domingo, 23 de setembro de 2012

RESENHA DO LIVRO VII DE "A REPÚBLICA", DE PLATÃO

O livro VII de A República descreve as diferentes etapas de ascensão de um filósofo para a sabedoria suprema – a ciência do Bem – com o propósito de torná-lo apto a governar a cidade ideal. Isso se verifica, em primeiro lugar, no sentido da alegoria da caverna; em seguida, na definição das ciências mais indicadas para a formação do filósofo; e, por fim, sobre a formação e a seleção progressiva dos filósofos.
O mundo da caverna representa o mundo dos sentidos, ao passo que o mundo diurno representa o mundo inteligível. Ambos possuem a respectiva fonte de luz, ou seja, a caverna é iluminada por um fogo, enquanto o dia o é pela luz do sol. O fogo representa o sol visível que ilumina nosso mundo sensível, enquanto o sol da alegoria, o Bem que ilumina o mundo inteligível. Existem dois níveis de realidade: um nível inferior de sombras, de reflexos, e um nível superior de realidades verdadeiras. Assim como o mundo diurno é mais claro e mais real do que o mundo da caverna, o mundo inteligível é mais claro e mais real do que o mundo sensível. Em última análise, a alegoria da caverna representa as diferentes etapas da educação e da progressão do filósofo no sentido da ciência do Bem. Tendo-a alcançado, deverá ele orientar com sua sabedoria a conduta dos homens e assumir o governo da cidade. Será forçado descer novamente à caverna e, uma vez que se tiver novamente habituado à obscuridade, estará em melhores condições de reconhecer os verdadeiros modelos das imagens e das sombras. Assim, poderá instaurar não uma sombra de cidade, mas um modelo de cidade perfeita.
Platão, num segundo momento, ressalta a importância das ciências que visarão preparar melhor a formação do filósofo. A educação, diz ele, consiste em voltar à alma do mundo obscuro da opinião para a luz da verdade. De que maneira isso é possível? Ensinando o filósofo a se liberar dos sentidos. Nesse aspecto, é que é útil a matemática. Platão distingue as seguintes ciências: a aritmética, a geometria (estereometria), a astronomia e a ciência da harmonia. Tais ciências não devem ser estudadas sob o prisma de seus fins utilitários, mas no que respeita à arte da guerra, que entra na formação militar do filósofo que é, em primeiro lugar, um soldado. Se a matemática permite uma melhor percepção das realidades sensíveis, sua utilidade reside, essencialmente, na capacidade de despertar e estimular a inteligência. Deve ela permitir que se saia do mundo sensível (da caverna). Mas, de que forma? Através dos seguintes saberes: 1. Aritmética: permite enumerar os seres unos, distintos uns dos outros, onde o testemunho confuso e contraditório dos sentidos revela seres ao mesmo tempo unos e múltiplos. Ora, toda idéia, toda realidade inteligível é una e idêntica; 2. Geometria: nos leva a conceber seres eternos e imutáveis. Toda idéia, toda realidade inteligível é imutável, perfeita, eterna; 3. Astronomia: não deve unicamente permitir-nos contemplar melhor o céu visível e o sol, que traz luz e vida ao mundo sensível. Ao contrário, deve habilitar-nos a ver, além do céu visível, um céu habitado por seres e dotados de movimentos perfeitos que só a inteligência é capaz de perceber; 4. Harmonia: não deve se limitar a nos fazer distinguir com mais clareza os sons, os acordes harmoniosos e dissonantes, mas também permitir que nossa percepção vá além das harmonias captadas pelos ouvidos, isto é, as harmonias perfeitas que só a inteligência pode conceber. Estas ciências revelam, assim, a existência de um mundo inteligível. Mas elas o revelam como se se tratasse de um sonho. Na verdade, a matemática só nos dá uma idéia do mundo inteligível graças a um apoio sensível, material. É esta a razão pela qual as matemáticas constituem apenas um prelúdio para a dialética; 5. Dialética: verdadeira ciência das realidades inteligíveis, ou das idéias. Na dialética, a alma se eleva a uma visão de conjunto das ciências para ir além dos princípios ou das hipóteses que cada uma delas leva em conta, ou seja, ao conhecimento do princípio não-hipotético do Bem. Sem o conhecimento do bem, adjetivo essencial da dialética, o homem se conduz cegamente e o filósofo não poderia conhecer o que é verdadeiramente uma Cidade justa. Somente a dialética tem o poder de revelar o Bem ao homem versado nas ciências comentadas, e não é possível chegar lá senão por esse meio.
