— Quem fez isto comigo? Por que estas algemas? Socorro, socorro!
Com estes gritos, JC acordou a todos. A princípio, não
houve muito alvoroço, pois pensaram que era apenas um pesadelo. Porém, os
gritos continuaram e tornaram-se mais fortes e desesperadores. Foi então que
decidiram ver o que estava ocorrendo.
— O que houve JC?
— Me deixe sair. Não fiz nada,
sou inocente. Socorro!
— Calma filho. Meu Deus, o que aconteceu?
— Quem são vocês? O que querem de mim?
— Somos nós JC, somos nós.
A família toda estava atônita.
Irradiava um grau de perplexidade em todos, com aquela situação conturbada.
Ninguém entendia o que sucedera naquela noite para que JC, o filho amável,
acordasse naquela situação de desespero.
Sua mãe aproximou-se dele, tentando
incutir-lhe um pouco de tranquilidade, porém, foi rechaçada com gritos de
revolta:
— Saiam daqui! Vocês não têm nenhum direito de
me prender. Quero ir para casa. Soltem-me!
Esse foi o momento culminante para
os pais de JC. Estava clara a insanidade do seu filho. Eles não os reconhecia
mais, confundindo-os com inimigos. Após tais palavras de revolta, os pais se
retiraram do quarto, trancando-o. Esta atitude gerou mais gritos do insano,
fazendo com que até os vizinhos percebessem o tumulto. Na sala, a caçula,
totalmente atordoada, iniciou um choro de medo. Os gritos de JC continuaram
retumbando na casa. A situação tornou-se
insuportável. O inusitado instalou-se no ambiente.
A mãe, assustada, questiona o pai
por de tudo aquilo:
— Por que tudo isto está ocorrendo? O que houve
com ele?
— Não sei. À noite, antes de me deitar, passei
pelo seu quarto para dar-lhe boa noite. Ele já havia adormecido. Também estou
assustado e não sei o que fazer.
— Mãnhe, tô com fome! — fala
a caçula. No mesmo instante, a campainha tocou e isso os assustou ainda mais.
Era o vizinho médico:
— É o senhor, Dr.?
— Ouvi gritos. Pensei que poderia ajudar...
— Entre. É o nosso filho. Não sei o que está
acontecendo com ele, não sei.
— Não estará drogado este garoto?
— Não, não!
— Estou com muito medo — diz
a mãe com a voz trêmula. — Parece que os seus estudos o deixaram assim.
Eu não entendo... Ele vive naquele quarto cercado por uma montanha de livros.
Tudo indica que não sabe fazer outra coisa a não ser estudar e estudar. Ele nem
se alimenta direito. Vive num mundo à parte que ele próprio criou.
— Sou amigo de vocês há muito tempo. Se puder
ajudá-los em alguma coisa, contém comigo — disse o médico.
— Estou muito confuso —
salienta o pai. — Nunca ocorreu isto. Que droga! Sempre quis me
aproximar mais dele.
A mãe, efusiva, diz:
— Lembra há sete anos atrás, na feira de
ciência, quando JC convidou você para vê-lo apresentar a “experiência de Rutherford”? Nunca lhe contei, mas durante a noite, na volta,
tentei abrandar a sua tristeza causada pela ausência do pai. Fiz de tudo para
acalmá-lo. Nada adiantou. E ele revelou-me que sentia muita solidão. Acho que
tal ausência contribuiu para que ele se isolasse num mundo diferente do real.
O pai, ao ouvir aquele relato
desconhecido até então, tornou-se perplexo. Lágrimas rolaram ao longo de sua
face. Um arrependimento dilacerou-o. Todos os anos de sua existência
evaporaram-se diante de si. De que adiantou possuir, com sofreguidão, bens,
apólices e ações na Bolsa de Valores? A vida tem um sentido muito maior do que
tudo isso.
— Acalmem-se!
— disse o médico. —
Talvez o seu filho logo melhore. Aposto que daqui a algumas horas ele
voltará ao normal.
E em meio a estas últimas palavras,
ouviram-se novamente os gritos suplicantes de JC, pedindo a sua soltura. A
caçula, com medo, foge da sala, refugiando-se em seu quarto. A mãe, com um
átimo de esperança, disse:
— Vamos lá. Quero tentar conversar com ele.
Foi o que fizeram. Todavia, esta
nova tentativa não deu em nada. Foram, os três, expulsos do quarto do filho,
chamados de ditadores. A sua insanidade atingiu um grau insuportável. Sem o que
fazer no corredor do quarto, voltaram à sala.
Após alguns minutos, ouviu-se o
choro da caçula próximo ao quarto de JC. Correram naquela direção, escutando um
estrondo. Destrancaram a porta, mas já era tarde. Na janela não existiam mais
vidros. Ao aproximar-se da abertura, o pai vê o seu filho fugindo em direção ao
bosque. Sem pensar, saiu da casa para ir atrás dele. Quando chegou ao pátio,
percebeu que não sabia a direção que o seu filho tomara. Foi o momento, de sua
vida, em que mais se sentiu impotente. Contemplou-se a si mesmo e ao seu
desespero. Jogou-se no gramado molhado, aos gritos:
—
Filho, perdoa-me. Não sou digno que me chames de pai.
A
grande lição do filho pródigo inverte o papel de seus protagonistas.
A mãe, dentro da casa, sem forças
para mais nada, jogou-se sobre a cama do filho, em prantos. Tudo era lúgubre
naquele lar destruído. O médico, homem erudito, observou minunciosamente o
quarto onde estava. Procurou algum vestígio, algum sinal para compreender
aquela tragédia. Nada de anormal havia no recinto. Cada coisa em seu devido
lugar. O armário bem ajeitado, a cama feita, os livros na estante e, na
cabeceira da cama, o livro Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos.
O médico, após alguns minutos,
ligando os fatos e lembrando-se das palavras ditas por JC, esclareceu as suas
dúvidas. Em meio a uma situação conturbada daquela, ele lembra-se que este
livro relata a situação verídica do autor, que havia ficado preso por dez
meses, entre os anos de 1936 e 1937, durante a ditadura do Estado Novo. Recorda
ainda que o escritor viveu uma típica situação kafkiana, quando teve que pagar
por crimes que não cometera.
Entrementes, o que ninguém jamais
saberá é o que ocorreu na madrugada anterior. “[...] Durante a leitura do livro
Memórias do Cárcere, JC sentiu em todo o seu corpo um frenesi maluco.
Aquela obra estava o atraindo muito mais do que o seu livro predileto A
metamorfose, de Franz Kafka. E, de repente, o seu quarto foi se
transformando em uma imensa cela. Os ratos estavam nos quatro cantos daquele
lugar assustador. Demasiadamente real, só o cárcere que tomava conta do chão,
do teto e das paredes. Viu-se, contudo, vestindo uma roupagem listrada
esquisita, com um imenso número gravado nela. JC, sem nada entender, quis
recuar. Agarrou-se na cama, mas nada adiantou. Ao seu redor, tudo imóvel. No
silêncio da noite, viu-se naquela situação que passou a ser a sua realidade.
Sentiu-se no lugar de Graciliano Ramos”.
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