A CONCRETIZAÇÃO DA LIBERDADE: O ROMPIMENTO DA DICOTOMIA FORMA-CONTEÚDO
A crítica de Hegel a filosofia kantiana aparece de forma mais contundente na obra Princípios da Filosofia do Direito, sobretudo na distinção feita entre moralidade e eticidade. Essa obra trata de uma parte do sistema hegeliano, mais especificamente do Espírito Objetivo. Ele divide-se em uma tríade, a saber, direito abstrato, moralidade e eticidade. A obra esboça as patologias sociais típicas da modernidade através do confronto entre o direito abstrato e a moralidade. O direito abstrato, ou seja, sem relações com a moralidade, torna-se uma máquina opressiva. Com isso, Hegel critica a burocracia da lei, a opressividade do direito abstrato e acaba solucionando essa problemática – o conflito entre o direito abstrato e a moralidade – com uma síntese superior – a eticidade (família, sociedade civil e Estado).
Hegel embasa as suas ideias jurídicas, morais e políticas não na via contratualista, na ideia de natureza como em Hobbes, Locke e Rousseau, por exemplo, mas na fundamentação ética do político. Hegel insere um novo conceito nesse debate, a saber, o conceito de segunda natureza, esta se opondo a ideia de natural, que significa imediatez e indeterminação. Esse novo conceito passa a significar determinação e mediação. Todo o processo de mediação constitui a segunda natureza. Assim, ela é o local onde se desenvolvem as instituições sociais. Sem mediações, ou seja, de forma natural há apenas o livre-arbítrio[1]; a liberdade só é possível na segunda natureza através das mediações. “O livre-arbítrio, colocado entre a vontade natural e a vontade substancial, torna-se um mero mediador à medida que atualiza a vontade natural na vontade substancial”. (ROSENFIELD, 1995, p. 52). A primeira natureza corresponde ao imediato, ao instinto, a vontade natural. Já a segunda natureza trata do processo, do movimento da concretização da liberdade. Segundo Hegel,
O domínio do direito é o espírito em geral; aí, a sua base própria, o seu ponto de partida está na vontade livre, de tal modo que a liberdade constitui a sua substância e o seu destino e que o sistema do direito é o império da liberdade realizada, o mundo do espírito produzido como uma segunda natureza a partir de si mesmo. (Rph, § 4).
O princípio fundador da ciência do direito é a liberdade (vontade livre) e ela se realiza através das determinações. “Cada fase do desenvolvimento da ideia de liberdade tem o seu direito particular porque é existência da liberdade numa das determinações que lhe são próprias”. (Rph, § 30). No início de sua exposição, o Conceito é abstrato. Através das determinações, ele vai se enriquecendo. É no Estado que ela encontra a sua plena concretização. Na tríade do Espírito Objetivo, Hegel trabalha com os conceitos de pessoa, sujeito e cidadão. A pessoa é detentora da vontade como livre arbítrio, o sujeito é detentor da vontade livre subjetiva e o cidadão da vontade livre objetiva. No direito abstrato, Hegel trata da pessoa do direito. Pessoa é o indivíduo com capacidade jurídica (deveres e direitos). Qualquer pessoa é sujeito (tem o direito de não ser visto como objeto). A plenitude, porém, só é alcançada no Estado, onde o indivíduo se torna cidadão (do Estado). Para Hegel, “o direito é o existir da vontade livre [...] vontade autoconsciente, cujo conteúdo é a liberdade”. (SALGADO, 1996, p. 329). Conforme Marques,
A racionalidade do direito reside na lei, que determina o arbítrio e confere segurança aos cidadãos, que a reconhecem. Surgem, então, o dever – como determinação negativa da liberdade – e o direito como determinação positiva. No entanto, como ambos podem ser negados, compete ao próprio direito reestabelecer o ponto de equilíbrio internamente, tendo como referência a própria liberdade. Na dialética hegeliana, compensa-se a liberdade prevista na lei, entendida como vontade universal livre, com a liberdade subjetiva, aquela que se concretiza nos direitos da pessoa. Verifica-se que o direito compensa a negação com o próprio direito, valendo-se da sanção para negar a negação do direito. Em suma, a sanção permite que o direito se reconcilie consigo mesmo”. (in TRAVESSONI, 2011, p. 369).
