segunda-feira, 8 de outubro de 2012

AGOSTINHO: ÉTICA DA FELICIDADE ULTGRATERRENA

O escopo do presente escrito consiste em analisar a moral na visão agostiniana. Sabendo que a moral medieval encontra-se na relação individual de cada um com Deus, é notório que Santo Agostinho orienta sua reflexão condenando todo o prazer sensível, das paixões e de tudo aquilo que pertence ao mundo natural para, assim, guiar-se apenas com as verdades eternas e imutáveis que radicam em Deus. O homem, segundo o bispo de Hipona, age pelo desejo da felicidade ultraterrena e não a terrestre, ou seja, de sua união com Deus depois da morte. Esta é a base em que ele irá erigir toda a sua reflexão acerca da moral. Os principais conceitos que norteiam o estudo da moral na visão de Agostinho são os seguintes: “livre-arbítrio”, “mal”, “boa vontade”, “caridade”, “felicidade”, “iluminação”. A partir de agora esses conceitos serão analisados a luz da filosofia agostiniana.
O fato do livre-arbítrio existir, incontestavelmente, é um bem. O grande debate, porém, em torno dessa questão é a forma como o homem o utiliza: para o bem ou para o mal. O autor assinala que se alguém usar o livre-arbítrio para pecar cai sobre si o castigo, da parte de Deus (AGOSTINHO, 1990, p. 79). Em toda a sua filosofia, Agostinho defende a superioridade da alma sobre o corpo. A alma foi criada por Deus para orientar o corpo à prática do bem. Não obstante, devido à existência do livre arbítrio, o ser humano que o utiliza mal conduz a submissão da alma ao corpo. O único caminho do perdão, para o pecador, é através da graça divina. Todavia, nem todas as pessoas são dignas de receber a graça, mas somente alguns eleitos, predestinados à salvação. Deste modo, não existe dúvida sobre quem deve e quem não deve ser salvo. Agostinho acredita que o homem, depois do pecado original, foi amaldiçoado. E Deus, de forma a priori, já escolheu aqueles que serão salvos da condenação eterna. Mesmo assim, devemos levar uma vida de maneira como se fossemos escolhidos, pois o livre-arbítrio existe. Só que Deus já viu, antes, como iremos viver. Então, tudo já está estabelecido por Deus. Nas palavras do bispo de Hipona, “Deus é presciente, ou seja, prevê todas as coisas futuras, e nós de modo nenhum pecaremos por instrição. Quem dissesse que um fato poderia acontecer de modo diferente do que infalivelmente previra antes, tentaria destruir a presciência divina, com a mais insensata piedade” (1990, p. 69).
Como podemos pecar, questiona Agostinho, por vontade e não por instrição, sendo o Deus presciente de todos os acontecimentos futuros? (1990, p. 172). Sem a vontade livre, o homem não poderia agir virtuosamente. Como fazer o bem a outrem se já estamos de maneira a priori direcionados para agir de tal forma? Assim, para Agostinho, se o homem fosse privado do livre arbítrio da vontade não poderia existir a bondade, com que a mesma justiça se enaltece ao condenar os pecados e a dignificar as boas ações (1990, p. 80). O ato da vontade está em nosso poder. Embora Deus conheça previamente as nossas volições futuras, não se conclui daí que se queira alguma coisa sem ser por vontade livre. Quando o homem vier a ser venturoso, não o será contra a vontade, mas sim querendo-o livremente. Contudo, a nossa vontade, estando em nosso poder, é livre para nós, pois não seria livre se não estivesse em nosso poder. Donde se segue que Deus é presciente de todos os acontecimentos futuros e que, apesar disso, nós queremos aquilo que queremos. Segundo o bispo de Hipona:

Todo o ser racional, dotado desde a origem com o livre arbítrio da vontade, se se mantém na fruição do bem supremo e imutável, sem dúvida que merece louvor; e todo o ser racional que se esforça por lá se manter, também este merece louvor. Pelo contrário, o que não se mantém nessa fruição, e não quer fazer por não se manter, merece censura enquanto aí não se encontra, e enquanto não faz por aí se encontrar (1990, p. 215).

