sábado, 15 de setembro de 2012

A METAMORFOSE DE JC

—  Quem fez isto comigo? Por que estas algemas? Socorro, socorro!
Com estes gritos, JC acordou a todos. A princípio, não houve muito alvoroço, pois pensaram que era apenas um pesadelo. Porém, os gritos continuaram e tornaram-se mais fortes e desesperadores. Foi então que decidiram ver o que estava ocorrendo.
—  O que houve JC?
—  Me deixe sair. Não fiz nada, sou inocente. Socorro!
—  Calma filho. Meu Deus, o que aconteceu?
—  Quem são vocês? O que querem de mim?
—  Somos nós JC, somos nós.
            A família toda estava atônita. Irradiava um grau de perplexidade em todos, com aquela situação conturbada. Ninguém entendia o que sucedera naquela noite para que JC, o filho amável, acordasse naquela situação de desespero.
            Sua mãe aproximou-se dele, tentando incutir-lhe um pouco de tranquilidade, porém, foi rechaçada com gritos de revolta:
—  Saiam daqui! Vocês não têm nenhum direito de me prender. Quero ir para casa. Soltem-me!
            Esse foi o momento culminante para os pais de JC. Estava clara a insanidade do seu filho. Eles não os reconhecia mais, confundindo-os com inimigos. Após tais palavras de revolta, os pais se retiraram do quarto, trancando-o. Esta atitude gerou mais gritos do insano, fazendo com que até os vizinhos percebessem o tumulto. Na sala, a caçula, totalmente atordoada, iniciou um choro de medo. Os gritos de JC continuaram retumbando na casa. A situação tornou-se insuportável. O inusitado instalou-se no ambiente.
            A mãe, assustada, questiona o pai por de tudo aquilo:
—  Por que tudo isto está ocorrendo? O que houve com ele?
—  Não sei. À noite, antes de me deitar, passei pelo seu quarto para dar-lhe boa noite. Ele já havia adormecido. Também estou assustado e não sei o que fazer.
—  Mãnhe, tô com fome!  —  fala a caçula. No mesmo instante, a campainha tocou e isso os assustou ainda mais. Era o vizinho médico:
—  É o senhor, Dr.?
—  Ouvi gritos. Pensei que poderia ajudar...
—  Entre. É o nosso filho. Não sei o que está acontecendo com ele, não sei.
—  Não estará drogado este garoto?
—  Não, não!
—  Estou com muito medo  —  diz a mãe com a voz trêmula.  —  Parece que os seus estudos o deixaram assim. Eu não entendo... Ele vive naquele quarto cercado por uma montanha de livros. Tudo indica que não sabe fazer outra coisa a não ser estudar e estudar. Ele nem se alimenta direito. Vive num mundo à parte que ele próprio criou.
—  Sou amigo de vocês há muito tempo. Se puder ajudá-los em alguma coisa, contém comigo — disse o médico.
—  Estou muito confuso  —  salienta o pai.  —  Nunca ocorreu isto. Que droga! Sempre quis me aproximar mais dele.
            A mãe, efusiva, diz:
—  Lembra há sete anos atrás, na feira de ciência, quando JC convidou você para vê-lo apresentar a “experiência de Rutherford”? Nunca lhe contei, mas durante a noite, na volta, tentei abrandar a sua tristeza causada pela ausência do pai. Fiz de tudo para acalmá-lo. Nada adiantou. E ele revelou-me que sentia muita solidão. Acho que tal ausência contribuiu para que ele se isolasse num mundo diferente do real.
            O pai, ao ouvir aquele relato desconhecido até então, tornou-se perplexo. Lágrimas rolaram ao longo de sua face. Um arrependimento dilacerou-o. Todos os anos de sua existência evaporaram-se diante de si. De que adiantou possuir, com sofreguidão, bens, apólices e ações na Bolsa de Valores? A vida tem um sentido muito maior do que tudo isso.
—  Acalmem-se!  —  disse o médico.  —  Talvez o seu filho logo melhore. Aposto que daqui a algumas horas ele voltará ao normal.
            E em meio a estas últimas palavras, ouviram-se novamente os gritos suplicantes de JC, pedindo a sua soltura. A caçula, com medo, foge da sala, refugiando-se em seu quarto. A mãe, com um átimo de esperança, disse:
—  Vamos lá. Quero tentar conversar com ele.
            Foi o que fizeram. Todavia, esta nova tentativa não deu em nada. Foram, os três, expulsos do quarto do filho, chamados de ditadores. A sua insanidade atingiu um grau insuportável. Sem o que fazer no corredor do quarto, voltaram à sala.
            Após alguns minutos, ouviu-se o choro da caçula próximo ao quarto de JC. Correram naquela direção, escutando um estrondo. Destrancaram a porta, mas já era tarde. Na janela não existiam mais vidros. Ao aproximar-se da abertura, o pai vê o seu filho fugindo em direção ao bosque. Sem pensar, saiu da casa para ir atrás dele. Quando chegou ao pátio, percebeu que não sabia a direção que o seu filho tomara. Foi o momento, de sua vida, em que mais se sentiu impotente. Contemplou-se a si mesmo e ao seu desespero. Jogou-se no gramado molhado, aos gritos:
— Filho, perdoa-me. Não sou digno que me chames de pai.
A grande lição do filho pródigo inverte o papel de seus protagonistas.
            A mãe, dentro da casa, sem forças para mais nada, jogou-se sobre a cama do filho, em prantos. Tudo era lúgubre naquele lar destruído. O médico, homem erudito, observou minunciosamente o quarto onde estava. Procurou algum vestígio, algum sinal para compreender aquela tragédia. Nada de anormal havia no recinto. Cada coisa em seu devido lugar. O armário bem ajeitado, a cama feita, os livros na estante e, na cabeceira da cama, o livro Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos.
            O médico, após alguns minutos, ligando os fatos e lembrando-se das palavras ditas por JC, esclareceu as suas dúvidas. Em meio a uma situação conturbada daquela, ele lembra-se que este livro relata a situação verídica do autor, que havia ficado preso por dez meses, entre os anos de 1936 e 1937, durante a ditadura do Estado Novo. Recorda ainda que o escritor viveu uma típica situação kafkiana, quando teve que pagar por crimes que não cometera.
            Entrementes, o que ninguém jamais saberá é o que ocorreu na madrugada anterior. “[...] Durante a leitura do livro Memórias do Cárcere, JC sentiu em todo o seu corpo um frenesi maluco. Aquela obra estava o atraindo muito mais do que o seu livro predileto A metamorfose, de Franz Kafka. E, de repente, o seu quarto foi se transformando em uma imensa cela. Os ratos estavam nos quatro cantos daquele lugar assustador. Demasiadamente real, só o cárcere que tomava conta do chão, do teto e das paredes. Viu-se, contudo, vestindo uma roupagem listrada esquisita, com um imenso número gravado nela. JC, sem nada entender, quis recuar. Agarrou-se na cama, mas nada adiantou. Ao seu redor, tudo imóvel. No silêncio da noite, viu-se naquela situação que passou a ser a sua realidade. Sentiu-se no lugar de Graciliano Ramos”. 

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