Hegel não faz uma fundamentação do princípio da liberdade nos Princípios da Filosofia do Direito. O princípio orientador e fundamentador desta obra está em suas outras obras, como na Ciência da Lógica. Hegel apresenta, nos Princípios, as instâncias mediadoras da concretização do princípio da liberdade no direito abstrato, na moralidade e na eticidade. Segundo Hegel, “o objeto da ciência filosófica do direito é a Ideia do direito, quer dizer, o conceito do direito e a sua realização”. (Rph, § 1). Hegel se propõe a fazer uma ciência filosófica do direito, ou seja, o conceito do direito e sua realização. Portanto, não é uma ciência do direito. Conceito do direito, em Hegel, tem uma conotação normativa, diferentemente de Kant que tem uma conotação descritiva. Ao citar ideia do direito, Hegel quer indicar a concretização do conceito, o conceito realizado. Conceito indica o movimento de concretização, de realização da ideia do direito. E a ideia do direito é a liberdade. Conhece-se a ideia da liberdade em sua efetivação, em sua concretização.
Toda a realidade que não for a realidade assumida pelo próprio conceito é existência passageira, contingência exterior, opinião, aparência superficial, erro, ilusão, etc. A forma concreta que o conceito a si mesmo se dá ao realizar-se está no conhecimento do próprio conceito, o segundo momento distinto da sua forma de puro conceito (Rph, § 1). A ciência do direito faz parte da filosofia. O seu objeto é, por conseguinte, desenvolver, a partir do conceito, a Idéia, porquanto esta é a razão do objeto, ou, o que é o mesmo, observar a evolução imanente própria da matéria. Como parte da filosofia, tem um ponto de partida definido que é o resultado e a verdade do que precede e do qual constitui aquilo a que se chama prova. Quanto à sua gênese, o conceito do direito. A sua dedução está aqui suposta e terá de ser aceita como dado. (Rph, § 2).
Durante a obra, Hegel apresenta as diferentes formas de concretização mediante as quais esta ideia se realiza e já desde o começo da concretização da liberdade há conteúdo. Inicialmente, ao chamar a vontade como arbítrio, Hegel quer chamar a atenção da insuficiência do arbítrio. O livre-arbítrio é um momento da ideia da liberdade, porém ele é insuficiente. A vontade racional efetivada não é uma vontade como arbítrio, pois a vontade racional é autônoma e o arbítrio não tem mediação; o arbítrio é o momento da imediatez do conceito, ou da vontade livre, ou da liberdade. Mas livre-arbítrio não é liberdade. Desta forma, não faz sentido falar em vontade natural. Essa é uma expressão vazia. Em suas palavras,
[...] a liberdade da vontade é o livre-arbítrio onde se reúnem os dois aspectos seguintes: a reflexão livre, que vai se separando de tudo, e a subordinação ao conteúdo e à matéria dados interior ou exteriormente. [...] o livre–arbítrio é a contingência na vontade. A representação mais vulgar que se faz da liberdade é a do livre-arbítrio, meio-termo que a reflexão introduz entre a vontade simplesmente determinada pelos instintos naturais e a vontade livre em si e para si. Quando ouvimos dizer que, de um modo absoluto que a vontade consiste em poder fazer o que se queira, podemos considerar tal concepção como uma total falta de cultura de espírito, nela não se vê a mínima concepção do que sejam a vontade livre em si, o direito, a moralidade, etc. [...] Em toda a filosofia da reflexão (desde a de Kant à de Fries, que é a degradação daquela), a liberdade é essa atividade autônoma formal. (Rph, § 15).
Cada uma das figuras que são tratadas nos Princípios são instâncias mediadoras e configurações distintas. Isso significa que em qualquer relação de contrato, em qualquer figura deve-se explicitar que a vontade livre está sendo concretizada. Hegel rompe com toda dicotomia entre conteúdo e forma e tenta mostrar que o mais imediato é o mais abstrato. Portanto, a primeira determinação é o mais abstrato e indeterminado. Desde o começa há conteúdo em seu processo de efetivação, de determinação.
Somente a livre ação humana instaura, no seu nível mais elevado, o movimento da reflexão; ou seja, se a ação humana ainda não é livre, não libera a reflexividade da qual é portadora e, portanto, fica ou torna-se prisioneira dos obstáculos que se levantam contra a Ideia da liberdade. A Ideia da liberdade forma-se por meio dos hábitos, dos costumes e das instituições humanas. (ROSENFIELD, 1995, p. 24).
Segundo Hegel, há momentos históricos que foram decisivos para a conquista do princípio da liberdade. Assim, Hegel apresenta a ideia da liberdade sendo concretizada nas instâncias mediadoras das instituições sociais. Nenhuma instância social poderá não valorizar esse princípio. “Pela decisão, afirma-se a vontade como vontade de um indivíduo determinado e como diferenciando-se fora dele em relação a outrem” (Rph, § 15), ou seja, a vontade se determina e se concretiza quando decide. Não há determinação sem decisão e ela é a expressa do princípio pressuposto, a saber, da vontade livre. “A vontade imediata é também formal por causa da distinção entre a sua forma e o seu conteúdo”. (Rph, § 15). O princípio da liberdade, inicialmente, está indeterminado; é necessário, portanto, a decisão, a determinação. A indeterminação, ou seja, o “absoluto é a noite em que ‘todos os gatos são pardos’”. (Rph, § 16).