Platão distingue os graus do conhecimento da seguinte forma: i. Opinião (doxa): 1° Imaginação – eikasia – sombras, imagens; 2° Crença – pistis – as coisas, os objetos; ii. Ciência (episteme): 3° pensamento discursivo – dianóia – matemática e geometria; 4° pensamento intuitivo – noesis – dialética.
Por fim, Platão destaca a importância da seleção e da formação progressiva dos filósofos. O caminho resume-se no seguinte: formação física e militar, intelectual e matemática antes da filosofia (a dialética). Contudo, todo este ensino não deve ser imposto pela força. Quem deverá participar desses estudos comentados? Aqueles que reunirem, em primeiro lugar, qualidades físicas e morais que caracterizem um soldado corajoso e, ao mesmo tempo, disposições intelectuais. Em que idade? 1. Ao fim dos 2 ou 3 anos obrigatórios de ginásio: são 2 ou 3 anos de ginástica obrigatória antes dos 20 anos;  primeiramente, é preciso, ainda bem jovem, estudar matemática, porém, sem constrangimento, como se se tratasse de um jogo, para distinguir mais facilmente aqueles que revelam mais inclinações para esta ciência; 2. Aos 20 anos: serão selecionados os melhores dentre eles, e serão introduzido os estudos matemáticos sob um aspecto sintético, a fim de se distinguirem aqueles que estiverem mais aptos para a dialética. Somente aquele que é dotado de espírito sintético é dialético; 3. Aos 30 anos: os melhores, os mais seguros, os mais sólidos, os que se arriscam menos a fazer uso abusivo e prejudicial da matemática, à maneira dos sofistas, terão durante 5 anos a possibilidade de praticar a dialética.  Devem renunciar ao uso da visão e de outros sentidos e, assim, chegar ao conhecimento do ser apenas com a verdade, recorrendo unicamente às verdadeiras Idéias, ao invés de apoiar-se no testemunho incerto dos sentidos. Só serão admitidas na arte da argumentação pessoas firmes e estáveis, por natureza; 4. Aos 35 anos: serão obrigados a se dedicarem, de novo, a ocupações militares e esportivas, a fim de não perderem os conhecimentos e experiências nesses domínios. Assim, deverão voltar à caverna; 5. Aos 50 anos: os melhores, que se distinguirem em tudo, se elevarão até à ciência do Bem. Terão sempre em vista o Bem como modelo e como fim para governar a cidade e formar seus sucessores – alternando ocupações políticas com a contemplação filosófica e a prática com a teoria. Quando partirem desse mundo a cidade os venerará como deuses. Tanto o homem quanto a mulher poderá realizar tal tarefa.
Concluindo, um semelhante modelo de cidade perfeita não é uma quimera. Sua realização é possível se um ou vários filósofos passam a governá-la e se, para começar, se protegerem as crianças de menos de 10 anos, ainda não corrompidas pela educação de seus pais, que devem ficar no campo. Sem dúvida, a educação é o tema essencial do Livro VII da obra A República. A reforma da cidade pressupõe uma reforma da educação, em particular dos futuros filósofos que assumirão a direção da polis. Esta educação consiste em liberar a alma da prisão e da obscuridade da opinião comum. A educação não consiste num saber superficial – mundo do devir -, exterior da alma (sofistas), mas deve fazer com que a alma se volte para o essencial, isto é, para as essências, para o Ser (o mais brilhante no Ser é o Bem). No entanto, se desde a infância, a natureza dessa alma fosse submetida a uma poda dos prazeres dos sentidos, se tivesse sido libertada desse peso, voltando-se para realidades verdadeiras, poderia vê-las com a mesma agudeza com que vê as coisas para as quais ainda se acha voltada. Da meditação filosófica à ação política, é dupla a educação do filósofo na Cidade ideal: elevar-se à contemplação do Bem – sair da caverna -, saber agir no meio dos homens na cidade – descer à caverna. Quando isso ocorrer, o filósofo “verá mil vezes melhor do que outros e reconhecerá cada imagem e o que representa, pois já tereis visto as verdadeiras realidades do belo, do justo e do bom”.

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