Hegel pretende, com a Fenomenologia do Espírito, desenvolver uma espécie de introdução ao filosofar, porém já sendo ela próprio um filosofar, que busca purificar a consciência comum para chegar a uma consciência filosófica. Assim, a passagem da consciência comum para a filosófica não ocorre de modo imediato, mas tem necessidade de uma mediação que seja ela própria filosófica. Uma filosofia não deve ser somente uma Teoria do Conhecimento, pois se o saber é um instrumento, surge um dualismo entre o sujeito do saber e o objeto a ser conhecido, estando ambos separados. O homem, segundo Hegel, quando filosofa, se põe acima da consciência comum para atingir a perspectiva absoluta. O problema do método, importante desde Descartes a Kant, é condenado por Hegel. Para os teóricos anteriores a Hegel, antes de investigar a verdade das coisas, deve-se examinar o instrumento que se utiliza para alcançar essa verdade. Isso é um contra senso, pois o instrumento altera o conhecimento da verdade e o que se quer é o conhecimento da verdade e não a alteração realizada pelo instrumento. Portanto, para Hegel, uma introdução ao filosofar já é um filosofar e o contato com o Absoluto é desde o início, pois não se pode conceber um tipo de conhecimento separado do Absoluto.
No início do itinerário fenomenológico há apenas o saber fenomenal e não a verdade do conceito. E isso é inevitável, pois no início a ciência surge do saber natural. Durante o percurso, através do negativo, o saber vai se tornando completo. Conforme Hegel, “parece que essa exposição, representada como um procedimento da ciência em relação ao saber fenomenal e como investigação e exame da realidade do conhecer, não se pode efetuar sem um certo pressuposto colocado na base como padrão de medida” (PhG, § 81). Ou seja, ao examinar acerca do saber fenomenal e expondo-o ao negativo, deve-se ter um critério de verdade para poder aferir se o conhecimento é verdadeiro ou não. No início do itinerário, a ciência ainda não está completa e, por isso, ela não pode conter a verdade (da essência do em-si). Ao examinar as figuras da consciência se faz necessário um padrão de medida. Sem isso, não tem como aferir algo. A consciência está apenas surgindo e, por isso, não tem como ter ainda o padrão de medida. Conforme Meneses, “como escapar a este dilema? Analisando o que se passa na consciência: quando ela opera, distingue dentro, de um lado, alguma coisa a que se refere, que é-para-a-consciência: o saber; e de outro lado, um ser que é-em-si: a verdade. Quer dizer, o que é referido ao saber é também distinguido dele e posto como algo que é-em-si. Procurando a verdade do saber, vamos encontrar o que ele é em-si, mas, neste caso, ele é nosso objeto: portanto, para nós” (1992, p. 32).
Desta forma, a medida é a correspondência entre a verdade e o saber, o em-si e o para-nós, e ambos estão no interior da consciência. O objeto do conhecimento, quando conhecemos, é para nós. Todavia, este objeto, sendo independente de nós, é em si. O sujeito somente tem acesso ao objeto do conhecimento enquanto ele é para nós e não em si, pois o critério existe em nós. “O critério é a nossa imposição a um objeto independente. Portanto, não há nada que possamos fazer que possa assegurar que o nosso critério se ajuste ao nosso objeto tal como ele é em si” (DANCY, 1985, p. 280). “A consciência dá sua medida nela mesma; pois é ali que existe a dicotomia do que é-para-outrem (o momento do saber) e do que é-em-si (o momento da verdade)” (MENESES, 1992, p. 32). O objetivo é verificar se o conceito corresponde ao objeto, se o ser-em-si corresponde ao ser-para-outro. “Quando a consciência não encontra correspondência entre os dois momentos, não basta mudar seu saber para pô-lo de acordo com o objeto. Porque, sendo saber de um objeto, não pode mudar sem que mude também o objeto. Mudam, assim, os dois termos; mas como a consciência era a relação
entre eles, muda também ela, e muda sua „unidade de medida‟: surge então uma nova „figura da consciência‟, outra etapa na progressão do saber” (MENESES, 1992, p. 33).
Por meio da contradição as figuras da consciência vão se elevando para novos níveis. “Para escolhermos um exemplo vulgar (que não é nenhum dos de Hegel): suponham que no nosso exame da percepção sensível como forma de consciência determinamos que a percepção sensível, tal como a concebemos, não se ajusta ao seu objeto; que o objeto tal como é em si não corresponde ao objeto que existe para nós. Uma resposta a isto é o cepticismo acerca do nosso conhecimento empírico. Outra é dizer que deste malogro em ajustar-se (à contradição) surge uma nova forma de consciência, com o seu próprio objecto, que requer novo exame. E esta progressão de uma forma de consciência para outra continuará até que alcancemos uma forma em que a distinção entre o objecto para nós e o objeto em si seja completamente derrubada, porque chegamos a uma consciência cujo objecto só pode existir em si na medida em que existe para nós. Aqui por fim a consciência põe de lado a aparência de ser embaraçada por aquilo que lhe é estranho; chegamos a um nível em que a consciência pode ser e é o seu próprio objecto” (DANCY, 1985, p. 282). Conforme Dancy, “A epistemologia para Hegel é possível, mas apenas se tomar a sua rota, progredindo de uma forma de consciência para a seguinte. Qualquer forma de epistemologia que não progrida desta maneira (a de Kant, por exemplo) é destruída por circularidade viciosa. O recurso a essa progressão foi o único meio que Hegel viu de resolver o problema do critério e de ultrapassar a separação do em si e do para nós” (1985, p. 283).
A superação das figuras da consciência visa alcançar a ciência, ou seja, a verdade, que é o ser-em-si da consciência. O objetivo da superação das figuras é a correspondência dos dois momentos da consciência: o modo como a consciência existe para si que é o momento do saber (conceito) e o modo como ela é em si que é o momento da verdade (objeto). Ao longo de seu percurso fenomenológico fica tácito que não existe uma cisão entre a interioridade da consciência e a exterioridade do mundo.
No percurso fenomenológico, Hegel ensina que toda consciência (sujeito) é autoconsciência e essa se descobre como razão. A razão, por sua vez, se realiza como espírito e, superando a religião, chega ao saber absoluto. Nesse último estágio é que se encontra a especulação filosófica. A consciência ingênua entende o objeto como existindo sem a participação da própria consciência, ou seja, como algo independente da consciência. Na consciência-de-si, a consciência faz a experiência de que ela se encontra no objeto, e o objeto, em si mesma. Como razão, a consciência “está certa de si mesma como [sendo] a realidade” (PhG, § 232). Essa é a visão do idealismo. A razão se apossa do mundo, pois ele é ela mesma, ou seja, ele é um outro dela mesma. Quando a certeza (subjetividade) da razão se torna verdade (objetividade), ou seja, quando a certeza de ser toda a realidade é elevada a verdade, a razão dá lugar ao espírito. O objetivo desse itinerário é a superação da cisão do sujeito-objeto, singularidade-universalidade e ser-pensar. O fim dos dualismos são alcançados no saber absoluto, isto é, no sistema da ciência (lógica, filosofia da natureza e filosofia do espírito). Conforme Bloch, “trata-se de conduzir o indivíduo do seu ponto de vista natural ao ponto de vista científico, ao espírito que se conhece a si mesmo” (1983, p. 59).
A consciência possui como característica central a observação do mundo como sendo diferente e independente de si. No início do itinerário fenomenológico, a consciência acredita encontrar diante de si um mundo exterior estranho. A realidade está dada para ela. O saber imediato da certeza sensível confia obter a verdade do objeto através dos sentidos, pensando que eles são exteriores à consciência e não se dá conta que eles estão dentro de seus próprios limites. A certeza sensível é quem oferece uma visão sobre o mundo de maneira mais simplificada, pois para conhecer o mundo é
necessário somente uma visão imediata acerca dele. É por meio da sensibilidade que a certeza sensível passa a conhecer. Na certeza sensível, Hegel critica toda a pretensão ao saber sensível imediato. A consciência aceita como verdade somente aquilo que ela considera imune de dúvida, que é o isto individual. Quando a certeza sensível afirma que o objeto é, torna-se indiferente a existência ou não de um sujeito para conhecê-lo. Assim, o objeto é, é a essência, e mesmo se ele não for sabido, ele continuará sendo. O ser tem privilégio sobre o saber.
