conceito que deve decidir sobre a justeza da primeira ou da segunda hipótese [...] Se a determinidade da propriedade em geral é posta, isso conduz à proposição tautológica [...]. (HEGEL, 2007, p. 63-4).
Segundo Hegel, é necessário inicialmente afirmar o conteúdo, a determinidade e em relação a esta determinidade posso ter contradição. Sem conteúdo não há a possibilidade de contradição. A razão prática, em Kant, está pressupondo um conteúdo (depósito, no exemplo citado acima) e o justifica. Mas que contradição haveria se não houvesse depósito? Pode-se utilizar novamente o imperativo categórico e justificar o não depósito. Desta forma, um critério formal serve para justificar algo e, ao mesmo tempo, o seu contrário. Isso é tautologia, pois o imperativo categórico não diz nada de novo. A proposta de Hegel é o método especulativo. Para ele, o direito natural não deve conceber o indivíduo isolado, mas inserido numa comunidade. Hegel busca, com o método especulativo, ficar com as vantagens e eliminar as desvantagens das teorias formal e empirista. Não há como criar um sistema científico da realidade jurídica colocando uma forma pura a priori, desligada das determinações empíricas e nem tomando ao acaso uma determinação empírica e a colocando como princípio dos demais fatos jurídicos. Inspirado nos filósofos gregos, Hegel nega o atomismo do direito natural. Sua pretensão é construir um estado de totalidade ética. Ou seja,
[...] primeiro, estabelecer o que é o princípio básico, ou formal, do direito natural ou da justiça. Segundo, mostrar como este princípio pode ser relacionado a um sistema objetivo de direito e deveres. Terceiro, apresentar como são condicionados estes direitos e deveres, historicamente, pelos costumes e tradições peculiares à vida ética particular de um povo ou nação. (BAVARESCO, A; CHRISTINO, S. B. in. HEGEL, 2007, p. 22).
Portanto, para explicar a vida social, Hegel rompe com a filosofia contratualista moderna, que via o conflito social como uma luta por autoconservação. Assim, o homem é egoísta e calculista. Essa visão considera o homem de maneira atomística. Opondo-se a essa teoria moderna, Hegel destaca a ideia de uma vida social de reconciliação, inspirada na visão romântica da pólis grega e das primeiras comunidades cristãs, em que haveria uma harmonia entre a liberdade individual e os costumes coletivos. Hegel buscou inspiração na filosofia de Platão e Aristóteles e destaca as antigas pólis gregas como exemplo de reconhecimento e intersubjetividade. Naquela época havia uma plenitude da natureza humana, tendendo à coletividade para resolver qualquer comportamento antiético. A vida em sociedade era garantida pela virtuosidade – do cumprimento das leis - de seus indivíduos e os homens eram considerados, segundo Aristóteles, animais políticos. Essa visão política existiu na Idade Antiga e Medieval. Todavia, essa ordem normativa deixou de existir na Idade Moderna, com as filosofias atomísticas de Maquiavel e Hobbes. Contudo, após a leitura da economia política clássica e através da compreensão da ruptura que a modernidade produz, Hegel, percebendo que sua concepção do reconhecimento não pode mais apelar a esses ideais, desenvolve uma teoria da intersubjetividade que não desconsidere a realidade da sociedade moderna, ligada à produção industrial.
O conflito social não se trata de um confronto por autoconservação, como diziam Maquiavel e Hobbes, mas por reconhecimento. É por meio da luta por reconhecimento que surgem instituições garantidoras da liberdade. Os indivíduos sempre estão em convívio intersubjetivo. Portanto, os indivíduos não são dados, mas se formam por meio da socialização. Esse convívio é a eticidade (vida ética), estando sempre permeado por costumes e valores, ou seja, por vínculos éticos. Portanto, o direito real de um povo é a junção da moralidade e do direito natural, que na obra Princípios da Filosofia do Direito, de 1821, será chamado de direito abstrato. Hegel não está preocupado com a origem da sociedade, mas com a sua transformação, de modo que possa haver o reconhecimento intersubjetivo entre os seus membros.
HEGEL. Sobre as maneiras científicas de tratar o direito natural. Trad. de Agemir Bavaresco e Sérgio B. Christino. São Paulo: Loyola, 2007.
HEGEL. Sobre as maneiras científicas de tratar o direito natural. Trad. de Agemir Bavaresco e Sérgio B. Christino. São Paulo: Loyola, 2007.
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