Era madrugada. O
peso do dia já estava insuportável nos ombros de Clara. Suas pálpebras não
conseguiam mais permanecer abertas. Acaba dormindo.
— Que bom que a encontrei! — diz
Ig tremendo.
— O que houve Ig? O que aconteceu?
— Nossa, que horror! —
vê-se lágrimas em seus olhos.
— Conte-me logo. Está me assustando.
— Como é possível tanta crueldade?
— Mas que crueldade?
Neste momento, Ig olha em seu
relógio e percebe que estavam muito atrasados. Propõe contar-lhe tudo, com
detalhes, no acampamento. Clara acaba aceitando, pois gostava de ouvir
histórias macabras – ainda mais, num lugar assustador como aquele que os
esperava.
— Então, vamos lá! —
disse Ig.
— A balsa cruza o rio até às dez horas, certo?
— Sim, e já são nove.
Antes de partirem, Ig guardou todos os apetrechos no
porta-malas do carro. O susto ainda não havia passado. Clara, entretanto,
tentava imaginar qual o fato que havia apavorado tanto o seu namorado.
Embarcaram ligeiramente no carro, ligaram o som... e Clara lembra-se que não
havia apanhado o violão. Voltou em sua casa, pegou-o e partiram.
Por sorte, chegaram nas
margens do rio Gan no mesmo instante em que o velho da balsa estava arrumando
as suas bugigangas para ir embora.
— Boa noite senhor. Podemos
atravessar? — disse Ig.
No mesmo instante, ouviu-se o
respirar profundo de insatisfação do velho, que respondeu:
— Tudo bem.
Na travessia, o velho ficou o tempo todo olhando a face
angelical de Clara. Ela, contudo, esquivava o seu olhar. Aquele homem era
possuidor de uma feiúra ímpar. Poucos conseguiam vencê-lo naquele quesito. Ao
desembarcarem na outra margem, despediram-se rapidamente e seguiram viagem.
Faltava pouco, mas agora não tinham mais pressa.
O lugar que os esperava era digno de histórias de terror.
Um casebre fazia companhia para um imenso lago que, com sua imensidão, acabava
refletindo quase a totalidade das estrelas. Porém, este espetáculo não seria
possível, pois o céu estava tomado de nuvens negras prontas para desabarem.
Além do cenário assustador, as histórias contadas acerca do que ocorria naquele
lugar não eram nada agradáveis.
Clara estava muito curiosa sobre o que tinha acontecido
para tanto assustar a Ig. Isso ele percebeu, vendo-a roer as unhas.
Faltando poucos quilômetros para chegarem, acabaram tendo
mais uma surpresa: o pneu havia furado. Desceram do carro e tiveram que
trocá-lo. Estava muito escuro. Somente ouvia-se o barulho dos animais comuns
naquela área. Porém, quando perceberam passos que se aproximavam deles, o medo
tomou conta dos dois.
— Ig, o que é isso?
— Entre, entre logo —
exclamou Ig totalmente apavorado.
— Meu Deus, o que é isto?
Passou por eles, indo na direção contrária, um andarilho.
Desses que se enchem de roupas, que têm a barba e o cabelo longos. Esperaram
longamente, trancados no carro e, depois, quando tiveram certeza de que o
estranho se distanciara, Ig concluiu a troca do pneu, embarcou e prosseguiram.
Logo chegaram ao topo do morro. Lá estava a lagoa, enorme
e apavorante. Tiraram tudo o que havia no carro e guardaram tudo no velho
casebre. Os dois estavam esfomeados, acabando por comer, ali mesmo, de pé, os
sanduíches que a mãe de Clara havia feito. Após, saciados, deixaram-se relachar.
Apanharam o uísque, o cigarro e o violão, sentando-se rente à lagoa. Clara
intuía que uma história, no mínimo assustadora, seria desenrolada. Então,
disse:
— Agora, conte-me! Vamos!
— Calma. Antes quero ouvir uns acordes.
— Mas por que tanta enrolação?