A certeza sensível afirma que o objeto é. Mas é o quê? Ao utilizar a linguagem para falar do que ele é, a certeza se confunde. Por exemplo, ao dizer: „agora é noite‟ ou „aí está uma árvore‟, basta apenas o raiar do dia e a locomoção para outro lugar para que as verdades dessa certeza que outrora existia não existirem mais. Contudo, ainda assim restou como verdade o universal, representado aqui pelo agora, pelo aí e pelo é, ou seja, pelo tempo universal, pelo espaço universal e pelo ser universal. O objeto é abstrato demais para a certeza sensível. As noções como noite e árvore não servem para a certeza sensível, mas para uma consciência bem mais evoluída.
A consciência aceita como verdadeiro somente aquilo que ela identifica como certo, ou seja, o isto individual. Todavia, quando ela tenta exprimi-lo, acaba demonstrando o universal. A certeza sensível busca capturar a verdade do objeto conhecido e tomar consciência deste seu saber que não passa de um mero indicar do objeto que aparece no aqui e no agora. O modo mais simples de indicar algum singular é colocá-lo nas coordenadas espaço-temporais. Assim, qualquer objeto pode ser posto nessas coordenadas. Isso faz com que não exista nenhuma capacidade de os determinar em sua individualidade. Na coordenada “agora” cabe tanto dia como noite; no “aqui”, cabe tanto casa como árvore. Dizer aqui e agora parece ser o mais determinado, porém é dizer qualquer momento do tempo e do espaço.
A consciência, desenganada do objeto, procura apreender-se a si mesma. O objeto não se mostrou como o imediato. Por isso, ela se desloca do objeto para o Eu, afirmando que é este que tem a certeza sensível. Hyppolite destaca que tal posição é defendida pelos sofistas gregos, quando esses abandonam o dogmatismo do ser e passam a defender o fenomenismo subjetivo (Cf. 1999, p. 108).
A consciência é um eu singular que está certa de alguma coisa. Sei sobre os objetos porque eu tenho um saber sobre eles. Contudo, o problema anterior retorna. Eu vejo uma árvore; o outro, uma casa. Hegel diz que “as duas verdades têm a mesma credibilidade, isto é, a imediatez do ver, e a segurança e afirmação de ambas quanto a seu saber; uma porém desvanece na outra” (PhG, § 101). O que não desaparece é exatamente o eu universal. O eu é dissolvido em inúmeros eus. Posso visar um singular, mas não posso dizê-lo, pois isso seria impossível.
O momento do sujeito também mostrou que a sua singularidade pode preencher-se por qualquer conteúdo e através do conflito com os outros eus acabam anulando-se entre si. Assim, tanto para o objeto como para o sujeito, que defendiam a singularidade e a imediatez, acabam permanecendo com o universal imediato.
Tanto o sujeito como o objeto são universais. A experiência sensível constata que não pode confiar em nenhum dos dois. No começo, o objeto era posto como essencial e o saber como inessencial. Depois, o objeto se tornou inessencial e o saber essencial. A única forma de tentar salvar o saber é realizar as mesmas afirmações („agora é noite‟; „aí é uma árvore‟) e parar nelas, ou seja, deve-se recorrer à experiência sensível como um todo, não distinguindo mais o essencial e o inessencial. Como assim? Estou verificando que agora é dia e vejo na minha frente uma árvore; não preciso me preocupar com o anoitecer ou com o que os outros vêem. Mas, isso é problemático, pois, por exemplo, analisando apenas o agora, quando digo agora, este agora já é outro
agora, pois já passou. Desta forma, o agora é repleto de agoras (o dia tem muitas horas, e essa tem muitos minutos...). O mesmo ocorre com o aqui, pois esse fragmenta-se na multiplicidade do sobre-sob, direita-esquerda, avante-atrás.
A certeza sensível é um suposto saber imediato de um objeto imediato. Ela supostamente sabe imediatamente o objeto. A suposta verdade almejada é o singular, mas esta pretensão da consciência é contraditória, tendo que passar para o geral. A consciência, pensando que o objeto é essencial, busca o singular (individual), mas ao tentar exprimi-lo o transforma num universal pobre. Ao visar o singular, a certeza permanece com o seu contrário: o universal. Considerando o sujeito como essencial, acaba por dissolvê-lo em inúmeros eus, possuindo cada um a verdade da sua certeza. Tanto no objeto quanto no sujeito a verdade se transformou num universal indeterminado. A certeza sensível não encontra nem no objeto, nem no sujeito e nem na experiência sensível como um todo a verdade imediata que almeja. A sua verdade, no entanto, está num universal que é atingido pela percepção nas condições da experiência sensível. Para Lima Vaz, a certeza sensível “é o domínio onde se move a consciência ingênua, quase animal” (LIMA VAZ, 1981, p. 14). Justamente por isso, existe a cisão sujeito-objeto (pois somente assim a consciência pode afirmar, por exemplo, „isto é um objeto‟), universalidade-singularidade (a consciência visa alcançar a verdade do singular, mas fica apenas com o universal). Conforme Garaudy, “desde a primeira experiência dialética eis-nos então no núcleo desta „substância‟ considerada como „sujeito‟, e acompanhando o ritmo de seu desenvolvimento, de seu desdobramento. Porque o estudo da certeza sensível é o mais pobre: de determinação em determinação, e por um vaivém contínuo do objeto ao sujeito e do sujeito ao objeto, encontraremos a verdadeira totalidade concreta: saídos da experiência mais rude da consciência individual, alcançaremos a estrutura objetiva do mundo em sua plena racionalidade” (1983, p. 49).
A consciência sensível nada mais é do que a certeza imediata da presença de um objeto exterior. Um objeto é algo externo à consciência e a consciência é a recepção passiva deste objeto. A realidade está dada para ela. O saber imediato da certeza sensível confia obter a verdade do objeto através dos sentidos, pensando que eles são exteriores à consciência e não se dá conta que eles estão dentro de seus próprios limites. A certeza sensível é o próprio realismo ingênuo, pois acreditar em conceber a realidade assim como ela é. Saber imediato é sinônimo de consciência ingênua e natural e de senso comum (conhecimento externo do sujeito que conhece, ou seja, é uma espécie de empirismo vulgar que acredita que as coisas sensíveis e exteriores do sujeito que as conhece são a verdade).
Nesta forma de saber está presente o dualismo entre sujeito e objeto, ou seja, o sujeito visa encontrar o objeto fora dele, entendendo que o saber é algo exterior a consciência mesma e a tentativa de dizer o singular, que pode ser atingido de forma imediata. Hegel combate essas ideias superando o momento da certeza sensível, demonstrando as suas contradições. A certeza deixa de ser imediata para ser mediatizada. O objeto é universal, ou seja, ele é mesmo não sendo imediatamente sentido. Hegel critica tanto o dogmatismo ingênuo dos empiristas como o subjetivismo de Kant e de Fichte.
A crítica de Hegel a certeza sensível é inspirada na filosofia grega. A certeza sensível sabe somente o ser, de forma imediata, sem nenhuma mediação. Conforme Hyppolite, “ela própria não se desenvolve enquanto consciência que se representa diversamente as coisas ou as compara entre si, uma vez que isso seria fazer intervir uma reflexão e, consequentemente, substituir, ao saber imediato, um saber mediato” (1999, p. 100). Por isso, ela é pobre, pois somente pode afirmar o é. A linguagem é o mais
próximo da verdade. A consciência opina em relacionar-se com coisas reais e singulares. Mas ao tentar dizer o isto individual, ela não consegue, pois lhe é inatingível à linguagem, sendo que ela torna tudo o que diz em universal.
O universal isolado da certeza sensível é uma abstração que não se basta a si mesma. A certeza sensível, que parece captar o ser de forma mais verdadeira, acaba por mostrar-se a mais abstrata e pobre verdade. Apesar de sua aparente veracidade, não expressa nada além do universal, se opondo veementemente a todo particular e singular. A percepção, inicialmente, toma o objeto – universal - como verdadeiro, apesar de que como singular ele já ter sido negado. A universalidade do objeto tem duas faces: a multiplicidade das propriedades e a universalidade distinta e independente dessas propriedades, que lhe serve de meio e chamasse de coisidade. Nesse meio, as propriedades convivem sem se tocar. Por isso, pode-se chamá-lo de um também. Por exemplo, o sal “é branco e também picante, também é cubiforme, também tem peso determinado etc.” (PhG, § 113). O também, assim, é o puro universal; é a coisidade de todas essas propriedades; é o instrumento empregado pela consciência para afastar a contradição nela, já que isso caracteriza a verdade.