Já as ações causadas por ignorância são improvadas e consideradas objetos de correção. São também merecedores de improvação os atos praticados inevitavelmente, quando o homem quer proceder bem e não pode. “Para toda alma que peca são punitivos estes dois fatores, a ignorância e a penosidade. Por efeito da ignorância, a alma é rebaixada pelo erro; por efeito da penosidade, é atormentada pelo sofrimento” (1990, p. 233).
Deus criou o homem bom; contudo, além de mostrar a sua bondade teve que mostrar a sua justiça punindo-o, e a sua misericórdia salvando-o. Os que pecam deveriam bater na porta da misericórdia de Deus (1990, p. 170). Não há dúvidas que o agir reto desenvolve-se na aproximação de Deus e também que é unicamente através do livre arbítrio que se peca. Assim:
Visto que ninguém é superior às leis do Criador, não é permitido à alma deixar de restituir aquilo de que é devedora. Ou, pois, restitui bem daquilo que recebeu, ou restitui perdendo aquilo de que não quis usar bem. Logo, não restitui praticando a justiça, restituirá padecendo o infortúnio, pois num e outro caso se faz ouvir essa palavra – dívida. Realmente, o que se disse poderia ser expresso desta maneira: se não restituir fazendo o que deve, restituirá padecendo o que deve (AGOSTINHO, 1990, p. 224).
            Assim, a vontade livre – dada por Deus - é um bem (1990, p. 163), pois ela é condição de moralidade. Portanto, se, porventura, o agir humano não fosse livre, ninguém poderia criticá-lo ou aprová-lo. Somente onde há liberdade é que se pode falar de bem ou de mal. Para Agostinho, pecar é quando nosso espírito abandona os bens superiores e dirige-se aos inferiores (1990, p. 167). Nenhuma outra realidade, a não ser o livre arbítrio, torna a mente escrava da iniância (1990, p. 53).
A reflexão a respeito do mal sempre ocupou Agostinho. Ele parte de uma certeza: a causa do mal não é Deus, pois “de Deus procedem todas as coisas existentes, e que, apesar disso, Deus não é autor do mal” (1990, p. 24). Isso explica que a causa do mal provém do homem.
E, afinal, o que significa proceder mal? Será que são aqueles atos que a lei proíbe? Então, se isso fosse verdadeiro, diz Agostinho, os Apóstolos e mártires, que foram condenados, praticaram atos maus. Assim, pois, “se tudo o que é condenado é mau, seria mau, no tempo de Cristo, crer e professar a própria fé” (1990, p. 28). Todavia, todos os atos maus não são maus por outra razão, que não seja a de serem praticados por paixão, isto é, por condenável iniância. Salienta o bispo de Hipona, que “a iniância ou lascívia consiste no amor das coisas que cada um pode perder contra a vontade” (1990, p. 32). Exemplificando:

 Não será então justa a lei que dá autorização ao viandante de matar o ladrão, para não ser matado por ele; ou a qualquer homem ou mulher, antes de sofrer estupro, de infligir a morte, se puder, ao estuprador que violentamente se lança para eles? Ora, ao soldado até por lei está mandado que mate o inimigo, e se se abstém dessa morte, recebe o castigo de quem comanda. Ousaremos, porventura, dizer que tais leis são injustas, ou antes, nulas? (1990, p. 33)