— Deixa de ser chata e faz um som. Depois lhe
contarei.
Clara tocou uma música que ela mesma havia composto há
poucos dias. A música dizia que “a vida tem o seu preço e o seu valor, com
muita dor”.
— Bravo, bravo!
— Tá bom, mentiroso. Sei que não está lá tão
perfeita. Mas agora é sua vez. Quero saber o que ocorreu pra você ficar tão
assustado.
Ig, então, contou-lhe tudo, ou melhor, quase tudo.
— De tardezinha, quando estava voltando do
mercado, ouvi uns gritos que saíam da janela do vizinho. Não os conheço bem,
pois faz um mês que eles chegaram de mudança. A princípio, pensei em não fazer
nada, mas os gritos continuaram e eu, impaciente, fui ver o que estava
acontecendo.
— E daí? O que você viu?
— Bati na porta da casa deles e, naquele
momento, os gritos cessaram. Ninguém apareceu. Fiz a volta no jardim e espiei,
entre as janelas da sala, para tentar enxergar alguma coisa. Cheguei a cair
para trás ao ver aquilo. Você não imagina!
— O que você viu?
— Próximo à parede estava o corpo de uma
mulher, toda ensangüentada. Olhei para o lado esquerdo e vi o próprio Lúcifer
sobre mais um corpo, de homem.
— O quê? O diabo?
— Pior que isso. Deveria ser o filho daquele
casal. E estava comendo a carne de seu próprio pai. Acredite, vi uma cena do
mais puro canibalismo.
— Que horror! E o quê você fez? Chamou a
polícia? Fugiu de lá?
Ig não respondeu mais nada para Clara. Ela continuou
crivando-o de perguntas e ele manteve o seu olhar fixo para a lagoa. Ela não
entendia por que ele não falava mais com ela. Ele, contudo, manteve-se
totalmente estranho. Um silêncio lúgubre esparramou-se naquela noite totalmente
escura. Depois de um tempo em que permaneceram em silêncio, Clara lembrou-se de
algo que a assustou ainda mais.
— Ig, não estou entendendo. Que vizinhos eram
estes? Ontem mesmo, perguntei-lhe se alguém tinha se mudado para a casa ao lado
da sua e você disse-me que não. Ah, já sei, você está querendo me assustar, é
isso?
Ig permaneceu em silêncio. Seu olhar assustou mais ainda
a ela. Estava muito estranho. Não parecia mais ser ele mesmo.
— Fale-me alguma coisa. Por que você está
assim? E os seus pais, como estão?
— falou Clara, tentando cortar
aquele silêncio.
Ig aproximou-se dela e deu-lhe um beijo, um beijo de
Judas, resmungando em seu ouvido um adeus. Após, uma enorme gargalhada tomou
conta dele. Não conseguia mais parar de rir. Mas, o pior de tudo, era o fato de
ser uma gargalhada demoníaca, sarcástica. O namorado alegre e brincalhão cedeu
lugar a uma figura sombria e satânica. Clara, ao vê-lo assim, fugiu correndo
para o interior do casebre, trancando-se. Dali em diante tudo permaneceu em
profundo silêncio. Nada mais se ouvia. Aquele silêncio deixou-a com mais medo.
Estava totalmente confusa. Não sabia mais o que pensar. Não conhecia mais
aquela pessoa que estivera com ela. Abaixou-se num dos cantos, iniciando um
choro de pavor. Ouve, contudo, umas pancadas na porta. Sem saber o que fazer,
ela grita forte:
— O quê você quer comigo? Pare com isso! É uma
brincadeira sua, não é?
— Claro que é, meu amor. Abra logo!
Ela, sem outra saída, abriu a porta. Quando olhou para
fora, começou a gritar histéricamente. Viu, diante de si a Ig, o velho da balsa
e o andarilho. Os três tinham em suas faces o mesmo sorriso assustador.
— Ah, não! Socorro, socor...
— Acorde Clara, acorde filha. Você está tendo
um pesadelo — disse sua mãe.
Nenhum comentário:
Postar um comentário