Porém, isso não basta para estabelecer a relação das várias propriedades entre si na identidade da coisa. Cada propriedade está determinada entre si e acaba excluindo a outra. A consciência não quer permitir que houvesse qualquer confronto das propriedades entre si. O meio deve ser uno. Justamente por carregar consigo a verdade, qualquer problema que surgir na percepção, “[...] não é então uma inverdade do objeto – pois ele é igual a si mesmo -, mas [inverdade] do perceber” (PhG, § 116). A coisa é una e tem múltiplas propriedades. Isso é uma contradição. Para resolvê-la, a percepção denuncia que esta contradição vem do sujeito. Fazendo isso a consciência está mostrando que existe sim uma cisão entre o sujeito e o objeto e a afirmação de que tanto o objeto como o sujeito são universais – dita no início - é falsa. A percepção, ao considerar o objeto como verdadeiro vacila entre a sua unidade e as várias propriedades que se manifestam nele. Por isso, atribui para a ilusão do conhecimento tais paradoxos, encontrados na percepção da coisa. É preferível, para a consciência, se reconhecer como a geradora da ilusão, mantendo a coisa na pureza da sua verdade incontraditória. A apreensão mostrava a coisa una. Por isso, as diversas propriedades são colocadas pelo sujeito. Como diz Hegel, “essa coisa é branca só para nossos olhos, e também tem gosto salgado para nossa língua” (PhG, § 119). No entanto, as propriedades possuem oposições umas com as outras. Assim, a coisa é um “também”: “[...] é branca, e também cúbica, e também tem sabor de sal etc.” (PhG, § 120). Observa-se, então, que a unidade é criação da consciência.
Quando a consciência diz que o cubo de sal é branco, além de realizar tal afirmação, a consciência diz negativamente também aquilo que ele não é. Quando ela diz que a coisa é branca, também cúbica, também salgada surge um problema, pois enquanto é branca não é cúbica e enquanto cúbica e também branca não é salgada. É por meio do enquanto que a consciência reconcilia a contradição que surge. A determinação do objeto ocorre mediante uma relação de diferenciação com os outros objetos. Conforme Luft, “a consciência introduz o enquanto (Insofern) como forma de manter na coisa o também – meio universal das propriedades -, sem que esta se contradiga” (LUFT, 1995, p. 43). A consciência constata que tanto o sujeito como o objeto tem duas verdades opostas: são tanto para si como para outro. Busca fugir dessa contradição recorrendo ao “enquanto que”, porém nada adianta. Após nada conseguir com o “também” e com o “enquanto que”, a consciência aceita o contraditório da percepção, ou seja, o universal incondicionado e passa para o entendimento. Quando o objeto é
tomado como verdadeiro ou quando o sujeito é tido como verdadeiro, o problema é mal colocado.
Na percepção, o universal é a verdade buscada, mas a unidade do objeto se desfaz em uma pluralidade de propriedades desconexas. É a própria concepção da coisa que é contraditória, que traz em si esta contradição desde que se pretende considerar uma coisa isoladamente, abstratamente, fora de suas relações viventes com o que não é ela. Até este ponto do itinerário fenomenológico era possível pensar que o essencial era a coisa e o inessencial sua relação com as outras coisas. Quando esta ilusão é dissipada, quando o essencial torna-se a relação, a verdade não pode mais ser buscada no sensível. Neste momento a consciência chega ao estágio do entendimento. Hegel visa superar a cisão que há entre a singularidade e a universalidade, mas não atinge esse objetivo nas figuras da certeza sensível e da percepção, onde reina um realismo ingênuo.
Ao querer alcançar o singular, de forma imediata, a certeza sensível encontra somente o universal, através das mediações. Assim, a consciência supera a certeza sensível, pois as coisas externas não podem ser apreendidas de forma imediata pela sua singularidade. Surge, com isso, a segunda figura da consciência: a percepção. Para a percepção, o objeto parece ser a verdade, mas logo ele se mostra contraditório, pois é uno e múltiplo ao mesmo tempo. Tanto a certeza sensível quanto a percepção são formas limitadas de conhecer e não superam a cisão entre o ser e o pensar. Desta forma, o realismo ingênuo quer fazer da consciência um elemento apenas passivo e não ativo em relação ao conhecimento, ou seja, a consciência apenas capta os dados do conhecimento sem modificá-los. A superação dessa visão limitada do realismo ingênuo ocorre através do idealismo absoluto. Nele a consciência se dá conta de que o padrão de medida está em si mesma e não em algo exterior.
A contradição do objeto que a consciência percipiente busca superar é o objeto do entendimento chamado de universal incondicionado (unbedingt) – não está condicionado ou em relação com nenhum outro fora de si, sendo, assim, absoluto -, que é qualquer objeto capaz “de ser para si e de se relacionar com outro” (PhG, § 134), ou seja, por ser incondicionado, o universal carrega em si a contradição. A consciência ainda não se reconhece neste objeto. A verdade, para ela, é a unidade, assim como foi a imediatez para a certeza sensível e a incontraditoriedade para a percepção. Na certeza sensível, a consciência, ao querer dizer a singularidade, disse a universalidade; na percepção, ao querer dizer a universalidade, reteve a universalidade abstrata; no entendimento, o objeto é o universal incondicionado, “que não é senão o reconhecimento da universalidade e da singularidade como essenciais à coisa mesma” (LUFT, 1995, p. 45). Conforme Luft, “ao colocar sobre a coisa tanto a universalidade quanto a singularidade, a consciência faz surgir para si a aparência (Erscheinung), o jogo das forças: a força se desdobra como recalcada em si, ou seja, o um excludente (singularidade) e o desdobramento das matérias (universalidade). É claro que nenhum desses dois lados, enquanto forças, têm subsistência em si: surge, então, o movimento perpétuo do devir, um meio termo entre duas forças [...]. Mas o rejeitar de tal desaparecer revelará o caminho verdadeiro da consciência: a verdadeira universalidade não se encontra cindida com a singularidade, mas se revela somente através da própria singularidade; a verdadeira universalidade contém a singularidade como superada e guardada” (1995, p. 46).
A percepção capta o objeto, pois ela não consegue captar a unidade dos seus dois momentos contraditórios, ou seja, a identidade da coisa e a diversidade de suas propriedades. Ela voltava-se ora para o sujeito e ora para o objeto, porém é a passagem de um à outra que é necessário pensar. A passagem do uno-múltiplo, ser-para-si-ser-para-outro, interior-exterior é exprimida por meio da noção de força. É por meio da
noção de força que surge uma forma objetiva a essas passagens. Se para a percepção era inconcebível compreender a noção de coisa, a força supera essas contradições, compreendendo a relação que é a passagem do uno ao múltiplo.
É por meio da noção de força que a consciência observa a mesma manifestação do universal incondicionado, pois ambos carregam em si a contradição de serem para si e para o outro. É na noção de força que a consciência pode observar a unidade e o movimento numa ação conjunta. Existe uma força quando algo encerra em si um devir. Segundo Hegel, “as forças não têm, pois, nenhuma substância própria que as sustente e as conserve” (PhG, § 141). O conceito de força se torna efetivo somente em sua exteriorização. Ao fazer isso, ela mostra a contradição que há em si. Contudo, quando a força é efetivamente, ela cessa de ser. Ao se exteriorizar, ela é um ser-para-outro, mas ao permanecer no seu interior é um ser-para-si.
Deste modo, surge um problema para o entendimento: como salvar a unidade? Hegel responde isso afirmando que a força é una e a diferença “está só no pensamento” (PhG, § 136). Por isso, é ao pensamento que resta a tarefa de recompor a unidade. Para isso, ele formula a lei. O intelecto busca, mantendo a unidade, salvar as diferenças. Por exemplo, a força elétrica, na sua exteriorização se mostrou dividida em eletricidade positiva e negativa, mas o entendimento unifica esta diferença na lei. Assim, a força é apenas um fenômeno que, através dele, surge o supra-sensível (interior das coisas). Conforme Garaudy, “a noção de força permite captar o momento dialético do desdobramento do uno: primeiramente porque, da força à sua manifestação, de sua unidade interna a seu desdobramento externo, do todo implícito à exterioridade das partes, efetua-se uma passagem semelhante a do próprio pensamento quando o conceito se desenvolve em realidade concreta: este movimento do pensamento é idêntico ao movimento das coisas” (1983, p. 51).
