domingo, 23 de setembro de 2012

RESENHA DA PRIMEIRA SEÇÃO DA FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS COSTUMES, DE KANT

A compreensão do princípio da moralidade exige que se exponha o que Kant entende por dever moral. A tradição filosófica definia o dever moral a partir de fins previamente postos. Se o fim fosse a vida boa ou a vida feliz, o dever moral resultaria da análise dos melhores meios para se chegar a tais fins. Para Kant, a definição de dever moral é outra. Sua preocupação não é mais com ‘o que se deve fazer’ para alcançar os fins previamente postos, mas apenas com o ‘como se deve proceder’ para agir com mérito moral.
Na primeira seção da FMC, Kant apresenta a boa vontade como a única coisa que pode ser considerada como boa em si mesma, algo como bom sem limites. Segundo ele, todos os talentos e qualidades do espírito são, em geral, coisas boas e desejáveis, mas, se a vontade unida a elas não for boa, podem tornar-se maus e prejudiciais. Para Kant, a boa vontade não é a boa por possibilitar o alcance de determinados fins, isto é, por aquilo que promove, mas apenas pelo simples querer.
         A razão foi-nos dada como faculdade prática que deve exercer influência sobre a vontade. Sua tarefa, entretanto, não deve ser a de produzir uma vontade que seja boa como meio para outra intenção, mas a de produzir uma vontade boa em si mesma, na medida em que não for influenciada por elemento algum exterior a ela mesma. É nisso que consiste o seu pleno valor. Por ser boa em si mesma, constitui o bem supremo e a condição de tudo o mais.
       Para desenvolver o conceito de boa vontade, Kant passa a exposição do conceito de dever, pois o dever contém em si o de boa vontade. Exemplos:1) O comerciante que atende lealmente seus fregueses age ‘conforme ao dever’, pois é um dever ser leal e atender bem seus fregueses, mas não age ‘por dever’ na medida em que age motivado por interesses bem compreendidos; 2) Uma pessoa que leva uma vida tranqüila e feliz e a conserva, age ‘conforme o dever’, mas não ‘por dever’, pois conservar a vida é um dever. Ao contrário, quando uma pessoa perde o gosto pela vida e pensa em suicidar-se, mas mesmo assim a conserva, esta sim, age ‘por dever’. Conservar a vida quando esta já não encontra mais nenhuma motivação é uma ação com pleno valor moral.
           Agir por dever é agir pela boa vontade sem ser movido por inclinação alguma. Agir pela boa vontade é conservar a vida por dever e não por medo da pena. O mercador honesto é moral se é honesto por dever e carece de valor moral se é honesto por interesse. O valor moral das ações consiste em agir pelo puro dever, em agir sem ser motivado por inclinações. A pureza da intenção é o que constitui o valor moral da ação.
Com isso, Kant define o conceito de dever: ‘dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei’. Pelo objeto, enquanto fim da ação a que se aspira, jamais se pode sentir respeito, apenas inclinação. Só pode ser objeto de respeito aquilo que está ligado à minha vontade apenas como princípio e nunca como efeito. Somente a lei por si mesma pode ser objeto de respeito, jamais aquilo que serve à minha inclinação. O valor moral da ação não reside no efeito que dela se espera, mas na pura representação a lei em si mesma, que determina independentemente de qualquer inclinação.
Tal lei, que tem de determinar a vontade para que esta possa ser chamada absolutamente boa e sem restrições é a seguinte: ‘age de tal forma que a tua ação se transforme em uma lei universal’. É, pois, a simples conformidade a uma lei universal das ações em geral que pode servir de princípio à boa vontade, e não a conformidade com regras práticas destinadas a proporcionar o alcance de fins.
Para mostrar a plausabilidade dessa lei, Kant apresenta o exemplo da falsa promessa: posso eu, quando me encontro em apuros, fazer uma promessa com a intenção de não cumpri-la? Essa questão deve ser analisada pelo aspecto da prudência e do dever. Prudência: pode trazer inúmeras conseqüências desfavoráveis; perda de confiança dos outros. Dever: basta perguntar-me a mim mesmo se eu ficaria satisfeito se minha máxima (tirar-me de uma dificuldade por meio de uma máxima moral) fosse elevada à lei universal. Assim, as promessas não teriam mais sentido e a minha máxima se autodestruiria. Logo, o ato de mentir e de fazer falsas promessas constituem ações imorais, pois suas máximas não podem ser queridas como leis universais.
Conforme Kant, não há necessidade de muita sabedoria para saber-se agir moralmente. Cada individuo pode perceber a cada momento e frente a qualquer ação onde está o dever moral. Basta pergunta-se a si mesmo se sua máxima de ação poderia converter-se em lei universal sem contradição. Se a máxima não pode ser universalizada, então ela deve ser rejeitada, pois ao pode caber como princípio numa possível legislação universal. A pureza da intenção, no cumprimento do dever, é a condição de uma vontade boa em si, cujo valor é superior a tudo aquilo que a inclinação louva. O valor moral de uma ação consiste no respeito a lei prática pelo puro dever de cumpri-la, sem ser movido por inclinação alguma. Assim, o dever contém em si a boa vontade.

2 comentários:

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  2. Ótima resenha, com a neutralidade "por dever", própria de pessoas de boa vontade.
    Ademais em se tratando de um Hegeliano convicto.

    Parabéns!

    Abraço,

    André Magnabosco

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