A liberdade da vontade é o livre-arbítrio, onde se reúnem os dois aspectos seguintes: a reflexão livre, que vai se separando de tudo, e a subordinação ao conteúdo e à matéria dados interior ou exteriormente. Porque, ao mesmo tempo, este conteúdo, necessário em si e enquanto fim, se define como simples possibilidade para a reflexão, o livre-arbítrio é a contingência na vontade. (Rph, § 15).
O arbítrio é o mais contingente. O primeiro momento da liberdade é o arbítrio e não tem nada mais contingente que ele, pois ele é imediato. Como sair desta contingência? Pelo processo de mediação. O arbítrio em si não é racional. O racional se constrói pela mediação e pelo reconhecimento. O mais imediato, o instinto se satisfaz na sua realização.
Quando ouvimos dizer, de um modo absoluto, que a vontade consiste em poder fazer o que se queira, podemos considerar tal concepção como uma total falta de cultura do espírito, nela não se vê a mínima concepção do que sejam a vontade livre em si e para si, o direito, a moralidade, etc.. (Rph, § 15).
Dizer que a liberdade é o querer significa dizer que o que se quer é a maior indeterminação. Só se pode falar em vontade livre no direito abstrato, na moralidade e na eticidade através de suas mediações. A contradição do arbítrio está no fato de que há um conteúdo finito (“eu quero isto”) e uma forma infinita. Portanto, o arbítrio é um momento da liberdade, mas não é a liberdade mediata e reconhecida. A racionalidade é resultado do processo de mediação. O racional, destarte, é o efetivo (e não o real), pois ele permaneceu do processo de mediação do real. O princípio da liberdade tem um conteúdo e uma base histórica. Kant não aceita isso, pois o critério de moralidade não pode ser particular e contingente. Para Hegel, o princípio tem sim base histórica, mas também tem uma fundamentação lógica (que está provado na Ciência da Lógica). O conceito nunca se realiza plenamente. A ideia é o conceito realizado, mas o conceito está no processo de efetivação. O princípio precisa se realizar em suas diferentes configurações.
Com o nome de purificação dos instintos, representa-se em geral a necessidade de os libertar da sua forma de determinismo natural imediato, da subjetividade e da contingência do seu conteúdo, para os referir à essência que lhes é substancial. (Rph, § 19).
O conceito se efetiva desde o mais natural e imediato até o mais determinado, ou seja, vai do subjetivo e do contingente do conteúdo para a sua essência substancial. Esse é o trajeto do conceito: do natural ao substancial, do mais imediato ao mais concreto. Uma vontade sem liberdade é uma vontade morta. A vontade é uma vontade livre.
Ora, a verdade deste universal formal, que é indeterminado para si e só na matéria encontra a sua específica determinação, é o universal que a si mesmo se determina, a vontade, a liberdade. A partir do momento em que o conteúdo, o objeto e o fim do querer passam a ser ele mesmo, o universal, como forma infinita, o querer deixa de ser apenas a vontade livre em si, para ser também livre para si: é a Ideia em sua verdade. (Rph, § 21).
[1] “[...] a vontade, estando inacabada, já é, entretanto, ela mesma, pois encontra-se em potência de efetivação. A atividade negativa da razão vem a ser, assim, uma de suas determinações. Para poder coincidir consigo, a vontade deve, preliminarmente, entregar-se a seu processo de dissolução, no qual faz do mundo o produto de sua atividade. A volta a si não está, contudo, assegurada. Isolar a negatividade da razão pode ter como resultado convertê-la em uma determinação do entendimento, à medida que é retido somente um aspecto parcial desse movimento. A pura negatividade, aberta como está a um desenvolvimento autônomo, vem a ser, então, uma liberdade própria do entendimento, pois encontra-se separada da totalidade a que pertence; Hegel nomeia esse processo de fúria do livre-arbítrio. A sua fixação como poder completamente autônomo de determinação, essa conversão de um elemento do todo em sua totalidade fechada, é uma possibilidade inscrita no conceito. No que diz respeito aos acontecimentos históricos, esta negatividade pode manifestar-se no mero ato destruidor de toda ordem. Resultará desse processo uma negação imediata, não reflexiva, própria do movimento não mediado da passagem de um termo a outro. A abstração de um movimento da reflexão, ou, o que é a mesma coisa, a parcialização de uma determinação da vontade, torna-se a liberdade do vazio; a ditadura jacobina é, para Hegel, uma de suas manifestações”. (ROSENFIELD, 1995, p.43).
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