Além disso, não se pode pensar a noção de força sem uma resistência contrária a ela, sem um antagonista, sem um outro. O devir e a polaridade caracterizam ao tanto a dialética da natureza como a dialética do pensamento. O entendimento descobre que há um interior nas coisas. Esse interior é a oposição de sua manifestação sensível, ou seja, é o fenômeno. Todavia, Hegel não é dualista. Não existe um fosso intransponível entre o fenômeno e a coisa-em-si, “nem mesmo uma diferença de natureza, mas simplesmente uma diferença de grau: o conhecimento da coisa em si é o conhecimento total do fenômeno” (GARAUDY, 1983, p.52). Conforme Luft, “tal reflexão, no entanto, pela primeira vez ocorre sobre o sujeito mesmo, e não apenas na coisa” (1995, p. 49).
Há duas maneiras de tentar explicar o fenômeno. A primeira é passar do fenômeno à lei. No calmo reino das leis, de abstração em abstração, pode-se concentrar a diversidade de leis em uma única lei. Essa redução combate as tendências empiristas, que vê por toda a parte somente o sensível e o contingente. O problema desta explicação é que ela é apenas mais uma abstração, nos revelando somente o esqueleto quantitativo da natureza. Tal explicação é tautológica, pois concentra toda a realidade em elementos idênticos, explicando o objeto pelo objeto. “A lei assim estabelecida é uma relação exterior às coisas que ela une; não dá conta da necessidade de sua ligação” (GARAUDY, 1983, p.52). As leis criadas pelo intelecto são meras abstrações do intelecto, chegando a ser consideradas tautologias. Como consequência dessa tautologia surge o mundo invertido. A segunda maneira de tentar explicar o objeto “estabelece entre os fenômenos um vínculo interno, necessário e vivo” (GARAUDY, 1983, p.52). Essa última explicação é um desdobramento da própria coisa.
Na primeira maneira de explicar o fenômeno, que é passar do fenômeno à lei, aparecerá o mundo invertido. No calmo reino das leis, de abstração em abstração, pode-se concentrar a diversidade de leis em uma única lei. O terreno das leis é denominado
por Hegel de supra-sensível, ou seja, está além do sensível. Neste mundo, existe muita clareza na linguagem utilizada para formular as leis. É um mundo formal e abstrato. Contudo, revela ser apenas uma duplicação do mundo sensível. O intelecto busca encontrar leis cada vez mais universais para o mundo sensível, porém, agindo assim, ele acaba se afastando da concretez das coisas. Quanto maior o campo que uma lei abarca, mais abstrata e superficial ela se torna.
Segundo Hegel, o supra-sensível é o território das leis, no qual o entendimento visa salvar as diferenças. A realidade não é dualista, mas é única. Fora do sensível não há qualquer realidade fantasmática que seria o dentro deste sensível. A lei que é este dentro é um pensamento. Ao se falar da explicação das coisas, a única coisa que se manifesta é o conceito. Ele é o interior das coisas; é o desenvolvimento interno e necessário das coisas. Conforme Garaudy, “ao rejeitar qualquer transcendência, Hegel concebe então a relação do fenômeno ao conceito como uma relação do finito ao infinito. Ora, o infinito, para ele, é imanente ao finito, não é nada além do que o movimento pelo qual o finito se ultrapassa. O infinito só existe no finito, assim como o finito só existe e tem sentido no infinito que o anima e o contém. Esse desenvolvimento do suprasensível, este movimento do conceito – na coisa como no pensamento, que são uma e mesma coisa – é então infinito no sentido de que não se separa daquilo que se move: a diversidade que o anima não está fora dele, exterior, dada. O infinito produz em si seu Outro, as diferenças, sua própria negação: ele engendra as partes do todo por seu próprio movimento. A explicação e o desenvolvimento das coisas são uma e mesma coisa” (1983, p. 53).
O entendimento descobre que há um interior nas coisas. Esse interior é a oposição de sua manifestação sensível, ou seja, é o fenômeno. Porém, Hegel não concorda com esta visão dualista da realidade. Não há um fosso instransponível entre o fenômeno e a coisa-em-si, como dizia Kant. Uma das formas de explicação do fenômeno é passar dele para a lei. No calmo reino das leis, de abstração em abstração, pode-se concentrar a diversidade de leis em uma única lei.
O terreno das leis é denominado por Hegel de supra-sensível, ou seja, está além do sensível. Neste mundo, existe muita clareza na linguagem utilizada para formular as leis. É um mundo formal e abstrato. Contudo, revela ser apenas uma duplicação do mundo sensível. O intelecto busca encontrar leis cada vez mais universais para o mundo sensível, porém, agindo assim, ele acaba se afastando da concretez das coisas. Quanto maior o campo que uma lei abarca, mais abstrata e superficial ela se torna.
A verdade do entendimento não são as leis determinadas, que nunca abarcam a totalidade, mas a lei universal, como, por exemplo, “[...] a lei da queda da pedra e a lei do movimento das esferas celestes” (PhG, § 150) que foram concebidas por uma só lei. Todavia, esta lei não manifesta nenhum conteúdo determinado. Ela é apenas uma abstração do intelecto. Tal lei do intelecto carece de necessidade, pois “[...] para chegar à formulação da lei é necessário partir de um fato, e o fato é um pressuposto não deduzido pela lei; ser pressuposto significa que simplesmente se encontra ou deriva de outro quanto à sua existência; em ambos os casos, a sua existência é contingente e a pretensa necessidade da lei move-se dentro desta ineliminável contingência [...]” (CHIEREGHIN, 1994, p. 79). Se a necessidade da lei se sustenta em algo que não tem condições de ser necessária, assim a necessidade é apenas uma palavra vazia. Desta forma, se origina a tautologia “[...] que a consciência comum manifesta perante a pretensão das leis quanto à clarificação e explicação dos fenômenos. Aquilo que o intelecto apresenta como a conexão necessária entre diferentes elementos (espaço e tempo na queda dos graves, pólos positivo e negativo na "eletricidade) constitui na realidade não a explicação do porquê ou da causa do seu existir, mas unicamente do
como do seu produzir-se, e, para quem esperava uma demonstração de causa, esta explicação redunda numa tautologia balofa. Assim, se depois de ter aceito que o relâmpago deriva de duas cargas opostas, negativa e positiva, se perguntar por que motivo tal acontece, a resposta é que aquilo é a manifestação de uma força, a eletricidade, que é constituída por duas cargas opostas, de tal modo que tem de manifestar-se assim” (CHIEREGHIN, 1994, p. 79).
O intelecto, buscando explicações para as leis, permanece na mera tautologia. Isso é perturbante para ele. A tautologia demonstra que o entendimento não é capaz de entender o movimento, constituinte essencial da força. As oposições que ele pensava dominar, inserindo-as em leis supra-sensíveis, acabam ressurgindo. O problema desta explicação do fenômeno é que ela é apenas mais uma abstração, nos revelando somente o esqueleto quantitativo da natureza. A lei assim estabelecida é uma relação exterior às coisas que ela une; não dá conta da necessidade de sua ligação. Uma tal forma de explicação é tautológica: consiste em concentrar toda realidade em elementos idênticos, em tentar explicar o objeto pelo objeto.
Assim, ocorre o surgimento de um mundo invertido, ou seja, um mundo oposto ao contemplado, que é um segundo mundo supra-sensível. “Invertido ou pervertido (verkehrt), o mundo é o contrário do que parece ser. Abrigando em si a diferença universal, a coisa é sempre igual a si na absoluta desigualdade. O homônimo expressa essa diferença na própria repulsão, porque, tendo-se tornado o oposto, absorveu a diferença que deixou de ser diferente” (SANTOS, 2007, p. 166). Viu-se que o primeiro mundo supra-sensível foi o reino das leis (reino calmo, sem mudanças). Este mundo é “apenas a elevação imediata do mundo percebido ao elemento universal” (PhG, § 157). Agora, o segundo, é o mundo invertido (tudo fica o oposto do que é). O mundo invertido pode ser percebido facilmente em fenômenos físicos e em relações éticas. Em fenômenos elétricos e magnéticos, pólos iguais se repelem e pólos contrários se atraem. No âmbito da ética, o delinquente, ao ofender alguém, tendo como objetivo afirmar o seu próprio arbítrio, acaba por perder o arbítrio devido a pena que lhe é cabível; não obstante, é a própria pena que permite ao delinquente reconquistar a honra que ele havia perdido. Porém, estes mundos (mundo contemplado e mundo invertido), na verdade, são o mesmo mundo. O mundo invertido não passa de um caso extremo da unilateralidade do entendimento. O entendimento descobre que há um interior nas coisas. Esse interior é a oposição de sua manifestação sensível, ou seja, é o fenômeno. Porém, Hegel não concorda com esta visão dualista da realidade. Não há um fosso instransponível entre o fenômeno e a coisa-em-si, como dizia Kant.