Para Agostinho, se a lei não for justa não existe. As leis que se promulgam para governar a sociedade civil permitem e deixam impunes muitos atos que, todavia, são castigados pela Providência divina. Dessa maneira, fica claro que o objetivo último de nosso querer deve ser o próprio Deus. O mestre do Ocidente destaca que há dois tipos de lei: a temporânea e a eterna. A temporânea é a lei que, embora justa, pode legitimamente ser mudada ao longo do tempo. Já a lei eterna, à qual se deve sempre obedecer, é a razão pela qual os bons merecem a vida venturosa – beata vita - e os maus, a infortunada. “Sobre a lei temporânea, só é justo e legítimo o que os homens para si tenham feito derivar da lei eterna” (1990, p. 40). O autor é claro ao ressaltar que a causa do mal é a criatura. Segundo suas palavras:

A alma, deleitando-se com seu próprio poder, resvala do bem universal para o seu interesse particular. A culpa é do orgulho que ama as divisões. Soberba essa denominada início do pecado. Com efeito, se a alma seguisse a Deus como governador da criatura, suas leis divinas poderiam governá-la com sabedoria. Mas ela, desejando mais do que o universo, quis submeter o mundo às suas leis particulares. E assim, ao ambicionar muito, diminuiu-se. Por isso, se diz que a avareza é a raiz de todos os males. Tudo o que o orgulho pretende fazer, levado pelo seu próprio interesse é contra as leis que governam o mundo, e é feito por meio do corpo (1995, p. 379).
           
Observa, ainda, que não podemos nos deixar manipular pelos bens inferiores, mas visar, apenas, os que nos levam a Deus. Assim, destaca que:

O ouro, a prata, os corpos belos e todas as coisas são dotadas dum certo atrativo. A vida neste mundo seduz por causa duma certa medida de beleza que lhe é própria, e da harmonia que tem com todas as formosuras da vida terrena. Por isso, comete-se o pecado, porque pela propensão imoderada para os bens inferiores, embora sejam bons, se abandonam outros melhores e mais elevados, ou seja, a Vós, meu Deus, à vossa verdade e à vossa lei (1973, p. 49).
           
Por fim, Agostinho é claro ao afirmar que através da instrução - que é um bem -, as coisas más jamais podem ser aprendidas. Praticar um mal é afastar-se da instrução. “Todo aquele que aprende usa da inteligência e todo aquele que usa da inteligência procede bem” (1990, p. 23). Em síntese, pelo fato de Deus ter criado somente o bem, o mal é uma ausência de Deus. Dessa forma, o mal não teria existência autônoma, mas simplesmente seria algo que não é. O mal surge com a desobediência do ser humano. A boa vontade, então, é a obediência de Deus e a má vontade é a ausência de Deus.
A pessoa que possui a boa vontade se rodeia de amor. Nas palavras de Agostinho, “quem ama a sua boa vontade resiste de todos os modos e opõe-se às iniâncias, dando-se-lhe justamente por essa razão o nome de temperante” (1990, p. 61) e, também, a ninguém causará dano. Deste modo, a justiça também não faltará a esta pessoa. Por conseguinte, “a vida venturosa é a que não é infortunada” (1990, p. 62). Se amamos a boa vontade habitarão em nosso espírito quatro virtudes – prudência, fortaleza, temperança, justiça -, cuja posse é o mesmo que viver reta e dignamente. A alegria que nasce na consecução do bem, quando ela sem agitação, serena e inalteravelmente eleva o espírito, chama-se vida venturosa (1990, p. 64). Para Agostinho, os que são venturosos e que têm de ser igualmente bons, não são venturosos por terem querido viver venturosamente, porque isso querem-no também os maus, mas por terem querido viver com retidão – sendo justos -, o que os maus não querem. Os homens maus não querem ser justos.
A sapiência consiste no conhecimento das supremas leis da moralidade, unido ao perfeito exercício do conjunto das virtudes. Já a insciência, que é o oposto da sapiência, caracteriza-se pela ignorância e falta de princípios morais.  Deve ser grande e justo o castigo contra aquele que, já colocado nas alturas da sapiência, resolve escravizar-se à iniância. Desta forma, boa vontade é “a vontade com que pretendemos viver reta e dignamente, e chegar a mais alta sapiência” (1990, p. 56). Ainda, “ninguém é venturoso sem a sapiência” (1990, p. 117). Por isso, “devemos aplicar-nos ao estudo da sapiência, e conceder que isto é uma verdade” (1990, p. 121).
Aquele que põe o seu amor em viver com retidão acaba amando algo eterno e imutável, não amando o que é mutável e temporâneo. Já os que amam a má vontade acabam amando as riquezas, as honras, os prazeres, a beleza do corpo e a todos os restantes bens. Os que são venturosos, pelo amor dos bens eternos, atuam sob a lei eterna; em contraposição, sobre os infortunados age a lei temporânea. “Ordena, portanto, a lei eterna que o amor seja desviado das coisas temporâneas, e que o mesmo, purificado, seja dirigido para as coisas eternas” (1990, p. 68). Contudo, sabemos que existem dois tipos de homens: os que seguem a lei eterna e os que seguem a lei temperânea. Porém, depende da vontade o que cada um escolhe para assumir. “Todos os pecados estão incluídos em afastar alguém das realidades divinas e verdadeiramente estáveis, voltando-se para as mutáveis e incertas” (1990, p. 72).
Através da mente e da razão, cada um deve buscar uma vida venturosa: o íntegro é melhor que o deformado; o eterno, que o venturoso. “O que se designa como separação da verdade e da sapiência não é mais do que a vontade pervertida, com que se ama os bens inferiores” (1990, p. 135). Por conseguinte:

Quantos aos que, em vez de ti, amam as obras que tu realizas, assemelham-se aos homens que ao ouvir em algum sapiente de notável eloqüência, escutando com excessiva avidez a suavidade da sua voz e a disposição das sílabas, devidamente colocadas, perdem de vista a primazia dos pensamentos, de que essas palavras tinham vibrado como sinais (1990, p. 144).

A natureza do corpo é inferior a do espírito. A vontade livre, sem a qual ninguém pode viver com retidão, é um bem, e divinamente concedido, e que se devem condenar os que usam mal deste bem. As virtudes, com as quais se vive honestamente, são grandes bens; as perfeições de quaisquer corpos, sem as quais se pode viver honestamente, são bens ínfimos; por sua vez, as potencialidades do espírito, sem as quais não se pode viver honestamente, são bens médios. Nenhum corpo é capaz de vencer um espírito dotado de virtude. Contudo, se há alguma coisa mais nobre do que a mente racional e sapiente, para Agostinho, isso só pode ser Deus (1990, p. 52).
O caminho que nos leva a Deus é a caridade. Assim, ela consiste num peso interior, que atrai a alma para Deus. Para Agostinho, “a lei de Cristo é a caridade” (1994, p. 30). A Escritura Divina busca estimular os sentimentos dos simples, como que passo a passo, à procura das coisas superiores, no abandono das inferiores.
Na obra A Trindade, Agostinho lembra que Deus, para se oferecer como modelo de retorno ao homem decaído, esvaziou-se de si mesmo, não alterando a sua divindade, mas assumindo a nossa mutabilidade. “Quando se afirma que o homem é justo, afirma-se a respeito da alma e não do corpo. A justiça da alma é certa formosura que faz as pessoas parecerem belas, ainda que os corpos sejam por vezes disformes e aleijados” (1994, p. 273). O verdadeiro amor é aderir à verdade, para viver na justiça. Contudo, deve-se desprezar todas as coisas mortais por amor aos outros, amor que nos faça desejar que eles vivam na justiça. Desse modo, “poderemos estar dispostos a morrer quando necessário pelos irmãos, como o Senhor Jesus Cristo nos ensinou com seu exemplo” (1994, p. 277). Vendo a Trindade, se vê a caridade. O aforismo “Deus é amor” está na base de toda especulação de Agostinho sobre a Trindade. Dizendo de outra forma: é a prática do amor que abre o verdadeiro acesso ao mistério da Trindade. E revela-se admirável e feliz combinação lograda por Agostinho entre a especulação mais ousada e a piedade mais profunda. Ele nunca perdia de vista o aspecto do mistério vivido na história, nas experiências humanas e na especulação. “O que é o amor ou a caridade, tão louvada e exaltada pela Escritura, senão o amor do Bem?” (1994, p. 284) “A intenção é reta somente quando procede da fé. Pois é a fé declarada que, de certo modo, inicia o conhecimento” (1994, p. 286).
O amor dirigido ao Criador não é concupiscência, mas caridade. Haverá concupiscência ao se amar a criatura pela criatura. Na visão agostiniana, “ser intemperante é um vício condenável pela moral” (1994, p. 303). Prossegue dizendo que:

