quinta-feira, 20 de setembro de 2012


MANIFESTO DE AMADEUS

—  Sou comunista, e daí?

—  Tá legal, não vou mais discutir contigo sobre formas de governo!

Todo lugar frequentado pelo jovem Amadeus era um ambiente propício para que ele pregasse os pensamentos de Marx, Engels e tantos outros teóricos admirados por ele. É evidente que ainda não havia lido todas as principais obras desses autores, nem conhecia de forma exaustiva os seus pensamentos. Todavia, bastava encontrar em qualquer local um grupo de pessoas conversando e lá estava Amadeus discorrendo sobre a mais-valia, sobre materialismo histórico e dialético. Enfim, apresentava-se sempre como um grande apaixonado pela filosofia marxista. Nem o próprio Marx se dizia marxista, mas Amadeus o era convictamente.

Tinha dezenove anos e estava concluindo o Ensino Médio. Estava decidido que iria entrar na faculdade, mas não havia escolhido qual o curso que iria fazer. Gostava tanto de economia quanto de filosofia. Contudo, tinha, além desses, outro projeto: o de criar uma filial da mini-indústria de móveis de seu pai. Nunca comentara sobre isso com seu pai, mas, em sua cabeça, já havia arquitetado um plano para convencê-lo. O seu grande projeto de futuro ainda estava somente na teoria; ninguém sabia o que aquele jovem “marxista” pretendia fazer.

Além de sua paixão por assuntos políticos, econômicos e filosóficos, a bela jovem Jenny também fazia parte de seu pensamento e de seus sonhos. Ele pretendia casar-se com ela, todavia, somente ele sabia disso. O seu grande problema era a sua própria feiúra. Mas, também, ninguém é perfeito...

Em uma manhã de aula, a professora de sociologia iniciou um debate sobre os republicanos, os monarquistas, os constitucionalistas, os aristocratas, os anarquistas e, também, os comunistas. Somente ao mencionar esta última posição política, Amadeus ficou arrepiado. Desta vez, porém, ele não seria o inconveniente de sempre, pois o seu assunto preferido seria discutido em sala de aula. A professora comentou um pouco sobre todos os tópicos e, quando citou o nome “comunis...” lá estava Amadeus, interrompendo a aula e discursando sobre tal tema. Falou por trinta minutos sobre a vida e obra de Marx e finalizou, citando o Manifesto Comunista:

—  “A história de todas as sociedades que existiram até hoje tem sido a história de luta de classes. Homens livres e escravos, patrício e plebeu, senhor e servo, mestre de corporação e aprendiz; numa palavra, opressores e...”

No desenrolar da fervorosa prédica soou a campainha, sinalizando o término da aula. A professora e os alunos deixaram a sala de aula, inclusive Jenny, que nada percebera que tal euforia ideológica de Amadeus tivera objetivo de encantá-la com a sua cultura. Ao chegar em casa, passou por seus pais, que estavam almoçando e nem comprimentou-os.

—  Vamos “revolucionário”, a comida irá esfriar.

—  Estou sem fome.

Trancou-se em seu quarto, não tendo mais ouvido o chamamento de seus pais para o almoço. Ali permaneceu até o dia seguinte. Estava muito triste por perceber-se “uma carta fora do baralho”. Ninguém o escutava. Os seus amigos só o ironizavam. Jenny nem isso fazia, pois ele era para ela como alguém que não existisse. Sentiu-se o inseto de A metamorfose, de Kafka.

           E assim foi durante toda a sua existência até a morte de seu pai. Permaneceu isolado do mundo. Esta foi a sua escolha e isso ele não entendia. Pensava que os outros tinham culpa, mas ele mesmo havia criado este casulo, no qual ficou por quase trinta anos. Formou-se no Ensino Médio naquele mesmo ano. O dia da festa de sua formatura é a lembrança que ele carrega consigo de seu grande fracasso. Lá estava Jenny usando um vestido vermelho e um colar de pérolas. No momento em que a viu chegando, esqueceu até mesmo de Marx. Pensou consigo que aquela era a sua chance. Contudo, o seu medo infantil de iniciar uma conversa com ela, mesmo se fosse sobre qualquer filosofia, não o deixou. Após aquela noite nunca mais a viu. Ficou sabendo, depois de algum tempo, que ela e a sua família haviam mudado de cidade. Acabou sendo sustentado por seu pai. Sua mãe insistia para que ele fosse procurar um emprego, para que ele mudasse de vida. Porém, nem mesmo as súplicas maternas fizeram com que mudasse de situação. Passava os seus dias em seu quarto, tentando escrever qualquer coisa. Tentou de tudo, de filosofia a contos, de poesia a romances. Nunca fora premiado em nenhum concurso literário que participou. E assim seus dias passavam. Viveu uma vida de puro tédio.

            Quando o seu pai veio a falecer, a sua mãe, sem forças para continuar chefiando a mini-indústria de móveis e decidida a mudar a vida de Amadeus, passou tudo para o nome dele. No primeiro momento, ele levou um susto, pois além de não entender nada sobre móveis e negócios, a sua vida até aquele instante fora de pura elucubração e teoria. Não obstante, este era o momento de pôr em prática o seu grande projeto marxista. Sem pensar muito, assumiu o negócio e já na primeira semana o transformou numa espécie de estabelecimento-padrão. Dividiu tudo com os funcionários, dos gastos aos lucros. A princípio, ninguém, além dele, entendia o que estava ocorrendo. Ao perceber a falta de conhecimentos de seus novos “sócios”, ele mesmo começou, no final do expediente, a ensinar-lhes sobre o socialismo e sobre o seu projeto de transformar o mundo.

            Pena que este reviver de Amadeus não durou muito. Já no primeiro mês, os gastos foram maiores do que os lucros e isto fez com que sobrassem poucos funcionários. Nos meses seguintes, a crise continuou e, no final do quarto mês, somente ele e o cão guarda - por não ter escolha - continuaram na indústria de seu pai.

            Percebeu que a sua teoria e a sua vida não possuíam sentido. Não casou, não teve filhos, não criou nenhuma filosofia e nem qualquer teoria econômica, não têm amigos e manteve-se longe, o tempo todo, das únicas duas pessoas que o amavam de verdade. Por fim, esbanjou os bens que restavam para ele e a sua mãe.

            Restou-lhe, pela frente, reconstruir de maneira bem capitalista a indústria de seu pai, através da pura “mais-valia”. Manteve, até os seus últimos dias, uma vida burguesa – a mesma contra a qual ele lutara, teoricamente, durante quase toda a sua existência. Considerou-se, da iminência de sua morte, um grande fracasso.

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