Nessa discussão, surge o conceito do infinito, pois nele se “tem o Outro em si mesmo” (PhG, § 160). Somente assim o mundo invertido “é a diferença como interior, ou como diferença em si mesmo, ou como infinitude” (PhG, § 160). Nas palavras de Hegel, o infinito “deve-se chamar a essência simples da vida, a alma do mundo, o sangue universal, que onipresente não é perturbado nem interrompido por nenhuma diferença, mas que antes é todas as diferenças como também seu Ser-suprassumido” (PhG, § 162). Ele ressalta também que “a infinidade já era, sem dúvida, a alma de tudo o que houve até aqui; mas foi no interior que primeiro ela brotou livremente” (PhG, § 163). A infinidade, ou seja, a contradição – diferente das contradições anteriores – define a essência da consciência-de-si.
Em última análise, a consciência (sendo agora o entendimento) tem como objeto o universal incondicionado (contraditório). Por isso, sua verdade é a unidade. Seu objeto, inicialmente, é a força. Essa, ao permanecer em seu interior é ser-em-si e ao se exteriorizar é ser-para-outro. Assim, como fica a unidade? Hegel responde que a diferença está no pensamento e para salvar a unidade o pensamento formula a lei. O
território da lei é o supra-sensível. Só que essas leis criadas pelo intelecto são meras abstrações do intelecto, chegando a ser consideradas tautologias. Como conseqüência dessa tautologia surge o mundo invertido. Apesar da aparente diferença dos dois mundos, eles são o mesmo. Disso, a consciência, que antes não se reconhecia no objeto passa a se reconhecer nele tornando-se consciência-de-si. Até aqui, a consciência considerava o mundo como algo diferente e independente, ou seja, ela buscava o objeto fora dela mesma. Contudo, ela se reconheceu no objeto, tornando-se autoconsciência. O objeto é a consciência de si. Nas três figuras da consciência (certeza sensível, percepção e entendimento), o objeto lhes era independente a elas. A identificação dos mundos opostos (do reino calmo das leis e do mundo invertido) faz com que surge o conceito do infinito e esse revela a consciência-de-si. A passagem da consciência à consciência-de-si ocorre neste momento, quando a consciência se reconhece no objeto.
A consciência-de-si é a segunda etapa da Fenomenologia do Espírito. Inicialmente, ela é desejo e quer possuir as coisas. Porém, ao se defrontar com outra consciência-de-si, há uma luta de vida ou morte. Na luta não há morte, mas submissão (do servo ao senhor). Nessa relação dialética, onde o senhor se limita a desfrutar das coisas produzidas pelo trabalho do servo, acaba ocorrendo uma inversão dos papéis. E através do estoicismo, do ceticismo e da consciência infeliz a consciência-de-si alcança sua plena consciência. Na consciência-de-si, Hegel trata da dialética do desejo, a dialética do senhor e do escravo e, por fim, da liberdade da consciência-de-si.
Para a consciência, o objeto era distinto dela: “o essente da certeza sensível, a coisa concreta da percepção, a força do entendimento” (PhG, § 166). Agora, no entanto, o objeto é para si mesma. Segundo Hegel, “com a consciência-de-si entramos, pois, na terra pátria da verdade” (PhG, § 167). A consciência-de-si inicia se mostrando através do desejo, do apetite. Ela possui a tendência de se apropriar das coisas, fazendo tudo depender de si. Busca o outro para poder ser e acaba por destruí-lo como outro. O objeto do desejo é a vida, porque ela é a estrutura homóloga à da consciência-de-si, pois a vida é a reflexão do ser sobre si. Hegel define a vida, dizendo que a sua “essência é a infinitude, como o Ser-suprassumido de todas as diferenças, o puro movimento de rotação, a quietude de si mesma como infinitude absolutamente inquieta, a independência mesma em que se dissolvem as diferenças do movimento; a essência simples do tempo, que tem, nessa igualdade-consigo-mesma, a figura sólida do espaço” (PhG, § 169).
Enfim, a vida, sendo infinita, ultrapassa todas as diferenças e determinações. A singularidade de cada ser vivo se reconstitui na unidade do todo. Segundo Lima Vaz, “de um lado, o egoísmo radical do desejo descreve a figura da consciência-de-si na sua identidade vazia e, de outro, o objeto consumido na satisfação mostra-se incapaz de exercer a mediação exigida para que o saber de si mesmo se constitua como resultado dialético e, portanto, fundamento do saber do objeto” (1981, p. 16).
O desejo, não obstante, busca um outro Eu, ou seja, quer um objeto que realiza a mesma operação que o sujeito. O outro, para poder ser suprassumido, deve ser independente. Para satisfazer-se, a consciência-de-si necessita de uma outra consciência-de-si. Então, ela só se realiza como unidade do seu Si como seu ser-Outro. Somente assim a consciência se encontra. “A consciência-de-si é em si e para si quando e por que é em si e para si para uma Outra; quer dizer, só é como algo reconhecido” (PhG, p. 178). Para haver consciência-de-si, deve existir outra que vem de fora. As duas agem. Nota-se, assim, uma diferença com o movimento de desejo, pois aí o objeto ficava diante da consciência. Agora é diferente. O objeto, para Hegel, é independente, “[...] sobre o qual portanto nada pode fazer para si, se o objeto não fizer em si o mesmo que ela nele faz. O movimento é assim, pura e simplesmente, o duplo movimento das
duas consciências-de-si. Cada uma vê a outra fazer o que ela faz; cada uma faz o que da outra exige – portanto faz somente o que faz enquanto a outra faz o mesmo. O agir unilateral seria inútil; pois, o que deve acontecer, só pode efetuar-se através de ambas as consciências” (PhG, p. 182).
Todavia, o primeiro encontro das consciências surge como uma desigualdade, não sendo uma identificação amigável, mas se mostra como uma desigualdade de ambas as consciências-de-si. Assim, “[...] um extremo é só o que é reconhecido; o outro, só o que reconhece” (PhG, p. 185). Neste ponto surge a luta pelo reconhecimento, ou seja, ou ocorre a supressão de uma consciência pela outra ou a submissão. Porém, nesta relação não ocorre um reconhecimento verdadeiro. Hegel denomina este momento como a luta de vida ou morte. No começo, qualquer outro que apareça já possui o rótulo de negativo. Assim, é imediato. Enfrentam-se como indivíduos, não sabendo, ainda, que ambas são consciência-de-si. Cada uma está certa somente de si mesma. Até mesmo isso, a certeza de si, não tem verdade nenhuma. Isso só ocorreria se seu ser-para-si fosse um objeto independente. Mas conforme o conceito reconhecimento, “isso não é possível a não ser que cada um leve a cabo essa pura abstração do ser-para-si: ele para o outro, o outro para ele; cada um em si mesmo, mediante seu próprio agir, e de novo, mediante o agir do outro” (PhG, § 186).
Mostrar-se desta forma é afirmar o seu desapego à vida, é mostrar-se desvinculado a qualquer ser-aí determinado. Cada um visa à morte do outro e, assim, acaba pondo em risco a própria vida. As duas consciências se enfrentam através de uma luta de vida ou morte. Fazem isso para “elevar à verdade, no Outro e nelas mesmas, sua certeza de ser-para-si” (PhG, § 187). Não obstante, é relevante ressaltar que a morte de algum dos lados não levaria adiante o processo do reconhecimento. Aquele que não arriscou a sua vida pode ser reconhecido como pessoa, mas não como uma consciência-de-si independente. Arriscando a própria vida, acaba por visar à morte do outro.
Todavia, ao suprimir a vida, suprassume a verdade. Assim, a consciência percebe que a vida lhe é tão essencial quanto a consciência-de-si. Nota-se, então, que cada consciência busca mostrar-se autêntica consciência-de-si. Faz isso se desapegando da vida corporal. Uma delas renuncia para conservar a vida, tornando-se o escravo. A outra, em contrapartida, transforma-se em um autêntico ser-para-si, chamando-se de senhor. O senhor, segundo Hegel, é a consciência-para-si. Mas, para haver relação consigo deve haver uma relação com outra consciência. O escravo se relaciona negativamente com a coisa e a suprassume, não obstante, não a aniquila, pois a coisa é independente para ele. Assim, ele só a trabalha. Já o senhor acaba com a coisa (o desejo) a mudando – através do escravo – em gozo. Segundo Hegel, o senhor “se conclui somente com a dependência da coisa, e puramente a goza; enquanto o lado da independência deixa-a ao escravo, que a trabalha” (PhG, § 190).