Quando conhecemos a Deus, embora nos tornemos melhores do que éramos antes de o conhecer, principalmente se esse conhecimento nos é agradável e provoca o amor que lhe é devido, é um verbo e torna-se uma semelhança de Deus. Entretanto, é uma semelhança inferior a Deus, pois a alma é criatura e Deus, Criador (1994, p. 304).

Agostinho ensina que o homem deve purificar a mente pela fé, abster-se cada dia mais de pecar e orar com os gemidos dos santos desejos. “A Deus devemos render, em todo tempo, nossos louvores e bendizê-lo, sem que haja palavra alguma capaz de dá-lo a conhecer. Tenho muita consciência não só da minha boa vontade, mas também de minha fraqueza” (1994, p. 191). Diz ainda que Deus se irrita contra os maus e é amável para com os bons. “A luz incomoda os olhos doentios, mas é agradável aos sãos” (1994, p. 213). Assim, é relevante para o homem aderir a Deus, já que ele reprova todo aquele que dele se afasta.
Fica notório, nas suas obras, a importância de amar a Deus com todo o nosso coração, com toda a nossa alma e com toda a nossa mente, e amar ao próximo como a nós mesmos. Porém, o homem segue pecando e afastando-se de Deus.  Diz ainda que:

É pela piedade humilde que se vai até Vós, purificando os nossos maus hábitos. Por causa dela, mostrai-Vos indulgente para com os pecados daqueles que os confessam e ouvi os gemidos dos cativos carregados de ferros. Desse modo, soltai-nos dos grilhões por nós mesmos preparados, contando que jamais ergamos contra Vós os chifres duma falsa liberdade, cobiçosos de possuir mais haveres, com risco de tudo perdermos prejudicialmente, se amarmos mais o nosso egoísmo do que a Vós, soberano Bem (AGOSTINHO, 1973, p. 66).

O desejo universal da felicidade é doutrina de capital importância em Agostinho. Fundamentando nela toda a moral, volta a essa temática em diversas de suas obras. Cícero e Sêneca, que exerceram tanta influência sobre ele, já haviam abordado essa questão de maneiras variadas. Nem todos conhecem a felicidade, salienta Agostinho. Por isso, há muita variedade acerca do que é felicidade. Assim, diz ele que “se a felicidade é gozar dos prazeres do corpo, é feliz quem deles goza; se reside nos bens da alma, é feliz quem os possui; se em ambos, é feliz quem deles desfruta” (AGOSTINHO, 1995, p. 403). São infelizes os que não têm o que desejam, ou então, se o têm, essas coisas são culposas. Portanto, não é feliz, senão aquele que possui tudo o que quer e nada quer que seja mal. Bela e profunda definição agostiniana da vida feliz. Aí estão as duas condições para uma vida feliz: possuir todo o bem desejado e também ser, na verdade, algo de muito justo. Destaca que:

A fé é imprescindível nesta vida mortal, tão cheia de erros e tribulações. É impossível encontrar bens, principalmente os que tornam os homens bons e felizes, se não vierem de Deus para o homem e não aproximarem o homem de seu Deus. Quando, porém, aquele que permanece bom e fiel em meio às misérias desta vida, chegar à vida bem-aventurada, então acontecerá o que agora não é possível de forma alguma, ou seja, o homem viver como quer. Pois naquela felicidade, nada quererá de mal ou nada desejará que lhe falte ou não faltará nada do que desejar. Tudo o que amar estará lá presente e não desejará nada que esteja ausente. Tudo o que ali existir será bom e o Deus supremo será o supremo Bem, e ali estará para gozo de todos os que o amam. E eis o que será o maior grau de felicidade: estará certo de que será assim por toda a eternidade (1995, p. 407).

Na doutrina agostiniana, a fórmula grega de desejo universal da raça humana de ser feliz, recebe um novo sentido: o desejo natural de beatitude é no homem um instinto inato que Deus lhe confere, a fim de o levar, graças a ele, até a posse de Deus na eternidade. “Se a imortalidade não fosse um dom outorgado à criatura humana, ela não procuraria a felicidade, pois sem a imortalidade não existe felicidade” (1995, p. 409).
Não há dúvidas que todas as pessoas desejam ser felizes. Se o desejam de fato, conseqüentemente, devem desejar também ser imortais, pois de outro modo não poderiam ser felizes. “Ninguém é feliz se deseja alguma coisa que não pode possuir” (1995, p. 410). Não obstante, “só podem ser felizes tendo a vida, e assim, não podem querer que pereça a vida. Logo, querem ser imortais todos aqueles que são felizes ou desejam sê-lo” (1995, p. 411). Salienta ainda que:

É próprio de todos os homens quererem ser felizes, mas nem todos possuem a fé para chegar à felicidade pela purificação do coração. Acontece, entretanto, que esse caminho que nem todos desejam é o verdadeiro caminho para a felicidade, a qual ninguém pode alcançar se não o quiser. Não obstante, há muitos que se desesperam de ser mortais e sem isso ninguém pode ser feliz, apesar de o desejar. Contudo, quereriam ser imortais, se o pudessem, mas não acreditando que o possam, não vivem de maneira a poder sê-lo. Portanto, a fé é necessária para se alcançar a felicidade em relação a todos os bens da natureza humana, ou seja, em relação à alma e ao corpo (1995, p. 433).

Observa-se claramente que o grande ensinamento de Agostinho é que os pecadores devem voltar-se para Deus. Todos pertencemos à plenitude de Deus. Não obstante, o único caminho para a verdade é através do “Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo" (Confissões, 1973, p. 143). A felicidade somente é encontrada através de Deus. E continua:

Há uma alegria que não é concedida aos ímpios, mas só àquele que desinteressadamente Vos servem: essa alegria sois Vós. A vida feliz consiste em nos alegrarmos em Vós, de Vós e por Vós. Eis a vida feliz, e não há outra. Os que julgam que existe outra apegam-se a uma alegria que não é a verdadeira. Contudo, a sua vontade jamais se afastará de alguma imagem de alegria (1973, p. 211).

Conclui-se, portanto, que a vida feliz é aquela que provém da verdade, ou seja, de Deus. Agostinho cita continuamente a importância que Deus tem em sua vida. “Quando estiver unido a Vós com todo o meu ser, em parte nenhuma sentirei dor e trabalho. A minha vida será, então, verdadeiramente viva, porque estará toda cheia de Vós” (1973, p. 214). Devemos ajudar ao próximo não somente nas coisas fáceis, mas também nas difíceis. E ressalta:

Esteja acima de tudo presente a fidelidade à revelação, para não se pensar nada de falso e indigno da natureza do Criador, pois é para Ele que nos dirigimos pelo caminho da devotividade. Deste modo, se admitirmos a seu respeito algo diferente do que Ele é, o nosso pensamento nos levará a caminhar na direção não da felicidade, mas da falsidade (Livre Arbítrio, 1990, p. 242).