O escravo se mostra inessencial e o senhor alcança o seu duplo reconhecimento, quando o escravo elabora a coisa e quando fica dependente de seu ser biológico. Porém, é neste ponto que a consciência escrava se dirige ao reconhecimento, pois “o que o escravo faz é justamente o agir do senhor” (PhG, p. 191). Contudo, para o reconhecimento total da consciência escrava faltaria que o senhor operasse sobre si o que faz ao escravo (outro) e vice-versa. Sendo que o senhor, para chegar à certeza de si, opera numa consciência dependente, jamais terá a verdade de si. Assim, “sua verdade é de fato a consciência inessencial” (PhG, § 192), ou seja, escrava. Em contrapartida, o escravo se tornará uma verdadeira consciência. Sendo que ocorre uma relação dialética entre o senhor e o escravo, o senhor depende do escravo, pois necessita que ele o reconheça como tal.
Em relação à consciência escrava, a sua verdade é o senhor. Por isso, sentiu angústia, pois sentiu medo da morte. Tudo o que “havia de fixo, nela vacilou” (PhG, p. 194). Esse vacilar é a negatividade do ser-para-si, não permanecendo na generalidade. Nas palavras de Hegel, “servindo, suprassume em todos os momentos sua aderência ao ser-aí natural; e trabalhando, o elimina” (PhG, p. 194). Só o medo do escravo não é suficiente para realizar para-si toda a verdade. O trabalho também possui o seu papel fundamental para a formação do escravo. É nele que a consciência descobre a sua verdade do ser-para-si. Pelo trabalho, o escravo supera a sua condição de consciência escrava e o senhor, que continua dependente do escravo e de seu trabalho, rebaixa-se. Ocorre assim, a inversão das posições. Em suma, “para que haja tal reflexão são necessários os dois momentos: o momento do medo e do serviço em geral, e também o momento do formar; e ambos ao mesmo tempo de uma maneira universal” (PhG, § 196). O escravo deixou de ser-para-outro para se tornar ser-para-si. É relevante ressaltar que não houve um reconhecimento verdadeiro. Isso só seria possível se, por meio da liberdade, uma consciência-de-si sacrificar sua independência para uma outra consciência-de-si.
Mesmo assim, a consciência-de-si alcança a sua plena consciência. E isso só é possível por meio das seguintes etapas sucessivas: estoicismo, ceticismo e consciência infeliz. Assim, temos agora uma consciência que pensa e que é liberdade, pois seu objeto “não se move em representações e figuras, mas sim em conceitos” (PhG, § 197), ou seja, conceito significa a identificação imediata com a consciência, sendo que a representação é ser outra a ela.
O princípio do estoicismo “figura que a consciência é a essência pensante e que uma coisa só tem essencialidade, ou só é verdadeira e boa para ela, na medida em que a consciência aí se comporta como essência pensante” (PhG, § 198).
Hegel formula críticas em direção ao estoicismo, demonstrando as suas limitações. Ei-las: de abstração: “a liberdade do pensamento tem somente o puro pensamento por sua verdade; e verdade sem a implementação da vida” (PhG, § 200); de formalismo: salientando que os estóicos detinham um pensamento sem conteúdo; e negação inacabada:“essa consciência pensante, tal como se determinou, como liberdade abstrata, é portanto somente a negação incompleta do ser-outro” (PhG, § 201). Em linhas gerais, o estoicismo representa a liberdade da consciência. Por isso, senhoria e escravidão não quer dizer nada aos estóicos, pois eles são iguais. Querendo libertar o homem de suas paixões, o estóico acaba o isolando. Para Hegel, isso gera a liberdade abstrata. Por fim, o estóico ficará no mero pensar, separando novamente universalidade e singularidade, retendo apenas a universalidade.
Já o ceticismo [tanto o ceticismo – para os céticos, um critério de verdade é impossível - como as demais figuras são superadas, mas isso não significa que elas são desnecessárias, porém que fazem parte do itinerário e, portanto, são importantes para se chegar ao conhecimento verdadeiro. Todas as figuras são importantes para chegar à verdade da ciência, ou seja, a identidade entre certeza e verdade. O ceticismo também o é, no aspecto de sua negatividade. Conforme Meneses, “é de notar que a apresentação desta consciência como não-verdadeira não é algo puramente negativo, como representa unilateralmente uma das figuras ou etapas dessa consciência imperfeita: o ceticismo comum. Esse vê no resultado apenas o pura nada e dele não sai; e tudo o que encontra joga neste abismo vazio. Quando a consciência se dá conta de que o nada é sempre negação de alguma coisa, que é determinado e tem um conteúdo, efetua a transição para uma nova forma; e através da negação vai realizando o processo completo das sucessivas figuras da consciência” (1992, p. 31)], vindo do estoicismo, busca transformar o afastamento do mundo, visado pelos estóicos, em negação do mundo.
Assim, partem da última crítica citada acima que Hegel faz aos estóicos, ou seja, os céticos realizam a negação iniciada, porém, inacabada dos estóicos. Para Hegel, “fica patente que como o estoicismo corresponde ao conceito da consciência independente, manifestada como relação de dominação e escravidão, assim o ceticismo corresponde à realização da mesma consciência como atitude negativa para com o ser-Outro, [isto é], ao desejo e ao trabalho” (PhG, § 202).
Mas, a consciência cética ultrapassa o que o desejo e o trabalho não realizaram, ou seja, a negação para a consciência-de-si. É relevante destacar que é no ceticismo que a consciência utiliza pela primeira vez a dialética como movimento seu, eliminando falsas independências. Também nesta figura Hegel realiza algumas críticas, demonstrando a sua inconsistência. São elas: a consciência cética é prematura, pois não surge “como um resultado que tivesse seu vir-a-ser na retaguarda” (PhG, § 205); é confusão movimentada, pois oscila entre “uma consciência que é empírica” (PhG, § 205) e entre “uma consciência universal igual-a-si-mesma” (PhG, § 205). Assim, a consciência perde-se na sua inconsistência. O ceticismo acaba negando tudo. Isso gera, na consciência-de-si, uma autocontradição.
A próxima figura, denominada de consciência infeliz, surge no lugar do ceticismo, reunindo o que ele havia separado. A consciência infeliz lembra a dualidade senhor-escravo, mas não como duas figuras exteriores a ela, porém interiores. Inicialmente há duas consciências opostas para ela: uma é imutável e a outra é mutável e inessencial. Esta última deve procurar se libertar desta posição. Todavia, tendo conhecimento do imutável, deve buscar a libertar-se do inessencial, ou seja, de si mesma. Buscar o pólo superior, ou seja, o imutável, mas, na realidade, já o possui. Com isso ocorre uma unidade na duplicidade da consciência. Mesmo assim, continua a existir uma diversidade entre elas. O relacionamento entre ambas as consciências percorre o seguinte trajeto: “1° - o Imutável é oposto a singularidade em geral; 2° - o Imutável é um singular oposto a outro singular; 3 ° - o Imutável, enfim, é um só com o singular” (PhG, § 211).
No início, a consciência cindida almejava suprassumir a consciência singular para se tornar imutável. Agora, tendo o imutável assumido uma figura singular, a consciência visa encontrá-lo figurado. As relações que a consciência inessencial e mutável realiza para alcançar o ser-uno é o seguinte: “1º - como pura consciência; 2º - como essência singular que se comporta ante a efetividade como desejo e trabalho; 3º - como consciência de ser-para-si” (PhG, § 214). Como pura consciência, ocorre uma presença imperfeita do imutável – pois ele não está presente por iniciativa da consciência e não por sua própria iniciativa -, mas, mesmo assim, é superior do puro pensar dos estóicos e dos céticos. Assim, “a consciência [...] apenas caminha na direção do pensar e é fervor devoto” (PhG, § 217). Através do sentimento a alma visa atingir o imutável figurado, pois pensa ser conhecida por seu objeto que é singular, mas nada consegue.
Como essência singular, a alma, agradecida ao imutável pelo desejo, trabalho e gozo dos bens da terra, encontra-se em-si e para-si na ação de graças (onde busca contrabalançar a graça recebida). Por fim, há a consciência de ser-para-si. Segundo Hegel, “na primeira relação era somente o conceito da consciência efetiva, ou a alma interior, que ainda não era efetiva no agir e no gozo. A segunda relação é essa efetivação como agir e gozar exteriores; mas a consciência que retorna dessa posição é uma experiência que se experimentou como efetiva e efetivante: uma consciência para a qual ser em si e para si é verdadeiro” (PhG, § 223).
A consciência-de-si, por causa de sua singularidade (seu inimigo), se sente longe do imutável. Mas, no funda da angústia que sente há uma consciência da união
dela com o imutável. Passa a destruir o seu inimigo. Por isso, ela se mortifica, renunciando aos bens, ao gozo. “Precisa de um meio termo que subsuma sua vontade singular à universal, e encontra o Ministro Mediador, que pronuncia a remissão e a reconciliação” (MENESES, 1985, p. 68). Perante toda a mortificação, “a consciência podia dar provas de sua renuncia a si mesma; porque só assim desvanece a fraude que se aloja no reconhecimento interior da ação de graças” (MENESES, 1985, p. 170), que atribui tudo a um dom do alto. Só que todo o sacrifício que a consciência realizou é operação do imutável, comunicada pelo ministro. Por isso, a consciência infeliz não percebe que toda a renuncia realizada lhe trouxe o universal.
A consciência infeliz, caracterizando o cristianismo da Idade Média, mesmo estando neste mundo, busca o objeto em um outro mundo inatingível. Para ela, qualquer aproximação à divindade significa uma nulidade de si mesma. A superação disso, ou seja, quando a consciência infeliz perceber que a verdade não está fora, mas dentro dela, levará a uma nova síntese. Esta terceira etapa é a razão – unidade das duas etapas anteriores. Como razão, segundo Hegel, a consciência “está certa de si mesma como [sendo] a realidade” (PhG, p. 232). Essa é a visão do idealismo. Por fim, ao analisar as três figuras da liberdade da consciência, observou-se que no estoicismo ocorre uma cisão da universalidade e da singularidade; no ceticismo, há uma busca em uni-los; e na consciência infeliz, sendo que a cisão não foi solucionada, a consciência é contraditória, por isso, infeliz.
Hegel mostra que a consciência-de-si é desejo e quer possuir as coisas. Porém, ao se defrontar com outra consciência-de-si, numa luta de vida ou morte, ela se realiza. Na luta não há morte, mas submissão (do servo ao senhor). Nessa relação dialética, onde o senhor se limita a desfrutar das coisas produzidas pelo trabalho do servo, acaba ocorrendo uma inversão dos papéis. E através do estoicismo, do ceticismo e da consciência infeliz a consciência-de-si alcança sua plena consciência. A grande contribuição hegeliana é que toda forma de consciência tem a sua verdade cognoscível por meio da história, mas toda ela tem que dar o seu lugar a uma nova figura, até atingir o saber absoluto, “o espírito que se sabe” (PhG, p.798). A Fenomenologia, em última análise, descreve o processo de transformação da certeza em verdade.
Toda consciência é consciência-de-si e toda consciência-de-si se descobrirá como razão. Ela surge quando a consciência adquire a “certeza [...] de ser toda a realidade” (PhG, § 233). Por meio do caminho desenvolvido pela razão será mostrada a unidade entre o ser e o pensar, a universalidade e a singularidade e o sujeito e o objeto. O caminho é composto por três momentos. Ei-los: a razão que observa a natureza (revisa as figuras da consciência); a razão que age (revisa as figuras da consciência-de-si); e, por fim, a razão que adquire a consciência de ser espírito.
Na razão, a consciência está certa de ser a verdade. Segundo Hegel, “no pensamento que captou – de que a consciência singular é em si a essência absoluta -, a consciência retorna a si mesma” (PhG, § 231). Quando ela era a consciência infeliz, o seu em-si é um além de si mesma. Ela renunciava a consciência singular. Agora é diferente, pois ela descobre que tudo lhe pertence. O Outro não é mais uma ameaça. Desta forma, “seu pensar é imediatamente, ele mesmo, a efetividade; assim, comporta-se em relação a ela como idealismo” (PhG, § 232). Portanto, adota o idealismo. Fazendo isso, o mundo é visto como se fosse pela primeira vez.
Antes não havia compreensão acerca do mundo, mas somente desejo e trabalho. A consciência retirava-se do mundo. Agora, assumindo sua singularidade como realidade verdadeira, tem interesse no mundo, pois “a consciência tem a certeza de que só a si experimenta no mundo” (PhG, § 232). O idealismo - a primeira figura da razão - apresenta a razão como sendo “a certeza da consciência de ser toda a realidade” (PhG, §
232). Já foi visto que no primeiro momento denominado de consciência, a verdade estava no ser; na consciência-de-si, a verdade se determinava apenas para a consciência; agora, no entanto, há uma única verdade: “ou o Em-si somente é, enquanto é para a consciência; e o que é para ela, é também em si” (PhG, § 233).
Quando a consciência surge como razão desconhece todo o caminho percorrido. Por isso, no seu início, o idealismo tem defeitos: ele é imediato (“Eu sou Eu”) e, conseqüentemente, abstrato. A consciência enquanto razão pode oferecer uma união imediata do eu com o objeto, porém é só no saber absoluto que se terá a plenitude da realidade que esta identidade poderá significar. Portanto, a forma mais simples em que a razão se exprime é quando ela afirma “eu sou todas as realidades”. Esta é a manifestação mais pobre e indeterminada da tentativa de a consciência atingir a essência através do que lhe é próprio enquanto razão. Com a razão há uma identidade imediata entre o ser e o pensar. A plenitude da identidade só ocorrerá no saber absoluto.
Hegel critica o idealismo de Fichte e de Kant dizendo que suas formulações “são insatisfatórias e terminam caindo no empirismo que queriam evitar: um idealismo vazio não realiza o que proclama. A realização plena de sua proposta passa por outro e mais longo caminho” (PhG, p. 77???). Hegel não concorda com o idealismo kantiano, quando esse afirma que a unidade simples da consciência seja imediatamente a essência do real e que haja na categoria diferenças e espécies, em número determinado.
Enfim, a razão se articula, em primeiro lugar, quando a consciência procura a própria efetividade no elemento imediato do ser e, como razão observativa, tenta reduzir a leis a relação entre orgânica e inorgânica e a própria estrutura do organismo vivo; num segundo momento, quando ela procura o próprio apaziguamento na unidade com outras autoconsciências; por fim, quando é levada a reconhecer, no operar de todos e de cada um, a viva compenetração de singularidade e de universalidade. A razão que observa irá repetir o movimento que a consciência executava no elemento do ser (certeza sensível, percepção e entendimento); a razão que opera irá repetir o movimento da consciência-de-si (passando da dependência para à liberdade da consciência-de-si).
Na etapa denominada a “razão que observa”, a razão retorna ao caminho que já percorreu, porém “não como na certeza de um que apenas é Outro, e sim com a certeza de ser esse Outro mesmo” (PhG, § 240). A razão sabe que o mundo é racional, pois ele é penetrável por ela mesma. Nesse momento, a consciência muda de atitude diante da realidade, pois agora o outro não a ameaça, mas se identifica com ele. Hegel ensina que por meio da observação que a ciência realiza em meio a multiplicidade de fatos, ela acaba buscando a razão. A consciência, chamada de razão, observa e experimenta, não ficando apenas coletando dados como fazia na certeza sensível e na percepção. Agora ela classifica e formula leis. O problema é que ela não capta a essência das coisas sensíveis, transformando somente as coisas em conceitos. Por isso, a razão deixa de observar as ciências naturais e biológicas e passa a observar a consciência humana. Ela se depara com uma infinidade de faculdades, paixões e inclinações. Busca, em meio a isso, encontrar uma ligação entre espírito e seu mundo. Os resultados dessa busca são falhos, pois não alcançam seus objetivos.
A razão busca conhecer-se reexaminando o conteúdo anterior da consciência sob nova luz. Agora a razão observa e experimenta e não fica apenas coletando dados como fazia antes. Num primeiro momento, a razão irá observar a natureza; num segundo, o espírito; e, num último momento, a relação entre ambos como ser sensível.
Na observação da natureza, a razão busca abranger a totalidade das coisas. Assim, ela observa, classifica, promulga leis e experimenta, para, desta forma, ter a lei em sua pureza. Nesta busca que a razão realiza, o estudo do orgânico tem um lugar de destaque, pois ele é dotado de uma unidade interna que rege suas relações com o meio.