Após toda a investigação realizada, faz-se necessário formular o seguinte questionamento: onde estarão as regras que possibilitam ao injusto reconhecer o que é justo, descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo não possui? Como o próprio Agostinho diz: “onde hão de estar escritas senão no livro daquela luz que se chama Verdade? Nesse livro é que se baseia toda lei justa que é transcrita e se transfere para o coração do homem que pratica a justiça” (A Trindade, 1994, p. 469). Entrementes, aquele que não pratica a justiça, apesar de saber que deve praticá-la, afasta-se daquela luz, pela qual, no entanto, é iluminado. Quanto a quem não sabe como viver, peca com atenuantes, porque não é transgressor de uma lei que lhe seja conhecida. Mas também ele é atingido pelo resplendor da verdade, que está presente em toda a parte se, quando for admoestado, confessar a sua culpa. Segundo o filósofo, nós nos achamos sob a ação de verdades eternas. Elas estão, de certo modo, impressas na alma. Iluminam e influenciam a quem for capaz e disposto a recebê-las. Essa é a doutrina da iluminação, desenvolvida por Agostinho, Plotino e Porfírio. Mas o bispo de Hipona deu um sentido cristão a tal doutrina. As verdades eternas e imutáveis do mundo das idéias radicam em Deus, que é a Verdade. E nós somos capazes de compreender essas verdades necessárias e imutáveis, embora sejamos de natureza temporal, contingentes e mutáveis. Isso somente em virtude de um contato com Deus, que ilumina a mente disposta a ser esclarecida e vivificada. Tal possibilidade se refere apenas ao conhecimento místico. Diz Agostinho:

Naquela Verdade eterna, segundo a qual todas as coisas temporais foram feitas, é que contemplamos com olhar da mente a forma que serve de modelo a nosso ser, e conforme à qual fazemos tudo o que realizamos em nós ou nos corpos, quando agimos segundo a verdadeira e reta razão (1994,  p. 299).

Estamos na raiz da teoria da iluminação. Todo conhecimento é necessariamente conhecimento das verdades eternas do Verbo. Assim, temos em nós conhecimento verdadeiro das coisas. Em suma, acreditando em Deus, Ele irá iluminar a nossa alma e assim ganharemos um saber que está além do natural.
Em última análise, este artigo buscou refletir a respeito das seguintes questões: como pode existir o mal se tudo vem de Deus? Na filosofia agostiniana, vê-se que o mal é uma privação do bem. A sua causa não é Deus, mas a criatura. Como poderia ser aquele que é a causa de todas as coisas a causa também do não ser? Quando o homem se afasta de um bem imutável e se volta para um bem particular, inferior, peca, e nisto consiste o mal. Fazemos o mal pelo livre arbítrio da vontade. E a liberdade é um bem? Sem dúvida, diz Agostinho. Ela é um bem porque é a condição da moralidade, pois se a ação humana não fosse livre, não poderia ser aprovada nem desaprovada; seria simplesmente ação humana e nada mais. Só onde há liberdade é que se pode falar de bem e de mal. Com a existência do livre arbítrio – onde cada um faz as suas escolhas –, o mal seria o afastamento de Deus. Assim, ele surge da desobediência do homem. Pela existência do livre-arbítrio, o homem acaba pecando. Através desse ato, ocorre a submissão do espírito à matéria, ou seja, do eterno ao transitório, da essência à aparência. Não obstante, a verdadeira liberdade estaria na conciliação entre os atos humanos com a vontade de Deus. Em linhas gerais, a moral visa manter a reta ordem. O mal, contudo, é o desvio desta ordem.

Referências Bibliográficas
AGOSTINHO. A Trindade. Tradução do original latino e introdução de Agustinho Belmonte. Revisão e notas complementares de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1994.
AGOSTINHO. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos, S.J., e de Ambrósio de Pina, S.J. São Paulo: Abril, 1973.
AGOSTINHO. O Livre Arbítrio. 2a edição. Tradução do original latino com introdução e notas por Antônio Soares Pinheiro. Braga: Editorial Franciscana Montariol, 1990.



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