A essência do ser vivo é a sua finalidade imanente. Num organismo, tudo está subordinada à sua unidade interna. Todavia, o ser vivo não é o universal concreto como o ser espiritual. Por isso, a razão que observa não consegue encontrar nas suas determinações um sistema racional de figuras. Como a razão não se encontrou de forma satisfatória no estudo da natureza, ela passa a investigar a consciência humana, com esperança de aí se encontrar. A busca agora é de leis que regem o pensamento. Essas leis não são as leis da realidade, mas as leis do pensamento. Aqui a razão observadora se engana, pois essas leis são o próprio movimento puro do conceito, que não somente tem um conteúdo, mas é o próprio conteúdo. Assim, ao observar as leis do pensamento, a razão tomou como coisa o próprio movimento do espírito; porém, desta maneira, ela não chega a entender o seu objeto. Procura então a observar e a catalogar as outras atividades do espírito. Busca encontrar uma correlação entre o espírito e o seu mundo. O que produz é uma ciência psicológica falha pela base, pois não estabelece as leis que pretende. Portanto, a razão observadora encontrou no mundo inorgânico o conceito sob a forma de lei; observando o mundo orgânico, encontrou o conceito como vida; observando a consciência-de-si, encontrou o conceito como conceito.
Para encontrar-se a si mesmo no outro, a razão deve ultrapassar o momento da observação, passando para o momento da ação, ou seja, passar para o momento onde há a “razão que opera”. As figuras que sucedem à razão observativa são de interesse prático relevante, pois não será mais tratado o modo como a razão se acha na exterioridade, mas a atividade com que a razão se produz a si mesma. Aqui, Hegel faz pela primeira vez a distinção entre moralidade e eticidade. A eticidade é o reconhecimento entre as consciências-de-si. Isso existe na vida de um povo, em que as essências singulares se sacrificam para atingir a essência universal que é a razão. Tudo nesse mundo é recíproco. O individuo vive imerso no ethos e costumes de um povo livre e é feliz. Já no mundo da moralidade, o indivíduo não vive com a tranqüilidade e a felicidade do mundo da eticidade. Ele está longe da tranqüila harmonia. Desta forma, a inquietude moral pode ser tomada como se o calmo reino da eticidade tivesse sido perdido ou como se ainda não tivesse sido atingido.
O movimento em busca desse mundo da eticidade perpassa por três figuras morais: o prazer e a necessidade; a lei do coração e o delírio da presunção; e, a virtude e o curso do mundo. O prazer e a necessidade representa a figura em que o homem busca a felicidade no prazer e no gozo. Porém, só encontra a necessidade, identificando-se com ela. Na lei do coração e o delírio da presunção, o homem segue a lei do coração individual e tenta imprimi-la no mundo real. Porém, nota que o que ele quer é muito perverso. Para fugir disso, deseja sacrificar sua própria individualidade. A virtude e o curso do mundo mostra o homem virtuoso, tentado realizar tal sacrifício, mas ainda de modo abstrato, acabando sendo derrotado pelo curso do mundo. Portanto, num primeiro caso, os indivíduos e os seus impulsos são concebidos como imediatamente absorvidos na substância ética de um povo, segundo a representação que Hegel tem da eticidade imediata do mundo grego; num segundo momento, considera-se que a unidade da eticidade está perdida, porque é apenas imediata.
A “razão que unifica” é a síntese da razão que observa e da razão que age. Agora, a razão chega, na sua experiência ao conceito de ser toda a realidade. A razão que unifica encontra nela mesma o conteúdo do mundo, sendo, na certeza de si mesma, toda a realidade. A consciência-de-si descobre-se como razão. Ela descobre que a substância ética é aquilo que ela está imersa, ou seja, o ethos da sociedade e do povo em que vive. Em linhas gerais, a razão é onde ocorre a unidade do sujeito e do objeto, da universalidade e da singularidade.
A quarta etapa do itinerário fenomenológica é denominada de espírito. Foi visto que toda consciência (em si ou ser do espírito) é consciência-de-si (em ser-para-si do espírito) e essa se descobre como razão (na união do ser-em-si e do ser-para-si, ou seja, na identidade do ser e do pensar). A razão irá se realizar como espírito. O espírito é a razão que se realiza em um povo livre e em suas instituições. Ele é divida em três figuras: o espírito verdadeiro: a eticidade; o espírito alienado de si mesmo: a cultura; e, o espírito certo de si mesmo: a moralidade. Essas figuras não são mais figuras abstratas da consciência, mas do mundo.
A eticidade, ou seja, o mundo ético, apresenta uma dualidade entre a universalidade e a singularidade. Nesse mundo, a lei humana está representada pela comunidade (universal) e a lei divina, pela família (singular). O dinamismo entre o universal e o singular faz com que a comunidade e a família se complementam e se unificam. Porém, essa tranqüilidade é rompida com a ação, que é a passagem de uma para o outro dos opostos. A ação caracteriza-se como culpada, pois, ela faz com que escolhido um dos lados, cometendo o delito de violar o outro lado da essência. Ao reconhecer a culpa, admite outra lei como efetiva. Conforme Meneses, “o mundo ético está fadado ao desaparecimento, porque ao passar de seu conceito para a ação, suas contradições vêm à tona. A oposição das duas leis faz que a ação segundo uma delas seja delito e culpa para a outra lei. A tragédia grega ilustra genialmente esse conflito” (1992, p. 46).
No lugar do mundo ético surge uma multiplicidade de indivíduos, chamados de pessoas. Contudo, a unidade do mundo ético irá se alienar. O espírito alienado pertence ao mundo da cultura e nele não se reconhece. Há uma alienação no mundo da efetividade e no mundo do pensamento (que se divide em mundo da fé e em mundo da pura intelecção do Iluminismo). O mundo da efetividade é produzido pela consciência-de-si, porém ela o considera estranho e o deve apoderar. A fé é um pensar que vai além da pura consciência, chegando a representação. Ela cria um mundo supra-sensível. A pura intelecção, representante do Iluminismo e relevante para a época declara guerra à fé, chamando-a de supersticiosa. Desse combate, a Ilustração sai vitoriosa. Além disso, ela se divide em materialista e em racionalista (deísta). O ponto final alcançado pelo Iluminismo foi o utilitarismo.
A fase do Terror da Revolução Francesa, em que a morte é a sua única obra, dirigida pelos jacobinos através da figura de Robespierre, revela o fracasso do movimento. Isso foi inevitável, não sendo um acidente de percurso, pois o que se almejava era a liberdade absoluta sem mediação alguma. Todavia, ao enfrentar a morte, o espírito realiza uma inversão. Perante a liberdade absoluta, o espírito alienado retorna a si e de dirige parta a consciência moral. A última figura do espírito denomina-se o espírito certo de si mesmo (a moralidade).
A consciência que é consciência-de-si se descobre, agora, como razão. Essa se realiza como espírito, que por meio da religião alcança o saber absoluto. Portanto, a religião é o meio que o espírito toma para chegar ao saber absoluto. Na religião, o espírito toma consciência de si mesmo, mas somente do ponto de vista da consciência da essência absoluta, pois ela ainda está no elemento da representação.
É no saber absoluto ou conceitual, ou seja, na filosofia, que o espírito consciente de si supera toda a dualidade. Superando o saber representativo da religião, o saber absoluto chega ao puro conceito, que é o sistema da ciência. O sistema Hegel expõe na Lógica, na Filosofia da Natureza e na Filosofia do Espírito. Todos os momentos e as figuras do itinerário fenomenológico são etapas do vir-a-ser do saber absoluto, que é o espírito que se sabe como espírito. Conforme Moraes, “o saber absoluto não é o saber absolutamente tudo, mas o saber que se sabe a si mesmo ou o momento em que o
espírito alcança o saber de si mesmo como espírito” (2003, p. 274). A identidade de ser e pensar é alcançada somente no final da Fenomenologia, ou seja, no saber absoluto. Conforme Luft, “a unidade dos opostos é a chave-mestra da lógica dialética hegeliana. A busca da unidade dos opostos é a procura constante do espírito de encontrar-se com a verdade, com o lógos racional que ele é capaz de dr a si mesmo através de sua ação. E a Fenomenologia mostrará que este encontro do lógos que anima a ação concreta do espírito – tanto do espírito finito (quando executa uma ação racional) quanto do absoluto -, será também o encontro com o lógos que habita o mundo: identidade de ser e pensar” (1995, p. 38).
Referências: ver referências da dissertação disponível em:
http://repositorio.pucrs.br/dspace/handle/10923/3539
Referências: ver referências da dissertação disponível em:
http://repositorio.pucrs.br/dspace/handle/10923/3539
Nenhum comentário:
Postar um comentário